Mercado de aplicativos cria softwares que já valem um bilhão de dólares (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 16 de agosto de 2012 às 15h18.
São Paulo - “Os homens de negócios e os intelectuais haviam lhe garantido que a revolução começara a declinar. O professor acreditou em tais informações e escreveu um artigo sustentando essa opinião. Entretanto, continuou a viajar pelo país, visitando cidades e aldeias.
Com assombro, verificou então que a revolução parecia entrar em nova fase de desenvolvimento”. O trecho em que o escritor americano John Reed descreve a percepção de um pesquisador sobre o andamento da Revolução Russa, no clássico “Dez dias que abalaram o mundo”, está incrivelmente alinhado com os fenômenos que sacudiram o Vale do Silício entre os dias 9 e 19 de abril deste ano, apesar dos quase cem anos e nove mil quilômetros que separam a Califórnia dos geeks da São Peterburgo czarista.
Afinal, correram exatos dez dias entre o surpreendente anúncio da venda do app de fotos Instagram por uma cifra bilionária ao Facebook e a divulgação, pela publicação Business Insider, de que outra startup, o Evernote, fechara a venda de 10% de seu capital por 100 milhões de dólares, alcançando o mesmo valor de mercado do aplicativo de fotos criado pelo brasileiro Mike Krieger e seu colega americano Kevin Systron. Um mês antes, analistas previam o esfriamento da economia dos aplicativos, impactada pelo recrudescimento da recessão americana e menor fluxo de recursos para os fundos que suportam os fabricantes de apps.
Assim como o professor ouvido por Reed, os analistas de Wall Street estavam errados. Em mais uma coincidência, coube a um russo demonstrar isso. Phil Libin, um jovem de 35 anos que emigrou com a família em 1978 da então União Soviética, foi quem assinou a cessão de parte do capital de sua startup, a Evernote, ao fundo Meritech,inaugurando o segundo app de um bilhão de dólares da história. Ao contrário dos bolcheviques, Libin não descende de camponeses ou operários, mas de uma aristocrata família russa que fugiu do comunismo para fazer a América.
“Sou a primeira pessoa em várias gerações dos Libin a não ter um diploma, não tocar nenhum instrumento ou ser um campeão de xadrez”, disse a INFO o fundador e CEO do Evernote, que abandonou a prestigiosa Universidade de Boston para dedicar-se integralmente ao desenvolvimento do app que permite fazer anotações por texto, voz ou imagem e sincronizá-las na nuvem. “Queremos ser o cérebro virtual das pessoas”, diz Libin.
“A ascensão dos aplicativos está suprimindo a navegação pelos padrões TCP/IP que entendemos por web”, sentencia Rakji Gero, pesquisador da Media Agility, consultoria responsável pelo maior estudo já feito sobre a economia dos aplicativos. “Você lê seu e-mail no iPad, checa o feed do Facebook no celular, acessa notícias no app da CNN, realiza uma chamada por Skype e, durante o trânsito, ouve seu podcast preferido. Ao final do dia, joga um game na rede Xbox ou assiste a um filme no Netflix. Tudo isso usando exclusivamente aplicativos, o que permite a cada usuário criar sua própria internet e não acessar um único site o dia todo”, afirma Gero.
Assim como ainda existem cartas e telegramas, sempre haverá sites abertos, mas, ao que tudo indica, os soviets da indústria de apps vão reduzir drasticamente o uso da web nos próximos anos. E eles são muitos. De acordo com a consultoria TechNet, só nos Estados Unidos existem 460 mil soviets, ops, desenvolvedores, suportando esta nova indústria. Esse exército que ao invés de Marx e Lenin prefere ler tutoriais de Lua e Objective C, as linguagens mais populares da economia mobile, é maior que a soma de todos os funcionários de dois ícones do antigo regime, a IBM a e a Microsoft, gigantes tão poderosos da indústria de software que, no passado, responderam acusações de formar um oligopólio.
“Sem dúvida, os apps são o futuro da internet. Hoje, pequenos grupos de jovens inovadores estão criando programas incríveis, democratizando a indústria de software”, afirma Alexandre Hohagen, vice-presidente do Facebook para a América Latina. Hohagen fala sério quando diz que a companhia onde trabalha compreendeu a força desse movimento. Poucas semanas após comprar o Instagram, o Facebook criou sua própria loja de aplicativos, o App Center, e está obstinado em seguir o deslocamento de seus 900 milhões de clientes, que se movem do browser para os aplicativos.
Além de assegurar audiência, os apps darão maior faturamento ao Facebook. Depois da publicidade, são os aplicativos a principal fonte de receita da multibilionária rede social, plataforma sobre a qual rodam fenômenos como FarmVille, Mafia Wars e Bubble Safari, todas criações da Zynga, companhia umbilicalmente ligada ao produto social criado por Mark Zuckerberg.
Se o Facebook pagou uma fábula pelo Instagram, a Zynga derramou 180 milhões de dólares para arrematar a OMG POP, startup por trás do fenômeno Draw Someting, numa ação que modificou radicalmente o destino de seu fundador, Dan Porter.
Após queimar 17 milhões de dólares captados de fundos de investimento em 35 games que fracassaram, Dan comunicou a seus 42 funcionários que fecharia a OMG POP. Antes, porém, publicaria na App Store, loja de aplicativos da Apple, uma adaptação do jogo Imagem & Ação para iOS. Em seis semanas, o app foi baixado 35 milhões de vezes e os servidores da OMG registraram fluxo de 10 milhões de desenhos postados por hora. O sucesso foi tanto que inspirou clones como o SongPop, desenvolvido pela Fantasy Inc, e Sing Something, da Cuketa, cuja única diferença em relação à invenção de Dan é a advinhação de músicas, ao invés de desenhos.
Tanto Facebook quanto Zynga poderiam ter usado a musculatura de suas pilhas de dólares em caixa e milhões de usuários ativos para simplesmente copiar Instagram e Draw Something. Mais do que isso, eles queriam comprar o expertise e o posicionamento no mercado mobile dessas startups.
“Nós vamos seguir nossos jogadores em qualquer plataforma ou dispositivo que eles adotem. Neste momento, vemos eles se deslocarem em direção aos gadgets móveis. Os jogadores sempre vão procurar a forma mais confortável e o dispositivo mais esperto para jogarem seus games preferidos e nós estaremos lá”, disse a INFO Sean Kelly, vice presidente de desenvolvimento de produtos da Zynga.
Eles fazem dinheiro – Não é só prestígio e posicionamento no mercado móvel que a economia dos apps assegura a seus investidores. Neste novíssimo segmento da indústria, há formas claras de gerar receita. Se fenômenos da web como Tumblr ou Twitter ainda não descobriram exatamente como vão transformar em dinheiro todo o sucesso que alcançaram em audiência, as startups de apps têm uma eficaz fórmula de seis pontos a serem explorados.
O primeiro, mais óbvio, é simplesmente vender o app. “Como os valores são baixos, entre 99 cents e dois dólares, os usuários compram por impulso”, explica Peter Broekroelofs, da desenvolvedora holandesa especializada em apps Service2Media. Na App Store, por exemplo, 23% dos aplicativos baixados são de softwares pagos. Desde que foi criada, em 2008, a loja já repassou mais de 5 bilhões de dólares a desenvolvedores. Outro método bastante tradicional é a veiculação de publicidade. Segundo a consultoria americana Strategic Display, a publicidade nos apps movimentará 2,9 bilhões de dólares só este ano.
O modelo mais bem sucedido, no entanto, é o freemium, explorado por apps como Draw Something, em que o usuário baixa o software de graça e paga se quiser recursos “premium”, como mais cores para desenhar ou bombinhas que aumentam as chances de adivinhar os desenhos enviados pelos amigos. Há ainda a monetização pela venda de “virtual goods”, em que o usuário usa dinheiro de verdade para comprar bens imaginários, como um tratorzinho virtual que ara as terras pixelizadas do Farmville. Há ainda aplicativos que vendem assinaturas de serviços, como faz o software de música Shazam, que cobra cinco dólares ao ano para dar acesso a um acervo de milhares músicas disponíveis para execução por streaming e compartilhamento social.
Recentemente, o veterano Foursquare – foi lançado no longínquo março de 2009 – estreou o modelo “offer and survey” de monetizar um aplicativo. Nos Estados Unidos, quem faz checkin em um bar ou restaurante pode ser surpreendido com a notificação de que ele acaba de ganhar um desconto de cinco dólares numa cerveja ou na sobremesa, desde que pague a conta com seu cartão American Express, parceiro do Foursquare na iniciativa. “A operadora nos repassa parte da receita que obtém graças a nosso app e podemos monetizar parte dos 19 milhões de usuários que possuímos”, disse a INFO Holger Luedorf, vice-presidente de desenvolvimento de negócios do Foursquare.
Há um ano, o Yahoo! ofereceu 100 milhões de dólares pelo Foursquare, mas a aquisição não foi concretizada. Hoje, apenas doze meses após a oferta do Yahoo!, a start-up é avaliada em US$ 500 milhões. “Não estamos interessados em vender nossa plataforma, nosso foco é crescer em número de usuários e receita”, afirma Luedorf. Para o executivo, empreendedores da economia dos apps devem ser pacientes. “Quando o Facebook ainda era uma pequena startup, soube resistir às tentações do mercado e hoje é uma empresa muito maior do que imaginávamos no passado”, justifica. O diretor do fundo Meritech Paul Madera, o mesmo que acaba de investir no Evernote e, em 2006, teve a sacada de apostar suas fichas num certo Facebook, alerta para o fato de apenas poucos apps merecerem as cifras que estão captando no mercado financeiro. “Claramente há muitos apps sobrevalorizados. São bem poucas as startups que valerão mais do que 500 milhões de dólares em alguns anos”, disse Madera a INFO.
Brasil na luneta – Com exceção de Mike Krieger e talvez seis ou sete desenvolvedores espalhados pelo mundo, os brasileiros estão à margem desta revolução. O baiano Leonardo Copello, fundador da fábrica de apps uTouchLabs, com sede em Salvador, diz que o mercado nacional está mais focado em criar aplicativos sob encomenda que desenvolver serviços inovadores. “Quando olhamos a participação de startups de diferentes países na economia dos apps, o Brasil só pode ser visto com uma luneta”, diz Copello. O desenvolvedor afirma que, no Brasil, as fabricantes de apps vivem de produzir aplicações para terceiros. “Uma grande marca de cerveja encomenda um app, uma empresa de mídia solicita outro e assim nosso mercado caminha. Por aqui, pouca gente faz app voltado para o usuário final”, afirma.
O próprio Copello é exceção à teoria que defende. Em 2010, a uTouchLabs lançou na App Store “Ask The Octopus”, um despretencioso aplicativo em que o usuário digita uma pergunta qualquer como “devo ir jantar num restaurante japonês ou italiano?” e um molusco virtual escolhe aleatoriamente uma das opções. O app foi lançado no auge do buzz causado pelas previsões do polvo alemão Paul, celebridade global durante a Copa de Futebol da África do Sul. “Nós cobrávamos um dólar por download e o app foi baixado 100 mil vezes no mundo todo. O timing do lançamento foi fundamental para o sucesso”, lembra Copello.
HTML 5 na espreita - Mal se sobrepôs à tradicional indústria de software, a economia dos apps vê no horizonte a ameaça do HTML 5. Atualmente, os aplicativos são desenvolvidos e desenhados nas linguagens e padrões definidos por cada plataforma. Um game como Angry Birds, da Rovio, por exemplo, foi escrito em Objective C para rodar em iOS e explora as características de hardware do iPhone. O mesmo jogo passou por um ciclo completo de desenvolvimento e programação em Java para funcionar em smartphones Android. BlackBerry? Windows Phone? Sim, é preciso começar do zero mais uma vez, adaptando o app aos novos tamanhos de tela e características de hardware. Todo esse esforço em criar apps “nativos” para cada sistema móvel consome uma commodity cara e escassa: horas de trabalho de desenvolvedores. “O avanço do HTML 5 mudaria esse cenário radicalmente e acabaria com os apps como nós os conhecemos”, diz Rakji Gero, da Media Agility.
O HTML 5 poderá permitir criar “webapps”, ou seja, aplicativos que rodam direto no browser móvel, independente do fato deste navegador estar instalado num iPhone ou Android. Na comparação com Angry Birds, é como jogar o game em sua atual versão para Facebook. Você pode estar num Mac, Linux ou Windows e o jogo rodará em seu browser. Por enquanto, isto não é possível nos celulares. Os navegadores móveis não suportam padrões complexos o suficiente para viabilizar um “webapp” do Draw Some ou Instagram que funcionem de forma satisfatória. Interações entre o aplicativo e itens de hardware como a câmera, o GPS ou o Bluetooth dos smartphones funcionam com menos eficiência em webapps que em aplicações nativas. O design, o tempo de carregamento das telas e a performance do app também ficam gravemente prejudicados. “Há ainda muitas brechas de segurança no HTML 5, o que impede que bancos e serviços de e-commerce adotem webapps. A experiência do usuário fica simplesmente ruim””, diz Peter Broekroelofs.
Como acontece em qualquer revolução, é fácil apontar qual modelo se deseja superar, mas quase impossível prever os desdobramentos desse processo. Hoje, é tão provável que o HTML 5 atropele os apps nativos quanto que duas plataformas se imponham sobre todas as demais, eliminando o problema de desenvolver uma aplicação múltiplas vezes. Quando Lenin determinou a execução dos Romanov, ele não poderia prever que rumos tomariam o regime comunista da União Soviética. Tão pouco é possível traçar para onde se deslocará o capitalismo digital. Sim, nós estamos no meio de uma revolução!