Everardo Telles: a fabricante de cachaças Ypióca esteve nas mãos da família Telles desde 1846, até sua venda milionária à multinacional Diageo, em 2012 (Drawlio Joca/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 20 de dezembro de 2013 às 19h38.
Última atualização em 26 de novembro de 2018 às 13h42.
São Paulo - Em maio de 2012, pouco antes de completar 70 anos, o cearense Everardo Telles foi colocado diante de um problema — o que fazer com os 900 milhões de reais que acabavam de ser depositados em sua conta? Um doce problema, é verdade, mas um problema mesmo assim.
Telles acabara de vender a empresa da família, a cachaçaria Ypióca, para a fabricante de bebidas inglesa Diageo. Fundada pelos Telles em 1846, a Ypióca passou por três gerações até chegar a Everardo, que assumiu a presidência aos 27 anos. Sob seu comando, a empresa mudou de patamar.
Com capacidade de produção de 130 milhões de litros de cachaça e faturamento de 300 milhões de reais, a companhia atraiu a cobiça da Diageo, que estava alucinada para crescer no terceiro maior mercado de bebidas alcoólicas do mundo. A proposta dos ingleses, de 900 milhões, era irrecusável. Diante dela, não havia muito o que fazer senão passar o negócio da família adiante.
Para Everardo Telles, colocar tanto dinheiro no bolso criou dois desafios de ordem prática. O primeiro, claro, era essencialmente financeiro. Qual o melhor investimento a fazer com 900 milhões de reais? As possibilidades, nesse caso, eram quase infinitas.
Telles poderia comprar uma rede varejista, uma mina de ouro, um parque de diversões, tornar-se um grande acionista de dezenas de empresas abertas. Se decidisse investir da forma mais conservadora possível, compraria títulos da dívida pública e receberia, depois de pagar impostos, quase 6 milhões de reais por mês. Mas, para ele, decidir o que fazer com a dinheirama era algo indissociável do segundo desafio, este um tanto mais complexo.
Ao vender a Ypióca, Telles vendeu também um bom pedaço de sua vida. A empresa ocupava sua cabeça durante a noite, seus dias de segunda a sexta, era fonte de preocupações, prazer, dava sentido às coisas. Ele precisava, portanto, começar uma segunda vida — aos 69 anos e com 900 milhões de reais na conta.
Telles trilhou um caminho surpreendente. Começou usando 50 milhões de reais para financiar as pesquisas com o aveloz, planta utilizada como remédio caseiro no Nordeste. Segundo ele, a planta tem potencial para ser usada no tratamento de alguns tipos de câncer.
Telles mantém 170 000 pés de aveloz e contratou um laboratório em Valinhos, em São Paulo, e cientistas da Organização Mundial da Saúde, além de fazer uma parceria com a universidade americana Johns Hopkins. “Eu precisava nascer de novo depois de vender a Ypióca. Por isso, resolvi investir em uma coisa que pudesse fazer a diferença”, diz.
O que você faria depois de embolsar uma fortuna como essa? Um estudo exclusivo feito a pedido de EXAME pela consultoria Ernst & Young revela que 158 empresários brasileiros passaram por momento semelhante ao vivido por Everardo Telles nos últimos seis anos.
Cada um deles embolsou pelo menos 100 milhões de dólares com a venda da empresa ou de parte dela. O estudo tem como base a lista de fusões e aquisições no Brasil de 2007 até hoje. Foi um período recorde em transações desse tipo. No total, foram 350 negócios; neles, 390 bilhões de dólares trocaram de mãos.
Nesse período, a economia brasileira viveu momentos de euforia e certa depressão. Em comum a todos os anos esteve o fato de que as empresas locais haviam se tornado alvo preferencial de multinacionais que buscavam crescimento em mercados emergentes, notadamente em segmentos voltados para o consumo doméstico.
A lista foi depurada em busca de casos de empresas familiares que venderam o controle ou participações minoritárias por mais de 100 milhões de dólares. Chegou-se, então, aos 158 empresários, mas o número real é ainda maior, já que a pesquisa não incluiu transações que não tiveram valores anunciados.
Steve Jobs, o fundador da empresa de tecnologia Apple, dizia que atingiu um momento crucial em sua carreira quando chegou a um patrimônio de 100 milhões de dólares. Ele tinha 25 anos e viu que o único caminho adiante era esquecer que tinha tanto dinheiro e continuar a criar coisas novas.
“Ser o homem mais rico do cemitério não é importante. Ir dormir com a sensação de que fizemos algo maravilhoso é o que importa”, dizia. Para pessoas normais, aquelas que sonham em acertar na loteria, o impulso natural seria pegar a grana, aplicar no banco e fugir para uma praia.
Mas os empresários que ganham fortunas vendendo suas empresas não são esse tipo de gente. Se fossem, provavelmente não teriam construído seus impérios particulares. São raríssimos os casos em que o vendedor pega a bolada e vai curtir a vida como um astro de rock.
Um exemplo que beira o absurdo é o do americano John McAfee, que vendeu sua empresa de software por 100 milhões de dólares, torrou 96 milhões com drogas e mulheres e ainda foi preso acusado de matar o vizinho no paradisíaco Belize.
Pelo menos até agora, nenhum dos empresários identificados pela Ernst & Young seguiu caminho semelhante à doideira de McAfee. Apenas um deles está aproveitando para viajar pelo mundo sem planos de negócios concretos, Ricardo Sayon — fundador da rede de lojas de brinquedos Ri Happy, vendida ao fundo Carlyle por cerca de 415 milhões de reais no ano passado.
Aos 61 anos, ele não descarta voltar ao batente. Seis em cada dez abriram novos negócios ou continuam como executivos de suas empresas mesmo depois da venda. Outros 26% criaram um fundo de investimento e se dedicam a mapear o mercado em busca de empresas promissoras, e depois ajudar em sua expansão.
Vender é glorioso
A venda de uma empresa nacional para um grupo estrangeiro gera, aqui e ali, certo mau humor. Para muitos, o dinheiro que vem de fora para comprar empresas inteiras é menos útil para o país do que aquele que as cria do zero — porque não gera empregos novos, por exemplo. Mas um olhar empírico para esse fenômeno revela uma realidade um tanto diferente.
O dinheiro circula e volta para a economia “real”, ao contrário do que se imagina. Dezenas de empresários venderam suas empresas para criar novos negócios do zero. Após vender a agência de turismo CVC também ao Carlyle por 600 milhões de reais, Guilherme Paulus decidiu entrar no ramo hoteleiro. Já tem 13 hotéis e pretende entrar para o grupo dos cinco maiores do país até 2017.
O pernambucano Gerson Lucena vendeu, em 2008, a fabricante de massas e biscoitos Vitarella para a concorrente M Dias Branco por 600 milhões de reais. Agora, passada a quarentena prevista em contrato, está investindo 140 milhões na construção de uma nova fábrica de biscoitos perto de Recife.
Em 2009, Alexandre Negrão vendeu a farmacêutica Medley para a francesa Sanofi por 1,5 bilhão de reais. Hoje, ele tem uma fabricante de pás eólicas, a Aeris, que lhe custou 120 milhões de reais em investimentos, e a maior fazenda de confinamento de gado do país.
São histórias que ajudam a derrubar outro mito — aquele que iguala empresários que venderam suas empresas a derrotados. Claro, há aqueles que foram forçados pelas circunstâncias (dívidas impagáveis, resultados ruins) a se desfazer de suas empresas. A própria Medley vivia os efeitos da crise de crédito de 2008 ao ser vendida para a Sanofi.
Mas como dizer que Edson Bueno perdeu ao vender a Amil à americana UnitedHealth por 6,5 bilhões de reais? Ou que Marco Antonio Laffranchi, fundador da faculdade Unopar, tem do que se envergonhar por ter trocado sua empresa pelo 1,3 bilhão de reais que a rede de ensino Kroton se dispôs a pagar? Histórias como essas são maioria na lista elaborada pela Ernst & Young.
As empresas brasileiras foram vendidas porque o mercado local mudou de patamar — e os preços também. Em 2000, havia 45 fundos de investimento em operação no Brasil, com um total de 1,1 bilhão de dólares para comprar empresas nacionais. Atualmente, são 185 fundos, com 80 bilhões de dólares.
Isso, aliado ao apetite das multinacionais com pressa para crescer no país, aumentou a demanda por um “produto” com oferta limitada — as grandes empresas nacionais. O valor de uma empresa é sempre baseado em suas perspectivas de lucro no futuro. Para uma grande corporação, pode valer a pena pagar o equivalente a 30 vezes o lucro anual de uma empresa familiar — como aconteceu, por exemplo, no setor farmacêutico nacional.
Seja porque a presença em mercados de grande crescimento impulsionará o valor das ações lá fora, seja porque as sinergias obtidas com a junção dos dois negócios gerarão ganhos impossíveis de obter de forma independente. As razões são muitas. Mas o fato é que, para o dono de uma empresa familiar, receber hoje o lucro esperado para daqui duas ou três décadas é uma proposta difícil de recusar.
Essa dinâmica criou, nos Estados Unidos, a figura do “empreendedor serial”, aquele que cria um negócio para vendê-lo, usar o dinheiro para criar outro, vendê-lo — e repetir o ciclo sempre que possível. A venda é tanto o fim quanto o começo. É gente como Elon Musk, que ajudou a fundar a empresa de pagamentos Paypal, vendida por 1,5 bilhão de dólares para o site de leilão eBay.
Com o dinheiro, Musk criou a montadora de carros elétricos Tesla e a empresa de exploração espacial SpaceX. O carioca Alexandre Accioly foi uma espécie de pioneiro da raça no Brasil. Em 1992, fundou a QuatroA, uma das primeiras empresas de telemarketing do país.
Sem faculdade e com pouca experiência, ele precisou encontrar por conta própria um sócio que trouxesse dinheiro para seu negócio. Em 1997, vendeu 40% das ações para o Unibanco. Em 2000, vendeu o restante para a Atento, do grupo Telefônica, por 170 milhões de dólares.
Com 37 anos na época, ele resolveu aproveitar a vida. “Essa fase durou uns 15 dias”, diz. Quando voltou ao Brasil, investiu em eventos, shows e baladas. Até que comprou uma academia e criou a rede Bodytech, com sócios como o treinador de vôlei Bernardinho e o empresário João Paulo Diniz. Vendeu 30% da empresa para o banco BTG Pactual em abril de 2012 e embolsou mais 200 milhões de reais.
Poucos ganharam tanto dinheiro abrindo e vendendo empresas quanto o empresário Omilton Visconde Júnior. Ele já esteve em cinco empresas no setor farmacêutico. Ganhou cerca de 1 bilhão de reais entre 2005 e 2010 com a venda de três delas. Primeiro, levou 600 milhões de reais ao vender a Biosintética, fabricante de medicamentos herdada do pai, para o grupo Aché.
Depois, ganhou mais 400 milhões de reais com a venda da Segmenta, produtora de soros, para a Eurofarma, e com a negociação da companhia de gestão de benefícios PrevSaúde para o grupo Visanet. Em 2012, Visconde voltou à carga. Investiu cerca de 25 milhões de reais para a criação da Netfarma, empresa de venda online de medicamentos, que tem como um dos sócios o fundador da varejista virtual Netshoes, Marcio Kumruian.
Mais recentemente, em novembro, ele lançou a MIP Brasil Farma, fabricante de medicamentos sem prescrição. “Gosto de investir no que eu conheço”, diz ele. É mais uma consequência potencialmente louvável da venda de uma empresa — dar a empreendedores já testados o tempo e o dinheiro para reinvestir.
Pode fazer pouco sentido para o assalariado-padrão, mas a decisão de não se aposentar precocemente com tanto dinheiro no banco faz todo sentido. Empresários como Visconde Júnior e Accioly não admitem fazer maus negócios. E, hoje, deixar o dinheiro parado no banco é mau negócio.
Investimentos conservadores rendem, depois de impostos, cerca de 5% mais que a inflação. Vale para eles o mesmo que para qualquer um com dinheiro parado hoje em dia. Mesmo quem não quer criar novas empresas acaba tendo de se transformar em investidor. É claro que, na maioria dos casos, essa tarefa fica a cargo dos family offices, como são chamados os gestores de grandes fortunas.
São profissionais de investimento com dedicação exclusiva a um cliente. Mas, para aqueles que continuam querendo botar a mão na massa, o tipo de atuação é outro. Abilio Diniz até tem um monte de gente administrando sua fortuna, mas ele está à frente da busca por novos investimentos em empresas.
O mesmo acontece com gente como Paulo Caputo, que era sócio da companhia de softwares Datasul e vendeu a empresa para a Totvs por 700 milhões de reais, e Romero Rodrigues, que vendeu o site de buscas Buscapé por 340 milhões de dólares para a empresa sul-africana de mídia Napster.
Ambos se transformaram em farejadores de empresas iniciantes. Rodrigues investe de 50 000 a 500 000 reais em pequenas empresas de tecnologia, como a Grubster, que dá desconto a clientes de restaurantes fora dos horários de pico. Caputo investe de 10 milhões a 40 milhões de reais em pequenas empresas de tecnologia, como a companhia de gerenciamento de frotas Opentech.
A vida de investidor abre espaço para que empresários que venderam suas empresas alcancem certo equilíbrio entre trabalho e o resto da vida. Todos os empresários ouvidos por EXAME para esta reportagem admitem que sua carga de trabalho não é mais a mesma. O gaúcho Arri Coser trabalhou como lavador de pratos e garçom em churrascarias até criar a rede Fogo de Chão.
Em 2011, ele e o irmão venderam a empresa por 200 milhões de dólares para o fundo GP Investimentos. Pouco mais de um ano depois da transação — e de passar meses viajando com a família —, Coser inaugurou o NB Steak, outra churrascaria, e virou sócio de dois tradicionais restaurantes de São Paulo: a Hamburgueria Nacional e a pizzaria Maremonti.
O plano é criar redes nacionais para as duas marcas. Mas sempre tendo como sócio alguém que pegue no pesado. “Trabalho em sociedade para ter mais tempo livre. Também consigo aproveitar melhor meu conhecimento do mercado”, diz Coser.
Finalmente, há aqueles que aproveitam a venda de suas empresas para realizar sonhos antes irrealizáveis por pura falta de tempo. Em abril de 2013, Flávio Augusto da Silva vendeu a rede de escolas de idiomas Wise Up para a Abril Educação (controlada pelo mesmo grupo que edita EXAME) por 877 milhões de reais.
Silva, que já morava no exterior, comprou um time de futebol na Flórida, nos Estados Unidos. Fanático pelo esporte, diz que ainda quer ganhar dinheiro com a empreitada. “Não é hobby, há um plano de negócio”, afirma. Para levar o Orlando City Soccer, o Lions, à disputa na primeira divisão do futebol nos Estados Unidos ele precisa construir um estádio e vai contar com apoio da prefeitura de Orlando e do estado da Flórida.
Mas a maior parte do investimento de 240 milhões de reais vai sair de seu bolso mesmo. Como Orlando recebe muitos brasileiros, ele pretende transformar o time em atração turística com craques nacionais. Caso dê tudo errado, ainda sobra um colchão de reservas bastante razoável. Coisa de uns 600 milhões de reais.
Milionário na prefeitura
Em outro extremo está o paulista Wilson Poit. Ele começou a trabalhar cedo, formou-se em engenharia elétrica e fechou cinco empresas antes de acertar. A Poit Energia, especializada em aluguel de geradores elétricos, virou líder no mercado brasileiro e foi comprada em 2011 pela britânica Aggrekko por 400 milhões de reais. Poit não quis abrir outro negócio.
“Para que ganhar mais dinheiro se eu não teria tempo para gastar?”, diz. Durante cerca de um ano, participou de conselhos de administração até que recebeu um convite peculiar: trabalhar na Secretaria de Finanças da prefeitura de São Paulo com a incumbência de melhorar o ambiente de negócios da cidade.
Achou que era a oportunidade de ajudar outros empreendedores com a redução de obstáculos que ele já havia enfrentado. Ele dá expediente das 8 às 17 horas em uma salinha na sede da prefeitura, no centro da cidade. Toma bronca do chefe, pega trânsito na chegada e na saída e recrutou apenas um funcionário — a secretária de longa data. Gasta boa parte do tempo recebendo empresários interessados em investir na cidade. Seu salário? 19 500 reais por mês.