Margrethe Vestager, comissária de competição da União Europeia (Jasper Juinen/Bloomberg)
Raphaela Sereno
Publicado em 23 de janeiro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 23 de janeiro de 2017 às 05h55.
Bruxelas — A política dinamarquesa Marguethe Vestager, de 48 anos, tem um dos papéis mais importantes na União Europeia. Como presidente da Comissão para a Concorrência — espécie de Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) europeu —, ela trabalha para garantir uma competição comercial justa nos 28 países do bloco. No ano passado, Vestager obrigou a Irlanda a recolher da Apple 13 bilhões de euros em impostos, acusando a fabricante do iPhone de se beneficiar de um acordo fiscal ilegal entre 2003 e 2014.
Foi uma decisão sem precedentes e é a maior compensação desse tipo já imposta na Europa (a Apple e a Irlanda recorrem da decisão na Justiça). Em outra decisão, Vestager multou as montadoras de caminhões MAN, Volvo/Renault, Iveco, Daimler e DAF em 2,9 bilhões de euros por formação de cartel. Empresas de internet também são investigadas por práticas ilegais. O Google é acusado de usar o monopólio nas buscas para favorecer outros serviços, e a rede social Facebook de apresentar informações falsas sobre a compra do aplicativo -WhatsApp em 2014.
Por causa das medidas duras, a dinamarquesa ganhou o apelido de “o pesadelo das multinacionais”, mas as punições têm recebido apoio. “Acre-dito que as pessoas hoje tenham pouca paciência com quem não paga os impostos e desrespeita as regras”, disse Vestager em entrevista a EXAME. Para ela, a crescente transparência das contas públicas e privadas, além da pressão da opinião pública, vai im-pedir que as empresas utilizem brechas fiscais ou recebam benefícios fora do comum de agora em diante — uma mudança com impacto em todo o mundo. Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista.
Exame - Ha décadas as empresas usam brechas e acordos fiscais em países europeus, como é o caso da Apple na Irlanda. Por que só agora esses casos estão sendo investigados?
Vestager - Não é mistério que as práticas tributárias desleais são usadas há décadas, mas sempre houve muito segredo sobre os detalhes dos acordos e números envolvidos. A diferença é que, nos últimos anos, o mundo ficou mais transparente e foi possível fazer investigações que antes não avançavam. Por exemplo, só foi possível abrir o caso da Apple por causa de uma revelação feita numa audiência no Senado dos Estados Unidos em 2013. Antes disso, ninguém nem mesmo sabia da existência de um acordo da empresa com a Irlanda. Graças a episódios assim, podemos fazer um trabalho melhor. Mas, claro, isso impõe novas responsabilidades às companhias sobre como se comportar num mundo mais transparente.
Exame - Isso vale também para um setor tão dinâmico quanto o de tecnologia, alvo de investigações?
Vestager - Sim, vale especialmente no caso da indústria de tecnologia. O rápido crescimento das empresas nessa área leva a uma concentração de mercado muito alta, ameaçando a livre concorrência. A competição incentiva a inovação em qualquer indústria. O monopólio só vai limitá-la ou retardá-la. No setor de tecnologia não é diferente. O paradoxo é que algumas dessas empresas prestam um serviço sem igual. Mas parte das práticas que as companhias adotam não é aceitável. É isso o que elas têm de mudar agora.
Exame - O presidente da Apple, Tim Cook, afirmou que a punição da empresa era política. Como a senhora responde à acusação?
Vestager - De forma simples: existem tratados que nos obrigam a dar um tratamento sem discriminação de nacionalidade. Todas têm o mesmo tratamento. É uma questão de comportamento de cada empresa. Quando percebemos que ele é desleal, é aí que atuamos. Se queremos ter um mercado único comum na Europa, sem barreiras ao comércio, não podemos permitir que algumas empresas possam competir usando o dinheiro dos contribuintes, enquanto outras não têm o benefício.
Exame - Até agora a comissão puniu apenas as empresas, e não os países envolvidos. Por quê?
Vestager - Porque, mais do que dar uma multa ou recuperar o dinheiro, o foco é eliminar as práticas de concessão de benefícios ilegais. Por isso não punimos os países, mas obrigamos os governos a recuperar o dinheiro.
Exame - Países como a Irlanda e a Holanda atraem multinacionais com impostos generosos. Essa prática também deve ser combatida?
Vestager - Na União Europeia, cada país pode definir de forma autônoma quais são os impostos para as empresas. Então é possível ter uma concorrência tributária transparente. O que não permitimos são vantagens pela porta dos fundos e isenções fiscais para uma ou outra empresa.
Exame - É hora de ter uma política tributária única na União Europeia?
Vestager - Não acho que isso seja possível. Mas acredito que a União Europeia possa se aproveitar de outras vantagens, em vez de oferecer impostos baixos para atrair as companhias. Para as empresas, faz muita diferença se os impostos são de 12%, 18%, 20% ou 22%, dependendo do país. Mas, no mundo moderno, elas precisam cada vez mais de funcionários qualificados, de acesso a mercados, de boa infraestrutura, e também de governos eficientes, que não sejam corruptos. É necessário analisar todos esses aspectos, e não apenas o lado tributário.
Exame - Ainda assim, o que pode ser feito para reduzir a guerra fiscal entre os países da União Europeia?
Vestager - Uma forma de garantir uma competição justa é exigir que as companhias divulguem relatórios sobre sua atividade em cada país da União Europeia, como número de funcionários, faturamento e impostos pagos em cada um deles, por exemplo. É uma medida que temos defendido na comissão.
Exame - Qual é o objetivo dessa medida?
Vestager - É aumentar a transparência. Ela evitaria operações tributárias ilegais, como abrir um escritório sem nenhum funcionário em um país para aproveitar as vantagens fiscais. A transparência é a melhor forma de prevenir essas práticas ilegais, que são cada vez mais impopulares. As pessoas esperam que as empresas façam negócios honestamente em seu país, e também que paguem impostos da forma correta.
Exame - O excesso de regras da União Europeia é uma das críticas dos partidos eurocéticos que têm ganhado apoio. A senhora teme que seu trabalho aumente as críticas?
Vestager - Não temo. Acredito que uma comissão ativa possa ajudar a União Europeia como um todo e ainda fortalecê-la. Depois da crise da dívida europeia em 2009, os benefícios sociais que muitos europeus consideravam garantidos evaporaram. As aposentadorias ficaram menores, o desemprego aumentou, os funcionários públicos tiveram cortes no salário e os impostos ficaram mais pesados para todos. As medidas de austeridade ajudaram a organizar as contas públicas, mas foram pesadas demais para a população.
Por isso, as pessoas hoje demonstram pouca paciência com quem não paga impostos e desrespeita as regras. Espero que os cidadãos percebam que estamos tentando evitar justamente isso. Uma competição desleal prejudica não apenas a economia mas também a forma como as pessoas percebem a sociedade em que vivem. Se você sente que está sendo enganado quando vai às compras ou faz negócios, isso afeta sua percepção de que a sociedade é justa.