Gabigol levanta a taça do Brasileiro: 600 milhões de reais de superávit desde 2013 (Celso Pupo/Fotoarena)
Lucas Amorim
Publicado em 5 de dezembro de 2019 às 05h38.
Última atualização em 5 de dezembro de 2019 às 10h08.
A esta altura do ano você já deve ter ouvido falar no atacante Gabigol ou no técnico português Jorge Jesus. Os dois são os maiores nomes do Flamengo, campeão brasileiro de futebol com recorde de pontos e também da Libertadores da América, principal torneio de futebol do continente. São também as maiores esperanças para o Flamengo vencer o Liverpool, em dezembro, e conquistar o mundial de clubes após 38 anos. Jesus e Gabigol são também símbolos do bem que a boa gestão pode fazer. Clube mais bem administrado do país e campeão em faturamento e lucro, o Flamengo é agora também o melhor em campo. O capitalismo salvou o Flamengo. Agora falta salvar o futebol brasileiro.
A guinada no Flamengo começou em 2013, quando uma chapa formada por executivos com experiência em grandes empresas assumiu a gestão do clube. A meta era reduzir a dívida, então a maior entre os clubes de futebol do país, acima dos 700 milhões de reais, e impulsionar o marketing para fazer do time mais popular do Brasil o campeão em receitas. O faturamento passou de 273 milhões de reais, em 2013, para 652 milhões, nos primeiros nove meses de 2019 — um valor que, turbinado pelas premiações, pode alcançar a emblemática marca de 1 bilhão de reais. O constante prejuízo virou um superávit acumulado de 630 milhões de reais no período, segundo dados de Amir Somoggi, sócio da consultoria Sports Value, especializada em finanças do esporte. São números que farão o Flamengo fechar 2019 como o time que mais fatura no Brasil, à frente do Palmeiras, que faturou 688 milhões de reais em 2018. A distância para os maiores clubes europeus continua grande: Barcelona e Real Madrid faturam mais de 700 milhões de euros — ou quase 3,5 bilhões de reais. Mas o Flamengo já está mais perto de clubes tradicionais na Europa, como o Atlético de Madrid e o Borussia Dortmund, que faturam na casa dos 300 milhões de euros (1,4 bilhão de reais). O que falta para o Flamengo entrar de vez nesse grupo?
Claudio Pracownik, presidente da corretora Genial Investimentos e presidente da comissão de finanças do clube, resume o dilema rubro-negro. “Para o Flamengo virar o Barcelona, o Vasco precisa virar o Real Madrid”, diz ele. É uma referência aos dois rivais espanhóis que disputam tanto os títulos dentro de campo quanto o troféu de mais rico do mundo. “Precisamos trabalhar para melhorar o futebol brasileiro. Ninguém paga para ver um espetáculo ruim”, afirma Pracownik. “E sem grandes espetáculos não vamos atrair os maiores jogadores da Europa.” Apesar de o Brasil ser o berço de alguns dos maiores jogadores em atividade, os 20 clubes da primeira divisão faturaram, juntos, apenas 1 bilhão de euros em 2018, ante 5,4 bilhões de euros do campeonato inglês, 3,2 bilhões do alemão e 3,1 bilhões do espanhol.
O Brasil tem um trunfo em relação às principais ligas europeias: a competitividade. Neste século, Palmeiras, Santos, Corinthians, São Paulo, Flamengo, Cruzeiro, Fluminense e Athletico Paranaense foram campeões, uma rotatividade sem precedentes entre os grandes torneios do mundo. O desafio agora — para os demais times — é evitar que o sucesso de Flamengo e Palmeiras, campeão em 2018, faça esses clubes se descolarem da concorrência, algo que poderia fazer do Brasil uma combinação perigosa de baixo orçamento com baixa competitividade. Segundo um levantamento da Sports Value, as receitas dos 20 principais clubes do país estão entre as mais bem distribuídas do mundo. Palmeiras e Flamengo faturam, juntos, o equivalente a 24% do total dos clubes da primeira divisão. Na Inglaterra, a parcela dos dois principais é de 23%, e isso faz com que o país tenha não só o campeonato mais rico como também o mais disputado da Europa. Manchester United, Manchester City, Chelsea, Arsenal e Leicester já foram campeões neste século e o Liverpool lidera o atual torneio. Na França, por sua vez, o Paris Saint-Germain, dono de um terço da receita, ganhou seis dos últimos sete torneios. Na Itália, a Juventus, com um quarto da receita, é octacampeã.
Sucesso financeiro não é garantia de bons resultados em campo. O Palmeiras, depois de ser campeão em 2018, afundou em problemas em 2019 e demitiu o técnico Mano Menezes e o diretor de futebol Alexandre Mattos no início de dezembro. Na Inglaterra, o campeão de receitas, o Manchester United, não vence um campeonato desde 2012. O Arsenal, time mais rentável do país neste século, não levanta uma taça desde 2003. Mas, quando uma boa gestão financeira consegue formar um time acima da média, o campo pode retroalimentar as receitas, dando origem a um círculo virtuoso difícil de ser batido. Depois que contratou o técnico espanhol Josep Guardiola em 2013, por exemplo, o Bayern de Munique não perdeu mais o campeonato nacional e dobrou as receitas, para 690 milhões de euros. É o sonho dos torcedores do Flamengo — mas não é necessariamente o melhor para o clube.
Torneios que são vencidos sempre pelo mesmo time, afinal, perdem o interesse não só dos torcedores mas também dos patrocinadores. A forma mais simples de impulsionar a competição é dividindo mais igualitariamente as receitas. As ligas americanas de futebol americano, de basquete e de beisebol são modelos globais. Os contratos de transmissão são negociados em conjunto e divididos igualitariamente, e todos os times recebem até cotas de vendas de produtos dos adversários em lojas oficiais. Os torneios ainda estabelecem limites de salários a ser pagos por uma mesma equipe e distribuem igualmente os direitos de contratação dos jovens universitários mais promissores. São artifícios que permitiram, por exemplo, ao time canadense Toronto Raptors ser campeão da última temporada da liga de basquete NBA pela primeira vez na história. Nos mais importantes campeonatos de futebol mundo afora, a principal ferramenta para fomentar o equilíbrio são as negociações de direitos de transmissão. Para tentar romper com o domínio de Real Madrid e Barcelona, a liga espanhola reformulou seus critérios em 2015 mantendo fixa a cota anual de 140 milhões de euros dos gigantes e elevando as cotas dos clubes menores de 15 milhões de euros para 60 milhões. Outra medida eficaz é a adoção, pela Uefa, entidade que rege o futebol europeu, de instrumentos de fair play financeiro, com limite dos gastos e dificultando a injeção artificial de dinheiro por grandes investidores. A adoção formal de um modelo empresarial, como o empregado pelo campeão da Série B do Campeonato Brasileiro, o Bragantino, e defendido por um projeto de lei do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), é apontada por especialistas em gestão como salutar, mas não obrigatória. Entre os maiores clubes do mundo, há os com ações em bolsa, como a italiana Juventus, mas há também aqueles geridos à moda tradicional, como o Barcelona. O segredo está mais na gestão do que no modelo societário do clube.
Independentemente do modelo, o futebol vive uma fase de ouro nas finanças. O Manchester City, atual campeão inglês, vendeu no fim de novembro pouco mais de 10% de suas ações ao fundo de investimento americano Silver Lake, num negócio que avaliou o clube em 4,8 bilhões de dólares. É um valor recorde na história do esporte. Em 2008, o City foi comprado por um fundo de investimento ligado ao sheik Mansour bin Zayed al Nahyan, de Abu Dhabi, por cerca de 300 milhões de dólares. Desde então, o faturamento cresceu seis vezes, para 500 milhões de libras. O clube ainda gastou quase 1,5 bilhão de libras em contratações e conseguiu quatro títulos ingleses. Em sua investida para ganhar a Libertadores, o Flamengo impulsionou os gastos com futebol — de 180 milhões de reais, em 2013, para 351 milhões, em 2019. Ser campeão custa caro.