Até pouco tempo atrás, a maioria dos compradores da Land Rover no país pagava à vista modelos que custam até 400 000 reais. Hoje, segundo o presidente da subsidiária, John Peart, os fi nanciamentos já representam 60% das vendas (Germando Lüders/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h38.
Financiamento. Até pouco tempo atrás, essa palavra estava fora do vocabulário de negócios na subsidiária brasileira da Land Rover. Tradicionalmente, desde os anos 90, quando a empresa começou a distribuir sua rede de 29 concessionárias pelo país, quem saía de uma dessas lojas com a chave do carro novo nas mãos fazia parte do seletíssimo estrato de consumidores dispostos a pagar à vista modelos cujos preços chegam a 400 000 reais. Uma acelerada mudança de comportamento, porém, alterou esse perfil. Em 2008, as unidades parceladas representavam cerca de 20% das vendas totais. Hoje, equivalem a quase 60% — em parcelamentos que se estendem por até 36 meses (entre as maiores montadoras do país, os prazos chegam a atingir 80 meses). Nas revendedoras da Land Rover no Nordeste — a região com maior crescimento de receitas —, o percentual de veículos financiados representou cerca de 80% das vendas totais entre janeiro e maio. “Temos uma variedade maior de clientes, que agora podem parcelar a compra de um carro de luxo”, diz o paulista John Peart, presidente da Land Rover no Brasil. Não é coincidência que ele projete para 2010 o maior volume de vendas desde a chegada da marca ao país — e espere novos recordes à frente. A progressão do financiamento não é um fenômeno isolado das montadoras e das revendedoras de automóveis. Em janeiro, tornou-se possível pagar passagens aéreas da TAM e da Azul em até 48 parcelas. Segundo projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o setor aéreo brasileiro deve triplicar de tamanho até 2020. Outro setor- chave da economia, o imobiliário, vive uma perspectiva semelhante. Nunca se construiu tanto no país. A venda financiada representava menos de 20% da carteira das principais construtoras do país até 2005. Atualmente, chega a 90%, para quitar em até 30 anos.
Ao multiplicar o poder de compra dos brasileiros, a ampliação do universo inclusivo das suaves prestações (por vezes, diga-se, nem tão suaves assim, sobretudo quando se somam os juros) tornou-se fundamental para que a ascensão de renda no país se revertesse em alta do nível de consumo em diversos estratos da população. Boa parte de novos compradores de carros de luxo, novos viajantes e novos proprietários de imóveis são também novos tomadores de crédito. Em maio, o volume total de crédito concedido aos brasileiros chegou a 502 bilhões de reais. Pela primeira vez, esse valor supera o montante concedido a empresas. É um fato simbólico, que ajuda a mostrar o novo papel do consumidor brasileiro na economia. Segundo a consultoria LCA, de São Paulo, o crescimento do PIB brasileiro foi, em média, de 3,6% entre 2003 e 2009. Sem a revolução ocorrida no sistema de crédito, a consultoria estima que o crescimento médio teria sido de apenas 1,7%. “O crédito serviu de principal combustível para o consumo, que, por sua vez, impulsionou boa parte da expansão recente do PIB”, diz Bráulio Borges, economista-chefe da LCA. É um momento comparável, guardadas as devidas diferenças, ao que aconteceu nos Estados Unidos nos anos 50. Em 1945, o crédito aos americanos somava 5,7 bilhões de dólares. Atingiu 100 bilhões de dólares em 1966 e 1 trilhão de dólares em 1994. O pico até agora foi de 2,6 trilhões de dólares em julho de 2008, poucos meses antes do auge da crise. “O amadurecimento da oferta de crédito permite à massa da população avançar seus planos de compra além de bens como um televisor ou um celular, em direção a necessidades de longo prazo, como casa e educação”, diz José Pereira da Silva, professor de gestão de risco de crédito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
Nenhuma modalidade de crédito a pessoas físicas no Brasil passa por uma transformação tão intensa como o segmento imobiliário. Em maio, o crédito para a compra de imóveis alcançou 107 bilhões de reais — 50% mais do que o saldo registrado no início de 2009. É um nicho em que novos modelos de negócios avançam rapidamente. Um exemplo disso é a CrediPronto!, parceria entre a imobiliária Lopes e o banco Itaú para o financiamento de imóveis novos e usados. Criada em 2008, a CrediPronto! iniciou suas operações há pouco mais de um ano nas 205 lojas da rede Pronto!, empresa de venda de imóveis prontos da Lopes. “Hoje existe uma grande disposição tanto dos bancos para emprestar quanto das pessoas para tomar crédito”, diz Rodrigo Gordinho, diretor comercial da CrediPronto! “Só aproximamos as duas pontas.” As transações realizadas entre janeiro e março somaram 146 milhões de reais — 436% mais do que no mesmo período do ano passado. Até o final de 2010, a empresa pretende financiar um volume total de 400 milhões de reais em imóveis com valor médio de 200 000 reais.
Em muitos casos, esse novo tomador de crédito — e seus hábitos — ainda é desconhecido. Isso é especialmente verdade em setores que só agora passam a fazer parte do espectro de consumo de milhões de brasileiros, como as viagens aéreas. Nos últimos cinco anos, o volume de embarques no país quase dobrou. “Boa parte das pessoas está voando pela primeira vez”, afirma Líbano Barroso, presidente da TAM, maior companhia aérea do país. Para conhecer melhor esse novo cliente, em maio do ano passado os executivos da empresa montaram um quiosque de vendas numa área de grande circulação da população das classes C e D, em São Paulo, o Centro de Tradições Nordestinas, no bairro do Limão. Desse contato direto resultaram algumas conclusões. “O brasileiro médio prefere comprar em muitas parcelas que cabem em seu bolso em vez de economizar o valor e pagar à vista depois”, afirma Barroso. “Percebemos que teríamos de ampliar nossas opções de financiamento.” Até recentemente, a companhia oferecia apenas a possibilidade de parcelar as passagens no cartão de crédito em dez vezes. Em janeiro, passou a oferecer o pagamento em carnê em até 48 vezes a correntistas do Itaú e do Banco do Brasil. Poucas semanas depois, a concorrente Azul ofereceu condições semelhantes. O carnê mostrou-se uma opção para não estourar numa única compra o limite do cartão de crédito dessa classe média emergente, que varia de 400 a 2 000 reais por mês. Nesse sentido, os executivos da Azul encontraram mais uma solução. No início de julho, desenvolveram uma modalidade de cobrança no cartão apelidada de “cartão recorrente”. Em vez de registrar uma viagem de 600 reais de uma só vez, cada parcela mensal passou a ser computada individualmente até que as prestações acabem. “Existe um risco de inadimplência maior, mas acreditamos que o aumento do volume de vendas pode compensar”, diz Paulo Nascimento, diretor comercial da Azul.
Na inclusão de novos clientes, o cartão de crédito pode ser considerado um dos instrumentos mais democráticos. Cerca de 10 milhões de novos cartões foram distribuídos no país em 2009. No primeiro semestre deste ano, outros 7 milhões passaram a circular. Aproximadamente metade deles foi emitida por grandes redes varejistas, na maioria das vezes sem a exigência de comprovação de renda nem de uma conta-corrente. “Para muita gente, o cartão se torna o primeiro produto financeiro”, diz Adalberto Savioli, presidente da Associação Nacional de Instituições de Crédito, Financiamento e Investimentos e diretor do banco Panamericano. A avenida para a expansão do uso desses novos cartões vem sendo pavimentada por operadoras como Redecard e Cielo, responsáveis pela administração das transações — que avançam cada vez mais além do terreno conhecido das grandes capitais. “Em muitas regiões, as pessoas estão trocando o hábito de pagar fiado pelo uso do cartão”, diz Rômulo Dias, presidente da Cielo. Recentemente, essas operadoras passaram a expandir-se aceleradamente entre varejistas “não convencionais”. No jargão do setor, a categoria abarca desde vendedores porta a porta até médicos e dentistas. Nesse novo universo estão a pernambucana Rejane Queiroz e outras 15 000 consultoras que vendem calças porta a porta da marca Handara, de Fortaleza. Desde janeiro, elas aceitam cartão de crédito nas vendas diretas e passam as informações das compras por celular para a central da Redecard, em São Paulo. “Antes eu vendia fiado, mas o risco de calote era muito alto”, diz Rejane, que vende cerca de 20 calças por mês em até três vezes, em parcelas médias de 35 reais. Para os executivos das operadoras de cartões, ainda há muito espaço a ocupar. “Hoje, 23% dos gastos do consumo privado são feitos com cartão de crédito”, afirma Dias, da Cielo. “Nos Estados Unidos, essa taxa chega a 45%.”
A chegada de tantos tomadores de crédito incentivou também a criação de novas instituições para oferecer dinheiro a prazo. Segundo dados do Banco Central, o volume de licenças concedidas a novos bancos e financeiras dobrou entre 2006 e 2009. Um dos exemplos dessas novas entrantes é a Midway Financeira, criada em julho de 2008 e pertencente ao mesmo grupo que controla a rede varejista Riachuelo, do empresário Flávio Rocha. Até aquele momento, a empresa mantinha uma parceria com a financeira Safra para financiar as vendas em suas 112 lojas. “A demanda por crédito aumentava 10% ao ano nas mesmas lojas”, afirma José Antônio Rodrigues, diretor de crédito e risco da Midway. “Resolvemos aproveitar esse mercado.” Com uma base de 16,5 milhões de cartões de crédito e produtos financeiros, como crédito consignado e pessoal, a Midway faturou 81,3 milhões de reais nos primeiros três meses deste ano — 25% mais do que no último trimestre do ano passado. Outra novata é a Sorocred, dos sócios Nilton Ferreira da Silva e Luiz Maciel de Lima Filho, que obteve licença para operar como financeira em janeiro. Criada em 2001, a empresa é hoje uma das maiores bandeiras regionais de cartões de crédito do país, com 3,5 milhões de unidades emitidas em parceria com 150 000 varejistas pelo país. “Percebemos uma oportunidade, já que conhecemos o perfil de compra desses consumidores e podemos analisar mais facilmente o risco de crédito para cada um”, afirma Ferreira da Silva, que prepara o envio das primeiras cartas de crédito a cerca de 20% de sua base de clientes mais disciplinados.
Chegar a esses novos tomadores de crédito não é assim tão simples, como mostra a experiência recente de grandes bancos. Em 2004, o Itaú anunciou com estardalhaço seu ingresso no segmento de empréstimo pessoal para a baixa renda com a criação da financeira Taií. No final de 2009, porém, o banco fechou as 470 lojas espalhadas pelo país, que ofereciam crédito sem exigência de comprovação de renda. “As taxas de inadimplência se mostraram altas demais e os custos não se sustentavam”, diz Rogério Calderon, diretor corporativo de controladoria do Itaú Unibanco. Desde então, o banco decidiu apostar em maneiras mais seguras de ampliar a base de clientes da classe C — como a expansão de sua base de cartões de crédito emitidos junto a varejistas, que já soma 17 milhões de clientes. Além da Taií, boa parte das financeiras tradicionais redirecionou sua carteira para o crédito consignado, com desconto em folha de pagamentos. Entre os métodos mais seguros para expandir a oferta de crédito, começam a ganhar corpo modalidades até pouco tempo inéditas no país, como empréstimos pessoais com imóvel como garantia, uma variação da tradicional hipoteca. Uma das maiores instituições nessa frente é a Brazilian Mortgages, do megainvestidor americano Sam Zell. A instituição foi a primeira a lançar o produto BM Sua Casa, em 2007, e oferece os prazos de pagamento mais longos do mercado — até 30 anos. O tomador do empréstimo pode requerer até 50% do valor do imóvel, desde que este esteja quitado e o valor total não ultrapasse 500 000 reais. “Esse tipo de financiamento coloca em circulação uma riqueza que estava parada”, diz Elyseu Mardegan Junior, diretor do BM Sua Casa.
O poder transformador do crédito é discutido por estudiosos há décadas. Quase um século atrás, o economista britânico John Maynard Keynes afirmou que o crescimento de qualquer país depende da disposição de empresários e consumidores de gastar mais do que têm — ou seja, de colocar mais dinheiro em circulação. Os recursos extras viriam de investidores dispostos a emprestar a esse pessoal e receber um rendimento por isso. O que une as duas pontas é exatamente o mercado de crédito. No Brasil, o potencial transformador do crédito só agora começa a ser revelado. Mesmo com toda a expansão recente, a participação do crédito a pessoas físicas ainda é baixa em relação a outros países. Todo o empréstimo destinado a pessoas físicas hoje representa apenas 30% do PIB, de acordo com dados do Banco Central. No caso dos Estados Unidos, essa relação é de 131%. Uma das condições para que o crédito continue avançando no mesmo ritmo é o aumento de renda no país. “Se considerarmos que boa parte da população brasileira é composta de indivíduos com até três salários mínimos e cerca de 70% de sua renda é comprometida com alimentação, moradia e transporte, existe um claro limite para essa expansão”, diz Pereira da Silva, da FGV. É importante considerar ainda que muitos países sofreram recentemente com excessos na concessão de crédito a quem não tinha como pagar suas dívidas. Felizmente, o Brasil tem um conjunto de regras que parece dar certo grau de segurança aos empréstimos. Por ora, o teto ainda parece estar longe — e a revolução do crédito tem tudo para continuar.