CVC: empresa corre para adequar os planos ao momento global de viagens mais curtas e caixa apertado (TALES Azzi/Pulsar)
Karin Salomão
Publicado em 24 de setembro de 2020 às 06h00.
Última atualização em 27 de setembro de 2020 às 10h19.
Quando a pandemia do novo coronavírus atingiu o Brasil, em fevereiro, o turismo praticamente deixou de existir. Enquanto os viajantes se recolhiam, companhias aéreas trancaram seus aviões nos hangares, hotéis fecharam as portas, parques de diversão e teatros silenciaram. Do dia para a noite, o setor que emprega 6,9 milhões de trabalhadores e contribui com cerca de 4% do produto interno bruto (271 bilhões de reais) parou. O baque foi ainda maior para a CVC.
A maior agência de viagem do Brasil, com faturamento de 17 bilhões de reais no ano passado, ainda estava lutando para se erguer de sua crise particular. Aos problemas que prejudicaram toda a cadeia no país em 2019 — as manchas de óleo que contaminaram praias do Nordeste, a recuperação judicial e posterior falência da Avianca e a recessão na Argentina, origem importante de turistas para o Brasil — se somaram indícios de fraude nos balanços dos quatro anos anteriores da CVC.
O forte vento contra fez o valor de mercado da companhia despencar para 1,1 bilhão de reais em março, o menor da história. O esforço de reestruturação está sendo, agora, redobrado.
Já em janeiro, para tentar estancar a perda de credibilidade desencadeada pelas inconsistências contábeis de 362 milhões de reais, um novo diretor financeiro foi indicado: Maurício Montilha, que até então ocupava o mesmo cargo na Atento, empresa de atendimento ao cliente presente em 15 países.
Em abril, a CVC anunciou o novo presidente, Leonel Andrade. Depois de ter, de 2013 a 2019, transformado a Smiles de mera administradora do programa de fidelidade da companhia aérea Gol em uma startup de turismo que comercializa, com milhas, de diárias de locação de carros a eletroeletrônicos, Andrade chegou com a missão de liderar a recuperação de um dos mais tradicionais nomes do mercado brasileiro de viagens.
A expectativa dos investidores era que levasse para a CVC a experiência na construção de bancos de dados de clientes que possibilitam o estreitamento da relação e a venda de mais produtos. O engenheiro civil baiano foi eleito em 2016 e 2017 o melhor presidente executivo do setor de serviços financeiros da América Latina pela publicadora de conteúdo internacional Institutional Investor. A CVC é a quarta empresa presidida por Andrade, que comandou também a financeira Losango e a administradora de cartões Credicard.
A reforma na gestão da CVC não parou no primeiro escalão: 33 executivos a partir do nível gerencial foram contratados e 56 deixaram a empresa. Um novo conselho de administração foi eleito em maio de 2020, com Cristina Junqueira, uma das cofundadoras do banco digital Nubank, e Silvio Genesini Junior, ex-presidente da Oracle no Brasil e investidor de startups.
As vagas na diretoria foram reduzidas de 20 para 11, com sete novos nomes. Desses, três chefiam áreas recém-criadas: a de governança, a de planejamento estratégico e a de clientes. Cinco meses depois de aterrissar na operadora, Andrade ainda nem conhece pessoalmente diversos diretores, muitos dos quais contratados por ele.
“A CVC está com quase 50 anos, mas sinto como se fosse uma adolescente, em razão da energia e da transformação pela qual está passando. É uma empresa que cresceu muito, com abertura do capital e aquisições, com a cabeça a mil, mas o corpo meio estabanado. Passamos por um processo muito duro, decorrente da falta de investimento e de cultura de governança”, diz Andrade. “Agora, é nosso papel sair da adolescência e fazer a empresa chegar à fase adulta, com sustentabilidade.”
Para a nova diretoria, a sobrevivência da companhia passa por entender sua origem e sua história de crescimento até chegar à liderança no país. A operadora foi criada em Santo André, na região metropolitana de São Paulo, em 1972, por Carlos Vicente Cerchiari — as iniciais de seu nome deram origem à sigla CVC — e Guilherme Paulus, que assumiu a gestão em 1976.
Dois anos depois, a empresa começou a atuar no ramo pelo qual seria conhecida por muitos anos: a organização de grupos de viagem, uma estratégia que diminuía os preços e possibilitava que brasileiros de classes mais baixas viajassem. Fretava aviões e transatlânticos para cruzeiros. Em 2010, o fundo de investimento americano Carlyle comprou uma fatia de 63,6% da companhia e, três anos depois, a empresa abriu o capital na bolsa de valores brasileira, a B3.
Entre os maiores acionistas atualmente estão os fundos Opportunity, com uma participação de aproximadamente 9%, e Equitas, com 5,2%. Desde a venda inicial de ações, a CVC realizou nove aquisições, como a agência de intercâmbios Experimento e o site Submarino Viagens, mas não integrou completamente as empresas adquiridas, o que, segundo o diagnóstico de Andrade, prejudicava seu desempenho. “Havia 11 marcas e 20 submarcas, cada uma com um diretor, era uma salada”, diz o presidente.
A CVC contratou neste ano a consultoria Gad para enxugar as marcas e melhorar sua eficiência da empresa e se reorganizou em três unidades de negócio: a de marcas voltadas para o consumidor final, a de marcas com vendas corporativas e uma subsidiária para reunir as operações na Argentina.
Com o novo time a bordo e a arrumação na casa, a primeira preocupação da CVC foi garantir a sobrevivência do negócio em tempos tão turbulentos. A companhia renegociou parte de sua dívida de 77 milhões de dólares com o Citibank no início de março e em setembro aumentou o capital com uma venda de ações de 301 milhões de reais. Em 2019, a geração de caixa foi de 261 milhões de reais, então a empresa diz acreditar que está fortalecida para passar pela pandemia.
A operadora também revisou sua visão e seus valores — e incluiu pela primeira vez princípios como transparência e sustentabilidade. Os balanços de 2020, cuja divulgação foi atrasada por causa da revisão das inconsistências contábeis de anos anteriores, serão apresentados no fim de setembro. Depois de passar o passado a limpo, a operadora vai ter melhores condições de pensar no futuro. O plano e o orçamento para 2021 e para o longo prazo devem ser fechados em novembro, com o apoio da consultoria McKinsey.
O mercado financeiro está vendo com bons olhos as mudanças na CVC: desde o fundo do poço, em março, o valor de mercado da companhia se multiplicou por quase 3, e está agora em 3 bilhões de reais. A recuperação da maior e mais famosa operadora brasileira de turismo é uma boa notícia para todo o setor. “Se a CVC vai bem, é sinal de que as menores também têm uma chance”, diz Thiago Abrahão, presidente do Grupo Águia, que controla a famosa agência paulistana Stella Barros.
Especializado em viagens corporativas, notadamente no setor de esportes, o Águia fez um acordo com a CVC para comprar passagens aéreas da operadora no meio da pandemia. “Preciso de um parceiro sustentável. Não posso correr o risco de perder os bilhetes entre a compra e o uso pelo meu cliente caso a operadora tenha problemas financeiros nesse ínterim”, diz Abrahão.
Para evitar um efeito dominó da crise no setor, a solidariedade corporativa fez a diferença. O Águia, por exemplo, pagou um auxílio emergencial de três parcelas de 1.200 reais aos guias turísticos do Rio de Janeiro, que perderam o sustento quando o Cristo Redentor e o Corcovado foram fechados para visitação. Também adiantou 2 milhões de reais em diárias a 40 hotéis sem cobrar juros. A operadora americana Expedia lançou um fundo global de 275 milhões de dólares para pequenas empresas de hospedagem.
As grandes operadoras, por sua vez, correram ao mercado de capitais para reforçar o caixa e atravessar esta fase em que os clientes estão evitando viajar. Em abril, a Expedia, cujo valor de mercado caiu 15% desde o começo do ano, para 13,3 bilhões de dólares, levantou 3,2 bilhões de dólares em capital próprio, novas dívidas e investimentos de fundos de private equity.
A argentina Despegar, dona da marca Decolar, captou 200 milhões de dólares em agosto. Também realizou a aquisição da Koin, uma fintech de parcelamento de boletos. A Decolar cortou os custos e os postos de trabalho em 35%, direcionou funcionários de outras áreas para o atendimento ao cliente e revisitou as prioridades de alguns de seus projetos.
“Nesse período, focamos mais o atendimento ao cliente e, em termos de tecnologia, a automação desse contato”, diz Alexandre Moshe, presidente da Decolar. Por causa da pandemia, a Despegar revisou a compra da empresa mexicana Best Day, feita em janeiro por 136 milhões de dólares — o valor passou para 56,5 milhões de dólares.
A transação ainda está sujeita à avaliação dos órgãos competentes no México. Ambas as compras serão essenciais para a retomada, segundo o executivo, ao fortalecer a presença da empresa no mercado mexicano e ao oferecer um meio de pagamento mais acessível aos brasileiros, que gostam muito de parcelar as compras mas nem sempre têm cartões de crédito generosos na carteira.
É essencial se fortalecer porque, em toda parte, a recuperação do setor de turismo será lenta. Uma fonte próxima à empresa diz que a CVC fechou agosto com cerca de 35% do volume das vendas e 45% dos passageiros, na comparação com agosto de 2019.
O mercado especula que a companhia consiga chegar a dezembro com 70% do volume de reservas de 2019. A CVC não confirma a previsão. Hoje, as agências de viagem operam com cerca de 30% a 35% das vendas de antes da pandemia, segundo a Associação Brasileira de Agências de Viagens (Abav).
O aumento da digitalização das emblemáticas agências da CVC está a caminho, como se esperava da gestão de Andrade. Com 1.400 pontos de atendimento pelo Brasil, grande parte das vendas da operadora ainda é realizada pelos canais físicos, mas as agências estão incorporando novas tecnologias, como o orçamento dinâmico.
Se antes os consumidores recebiam seu roteiro numa folha de papel, hoje ganham um link para o aplicativo da CVC que lhes permite alterar voos, hotéis e passeios com preços que mudam com novas promoções ou as alterações na taxa de câmbio. De 10% antes da pandemia, a conversão de vendas com essa ferramenta passou a ser 12%.
O turismo doméstico será o motor da retomada para o setor. De acordo com a presidente da Abav, Magda Nassar, os destinos nacionais já eram responsáveis por cerca de 60% dos pacotes vendidos antes da pandemia, então esse segmento pode sustentar a retomada. As primeiras viagens que já voltaram a acontecer são as escapadas de fim de semana.
Nesse sentido, o interior de São Paulo e destinos próximos da capital, como Campos do Jordão, têm aparecido entre as principais intenções de compra. Por enquanto, os turistas preferem viagens mais curtas, com voos de até 2 horas de duração e distâncias de até 400 quilômetros. Os resorts aparecem entre as opções para acomodação e a locação de carro se mostrou constante.
Já para o verão as praias do Nordeste brasileiro são o destaque, como Porto de Galinhas, em Pernambuco, e Fortaleza, no Ceará. Uma surpresa são pacotes internacionais que começam a ser vendidos para o ano que vem, com viagens mais distantes e longas, como Maldivas e Portugal. "São 'viagens de vingança'. As pessoas estão passando tanto tempo sem sair que, quando voltarem a viajar, pensam em uma viagem grande para compensar”, diz Roberto Nedelciu, presidente da Associação Brasileira de Operadoras de Turismo (Braztoa).
Na Expedia, de toda a procura por hospedagens em destinos brasileiros, 75% das buscas foram realizadas por viajantes domésticos. Para a Decolar, a retomada começou por meio de um produto lançado no ano passado: as Escapadas. Em vez de começar a pesquisar por um destino, os consumidores podem filtrar os pacotes por distância. Viagens nacionais já são mais baratas do que as internacionais e, em um momento de crise, todos os fornecedores tendem a abaixar suas margens para atrair consumidores.
De olho no mercado regional, a companhia aérea Azul lançou em agosto sua nova subsidiária, a Azul Conecta. A nova subsidiária é fruto da aquisição da Two Flex, companhia regional com 17 aviões turboélice monomotor com capacidade para até nove assentos.
De cerca de 104 cidades e destinos nacionais que a Azul opera, a aérea quer chegar a 150 até o final do ano e eventualmente a 200. Outra empresa que ganha com o turismo regional é o Airbnb, plataforma de hospedagem que em agosto fez um pedido de abertura de capital nos Estados Unidos.
A companhia passou a focar as estadas de longo prazo, não só para viajantes mas também para trabalhadores e estudantes que buscam fazer a quarentena e o home office em lugares mais afastados dos grandes centros urbanos.
As viagens internacionais ainda devem demorar a voltar aos mesmos níveis de antes, pelo fechamento de fronteiras, alta do dólar e a insegurança de passar longas horas dentro de um avião. O mercado corporativo também deve demorar para se recuperar, já que depende bastante de eventos, feiras e reuniões presenciais. Mesmo assim, as viagens já estão fazendo parte do orçamento dos brasileiros para o médio prazo.
"Somos pessoas muito globalizadas e o desejo de viajar é latente”, diz Nassar, da Abav. Para ela, se há alguns anos as viagens eram para a elite, hoje há pacotes de diversos preços e para perfis distintos de viajantes. Analistas do mercado financeiro recomendam cautela com as perspectivas.
Para Henrique Esteter, analista da corretora Guide Investimentos, a CVC está no meio da tempestade perfeita, enfrentando tanto problemas externos quanto uma reestruturação interna. "O setor vive uma situação muito delicada e estamos aguardando para conseguir ver, de fato, o resultado das ações que a gestão está tomando”, afirmou ele.
É necessário lembrar também que a pandemia não acabou — novos focos de covid-19 estão surgindo na Europa, e no Brasil o número de casos e mortes segue estável. Cedo ou tarde, porém, a tempestade vai passar, e quem conseguir se reinventar vai sair melhor da crise — essa é a aposta da CVC.