Salesio Nuhs, da Taurus: ele é também o presidente da Associação Nacional da Indústria de Armas (Ricardo Jaeger/Exame)
Mariana Desidério
Publicado em 14 de março de 2019 às 05h52.
Última atualização em 14 de março de 2019 às 05h52.
O catarinense Salesio Nuhs está acostumado a trabalhar num dos segmentos mais polêmicos e vigiados do universo dos negócios brasileiro. Há 28 anos, ele atua no mercado de armas e munições e, desde janeiro de 2018, é o presidente da maior fabricante de armas do país, a Taurus. Às perguntas sobre dilemas éticos de liderar uma empresa de armas num dos países mais violentos do mundo, Nuhs costuma dar uma resposta curta e direta. “Não produzo para matar, produzo equipamentos de defesa”, diz.
Os problemas aos quais Nuhs dedica sua atenção, na verdade, poderiam ser encontrados em companhias dos mais variados setores. A Taurus tenta se recuperar após anos de produção desorganizada, bagunça nas contas e denúncias de falhas nos produtos. E acumula prejuízo de quase 900 milhões de reais nos últimos cinco anos. Tudo isso atuando numa condição de virtual monopólio na fabricação e na venda de armas no Brasil — pelo menos até agora.
Facilitar o acesso a armas e acabar com o “monopólio da Taurus” foram bandeiras de campanha de Jair Bolsonaro. Um projeto de lei facilitando a posse foi uma das primeiras ações do novo presidente, no dia 15 de janeiro. O decreto, que já está em vigor, não mexeu nas regras para a indústria. Fundada há 80 anos em São Leopoldo, na Grande Porto Alegre, a Taurus se beneficia do R-105, um regulamento do Exército de 1936 que restringe a importação de produtos controlados fabricados no país. Isso faz com que o governo brasileiro praticamente só compre armas leves — as de uso individual, como pistolas — da Taurus, a única empresa nacional em condições de atender às exigências dos editais.
Só no último ano foram 13 licitações vencidas pela companhia. Alguns processos específicos acabam abertos a fabricantes internacionais, mas são exceções. Em setembro de 2018, o então presidente Michel Temer modificou o regulamento do Exército, facilitando a entrada de produtos importados. A vigência da nova regra, que deveria passar a valer no início de março, foi adiada por mais 120 dias pelo governo atual. “Se o governo abrir a importação, criará uma competição desigual. Produzimos no Brasil, pagamos muitos impostos e nos submetemos às normas regulatórias. É tanta burocracia que eu tenho 183 produtos na fila para serem liberados pelo governo”, diz Nuhs.
A Taurus passou a dominar quase sozinha o mercado local nos últimos 20 anos. Em 1997, o porte ilegal de arma de fogo se tornou crime. Em 2003, veio o Estatuto do Desarmamento. As restrições tiraram do jogo empresas de menor porte. Segundo dados do Sistema Nacional de Armas, há no país hoje 678.000 registros ativos de armas de fogo, ante 9 milhões que havia 20 anos atrás.
A composição da Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam) ilustra bem a concentração nas mãos da Taurus. A entidade reúne três empresas: a Rossi, comprada pela Taurus em 2008, a própria Taurus e a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), que comprou o controle da Taurus em 2014. O presidente da Aniam é o próprio Nuhs. Além delas, o país tem a Imbel, uma estatal de material bélico que fabrica fuzis, pistolas, munição e explosivos para o Exército.
Se, por um lado, a falta de concorrência deu à Taurus um mercado cativo, por outro, gerou um ambiente propício à acomodação. “Um fabricante não tem por que investir em tecnologia se existe um mercado reservado”, diz Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança.
Graças à Taurus, o Brasil é o terceiro maior exportador de armas leves do planeta, atrás de Estados Unidos e Itália. Os principais importadores são Estados Unidos, Canadá, Indonésia e Arábia Saudita. Isso no mercado legal. Não há informações confiáveis sobre o submundo do contrabando internacional. Entre as maiores fabricantes estão as americanas Ruger e Smith & Wesson e a austríaca Glock.
A Taurus exporta 84% da produção para 100 países e é a quarta maior no mercado americano, o maior do mundo. A companhia gaúcha tem uma fábrica na Flórida desde 1981. Com incentivo do governo da Geórgia, a fábrica será transferida para esse estado e até 2020 deverá dobrar a capacidade de produção para 800.000 armas ao ano, de olho na onda armamentista do governo de Donald Trump. Recentemente, a Taurus assinou um memorando de intenções para abrir uma sociedade na Índia, um dos maiores mercados do setor.
Mas, para os planos de expansão decolarem, a Taurus precisa superar uma queda na confiabilidade de seus produtos. A companhia responde a processos em Sergipe, Goiás e Distrito Federal por acusações de falhas e problemas na entrega. Por motivos semelhantes, chegou a ficar impedida de vender para o governo paulista por dois anos. Em janeiro deste ano, a Taurus firmou um acordo preliminar de 7 milhões de dólares com as autoridades dos Estados Unidos para encerrar um processo por uma possível falha em um equipamento.
Em sua defesa, a companhia diz que nenhuma perícia judicial comprovou que suas armas disparam sozinhas. Os disparos acontecem, segundo a empresa, por mau uso do equipamento. Na explicação da Taurus, a pistola vendida para as forças de segurança é uma arma de pronto emprego, ou seja, está sempre engatilhada. Ainda assim, a empresa produziu vídeos explicativos sobre o funcionamento de suas armas. Também fez algumas modificações no design das novas pistolas, com a inclusão de uma trava extra opcional, e reforçou os controles de qualidade. Pela lei, uma arma precisa ser testada com uma queda de 1,20 metro em um piso de borracha sem disparar. Na fábrica da Taurus, o teste usa uma queda de 2,60 metros no concreto.
A série de questionamentos está abrindo espaço para a concorrência no Brasil, em parte por pressão dos próprios policiais. A austríaca Glock já vendeu 70.000 armas para as forças de segurança no país, todas em editais que driblaram de alguma forma a exigência de compra de produto nacional, aproveitando restrições a produtos da Taurus.
Outra companhia que tem se aproximado do Brasil é a alemã Sig Sauer, que vendeu 21.000 armas no Brasil desde 2017 em processos de compras semelhantes. A empresa estuda instalar uma fábrica por aqui, com investimento previsto de 54 milhões de dólares. Outras que já aventaram entrar no país são a CZ, da República Tcheca, e a Caracal, dos Emirados Árabes. “Nosso maior mercado são os Estados Unidos, onde já concorremos com todas as principais marcas”, afirma Nuhs.
Com capital aberto desde 1982 e baixa liquidez na bolsa, a Taurus trabalha para sair de um buraco em que se meteu por desentendimentos entre os sócios. A primeira medida da nova gestão foi reordenar a produção, que ficou centralizada em uma só fábrica em São Leopoldo (antes eram três unidades no Brasil). A reorganização contou com investimento de 100 milhões de reais. “A fábrica não tinha organização nenhuma, isso aqui era uma Faixa de Gaza”, afirma Eduardo Zaccaron, gerente de engenharia da Taurus.
Todos os fornecedores passaram por um pente-fino. Boa parte dos processos foi automatizada para evitar erros humanos. A empresa também acelerou a inovação. Em 2017, lançou uma nova linha batizada de T Series, com pouca necessidade de manutenção e design específico para uso policial, assim como novas linhas de submetralhadoras e fuzis.
Em outra frente, a Taurus reestruturou sua dívida com os bancos, negociando um alongamento por cinco anos. A dívida total está em 887 milhões de reais. Os principais credores são Santander, Bradesco, Itaú e Banco do Brasil. Além disso, a empresa vai vender sua fábrica de capacetes e um terreno em Porto Alegre, e isso deverá ajudar a pagar os credores. A companhia comemora melhoras nos números, com resultado operacional positivo nos últimos 12 meses.
O esforço financeiro é reconhecido pelo mercado, mas a situação ainda é crítica, segundo a avaliação de Felipe Tadewald, especialista em investimentos da consultoria Suno Research. Ele não tem recomendado aos clientes a compra de ações da Taurus. “Houve uma modesta melhora nos números da empresa, com redução de custos e mais eficiência, mas a situação ainda é muito delicada”, diz Tadewald.
As ações da Taurus subiram mais de 100% em 2019, em grande parte pela expectativa de ampliação do mercado de armas brasileiro com a vitória de Bolsonaro — hoje a empresa vale cerca de 300 milhões de reais. Uma medida que poderia de fato mudar o panorama da empresa seria o alívio da carga tributária. Com cerca de 60% do preço em impostos, uma arma custa, em média, 4.000 reais no Brasil, tornando o produto proibitivo para boa parte da população.
As canetadas políticas devem manter a Taurus no foco nos próximos meses. A abertura de mercado, o grande risco no radar da empresa, foi posta em dúvida nas últimas semanas. Apesar de Bolsonaro ter se alinhado a uma agenda econômica liberal durante a campanha, algumas práticas até agora indicam o oposto. Em fevereiro, o presidente decidiu aumentar o imposto de importação de leite em pó vindo da União Europeia, atendendo à demanda dos produtores locais que temiam a concorrência. Não se sabe se com o setor de armas será diferente.
O ministro da Justiça, Sergio Moro, foi questionado pela oposição se teve reunião com o presidente da Taurus antes de editar o decreto que flexibilizou a posse de armas no país. O ministro não respondeu. Nuhs nega que tenha encontrado Moro. “Se eu tivesse competência para pressionar o governo, não pagaria a carga tributária que pago”, diz. Seja como for, o adiamento do decreto de Temer que facilita a importação de armas, previsto para o início de março, foi um alento para a fabricante gaúcha. “Há um embate no governo entre quem quer liberar ou não o mercado”, diz um executivo do setor. O governo não se manifestou. Por via das dúvidas, Nuhs e sua equipe afixaram na fábrica da Taurus uma faixa com o slogan de campanha do presidente: “Brasil acima de tudo”. Não custa nada.