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"Não pode ser só cumprir as leis; é também modificá-las", diz Gilberto Gil

O ministro da Cultura, Gilberto Gil, afirma que a legislação de direitos autorais precisa ser mais flexível

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 12h41.

Em entrevista a EXAME, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, diz que as gravadoras ainda têm respaldo legal para processar usuários de serviços de compartilhamento de música, mas que é preciso flexibilizar a legislação. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

EXAME - A internet aumenta o dilema entre garantir a disseminação e o livre acesso a trabalhos criativos e conteúdo intelectual, por um lado, e a proteção aos direitos autorais e de propriedade intelectual, de outro. Como o senhor vê essa questão? O Ministério da Cultura deve atuar de alguma forma nesse conflito?

Gilberto Gil - Essa questão está posta no mundo todo e retoma a questão básica que está embutida na criação do direito autoral, que é a remuneração do autor por um lado, e a garantia do acesso público por outro. As novas tecnologias repõem em termos ainda mais intensos essa discussão. O que temos visto no mundo inteiro é o choque básico entre uma visão demasiadamente economicista e que vê o direito autoral quase como uma commodity, uma fonte de remuneração básica dos autores, desprezando essa dimensão do atendimento público, do direito autoral como um fator de desenvolvimento, do intercâmbio entre a criação. A legislação brasileira precisa, de um certa forma, como vem acontecendo com países europeus e outros países, se atualizar em relação a isso; precisa considerar não só a remuneração dos autores, mas também essa questão do compartilhamento, da troca. O papel do ministério nesse sentido é levantar essa questão, fazer com que a sociedade brasileira perceba que existe esse problema, estimular todos os agentes interessados a também discutir. Estimular a conexão do Brasil com os fóruns internacionais de discussão. E que tudo isso venha a desembocar numa compatibilização da legislação com a tendência de formação de novos modelos de negócios. Em relação a todos esses aspectos, acho que o governo tem um papel a exercer. Estamos fortalecendo um setor que já é oficialmente a política do ministério, que é o setor do direito autoral - diferentemente de outros países, é o Ministério da Cultura que abriga institucionalmente essa atribuição no Brasil.

EXAME - Mas qual é exatamente a posição do ministério da Cultura sobre essa questão?

Gil - É uma posição a favor [da flexibilização dos direitos autorais]. Isso tem sido demonstrado, inclusive com apoio, solidariedade, reconhecimento que o ministério tem prestado a programas e iniciativas de flexibilização de propriedade intelectual, como é o caso do Creative Commons, que a gente abertamente apoiou. Tudo indica que a posição do governo brasileiro é favorável à flexibilização da propriedade intelectual. O governo adotou já em seu início, através da Casa Civil, um programa de incentivo ao Software Livre. Não só na Cultura, mas em outras áreas do governo há interesse em estimular essa questão de flexibilização da propriedade intelectual. Na medida que a tendência anarquística (sic) das tecnologias implica a desorganização de um setor, do ponto de vista de negócios, é preciso que todo mundo tome posição. Os produtos intelectuais, como música, livros, filmes, DVDs, produtos de downloads, são todos afetados positiva e negativamente. Positivamente na medida que há criação de mercados e ampliação de consumidores; mas, ao mesmo tempo, há todos esses problemas novos, dificuldade para garantia de direitos, para arrecadação, competição com produto pirata. Então todo mundo tem de sentar em torno da mesa.

EXAME - Para tentar proteger seus direitos, as gravadoras estão processando usuários de sites que permitem a troca ilegal de música. O senhor acha que essa atitude é acertada?

Gil - Eu tenho impressão que é parcialmente necessária e absolutamente correta porque respaldada pela lei, pelo menos por um conjunto de leis -- talvez escapando aqui e ali onde há determinadas leis que dão cada vez mais abertura, mas no geral o marco legal internacional é um marco que protege esse tipo de atitude, ainda. Ela é correta nesse sentido e necessária na medida em que é a única forma de sinalização que essas corporações podem dar no sentido do alerta para o problema. O problema da pirataria, o problema do uso não autorizado, quando a autorização é exigida por lei. É necessária nesse sentido. Agora, ela vai também necessariamente na contramão da tendência histórica. A tendência histórica é de que a legislação internacional venha a se adaptar, por uma admissão de que o compartilhamento é um tendência. É isso que eu acho. Hoje em dia não tem muita escapatória para os detentores de direito, a não ser denunciar as violações desses direitos. Só que na outra ponta do pêndulo tem toda essa necessidade de trabalhar pela flexibilidade da propriedade intelectual. Não é só no caso do direito autoral ligado aos bens e serviços culturais, mas também na questão dos fármacos, das patentes, transferência de tecnologia, software etc.

EXAME - O senhor concorda que há uma geração de adolescentes que está crescendo habituada a baixar música de graça na internet e que não consegue perceber valor financeiro na música?

Gil - Não conseguem ver, habituaram-se ao compartilhamento como uma noção natural, e portanto estão naturalmente e automaticamente praticando um conceito de flexibilidade da propriedade intelectual. Isso é uma tendência. Por outro lado, eles estão também praticando uma reposição do equilíbrio em relação ao uso público. Estão de certa forma represtigiando (sic) a teoria do Thomas Jefferson, de que a propriedade intelectual não pode ser considerada como uma propriedade do ponto de vista clássico, como é vista para os bens materiais. É uma outra forma de propriedade e portanto tem de estar submetida a outros parâmetros de consideração. Thomas Jefferson dizia claramente que tomar uma casa ou uma ferramenta de alguém não é a mesma coisa que você tomar uma idéia. A convergência tecnológica obriga também que se tome conhecimento dessa necessidade de repactuação, de revisão do conceito de propriedade. As duas questões são sinalizações importantes, tanto a conservadora de um lado, quanto a revolucionária de outra. Elas estão apontando para uma necessidade de solução do conflito. É preciso que a sociedade encontre modos de solução para esse conflito. Não pode ser só o chamado law enforcement, não pode ser só o cumprimento das leis tais como elas estão hoje; é também a modificação das leis tais como elas são hoje. São as duas coisas. Eu tenho licença Creative Commons para obras minhas, eu pratico isso.

EXAME - Essas transformações afetam mais os artistas ou as gravadoras?

Gil - Cabe aos próprios criadores, ao detentores de direitos autorais, a tomada de consciência com relação a essa diferenciação da propriedade intelectual. Eles têm de entender que é diferente o fato de alguém tomar uma calça, uma camisa ou um carro, uma casa, e alguém me tomar uma idéia, uma música, um texto. Tem de ser diferente. Os graus diferentes de materialidade impõem uma diferença. A indústria paulista do café desapareceu, praticamente, foi substituída por outra. O cacau também, vários negócios que eram baseados na exploração de determinadas matérias-primas ou indústrias de transformação de determinadas commodities mudaram ao longo do tempo. Por isso, qual o desafio que está posto diante dessa indústria [de música]? O desafio da renovação ou da morte. Isso é assim ao longo da história.

EXAME - O Ministério da Cultura deve fazer algo para auxiliar as gravadoras?

Gil - Claro que não está na alçada do Ministério apoiar a indústria, a não ser no fortalecimento do combate à pirataria, onde for possível fazer, onde for adequado que isso se faça. Mas precisa ver qual é a conceituação de pirataria. Cabe ao Ministério apontar para a necessidade de flexibilidade nessa conceituação, por causa das novas exigências. Não pode ser só o law enforcement. Tem de ser também o law changing. Tem de ser as duas coisas. As gravadoras sabem disso. O México começou a praticar formas alternativas de combate à pirataria na própria competição com a pirataria. Uma das coisas é a política de preços. A Universal, que é esse grande conglomerado, começou três anos atrás a praticar redução gradativa e permanente de preços para competir com a pirataria. Tem de atacar a pirataria naquilo que ela é ilegal, naquilo que ela é irregular, naquilo que ela representa como um desvio intolerável, mas tem de reconhecer nela também papéis importantes e interessantes, por um lado. O que ela faz é tentativa de redistribuição forçada de renda, transferência de poder de compra forçado.

EXAME - O senhor, como artista, flexibiliza os direitos de seus trabalhos?

Gil - Com aqueles que já sou proprietário dos fonogramas, com esses já tenho praticado mais flexibilidade. É o caso por exemplo do disco Sol de Oslo, que é propriedade minha, os fonogramas são propriedade minha. Tenho flexibilizado, há dois ou três fonogramas que podem ser compartilhados, podem ser utilizados parcial ou integralmente para determinadas finalidades.

EXAME - Se o senhor fosse um jovem artista em início de carreira, essa questão da internet poderia ser uma dificuldade a mais para ter sucesso do ponto de vista financeiro?

Gil - A tendência dos jovens é compreender diferentemente o ambiente digital. É compreender uma benignidade nessas práticas muito maior do que as gerações anteriores. As gerações anteriores vêem um pouco a malignidade do conceito de compartilhamento, do conceito de flexibilidade, da abertura de reserva; os novos vêem isso melhor. Há vários exemplos, o B Negão e vários outros que tiveram suas carreiras, suas vidas profissionais sensivelmente estimuladas pela adoção de práticas de compartilhamento. O B Negão colocou dois discos acessíveis pela internet e o impacto disso na carreira internacional dele foi grande, um impacto positivo. Ele passou a ter o mercado europeu, asiático e sul-americano que ele não tinha antes. No mundo editorial, muitos autores e muitas editoras lançam os livros livremente na internet por causa da percepção dos impactos positivos nas vendas dos livros - a tendência é crescer as vendas na livraria. A tendência desses jovens é perceber diferentemente a questão dos seus direitos na remuneração. Eles passam a abrir mão de remunerações convencionais clássicas porque têm novas formas de remuneração compensatórias e até com vantagens em relação a essas convencionais. Formas que vêm de outras fontes [de receita], que vêm de uma visão criativa do ambiente de negócios por força do ambiente digital. Então é tudo novo, é tudo uma coisa nova; esses meninos não são iguais a mim nem aos meus colegas - são outra coisa, já é outra percepção. Tem de ser assim, ou então o quê? Vai se instalar um conflito insolúvel, porque então a Sony, a Nokia etc. têm de parar de desenvolver as tecnologias que estimulam cada vez mais a socialização, o compartilhamento? Quer dizer, o processo tecnológico está na contramão dessa visão (das gravadoras), então em algum momento eles vão ter de sair da rota de colisão e entrar na rota de convergência.

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