Revista Exame

Por que a política se dividiu entre esquerda e direita

No livro O Grande Debate, que será lançado neste mês, o cientista político Yuval Levin busca as origens dessa cisão; leia um trecho inédito

Pintura da Revolução Francesa: o levante contra a monarquia iniciou a busca pelo progresso social (Josse/Leemage/Getty Images)

Pintura da Revolução Francesa: o levante contra a monarquia iniciou a busca pelo progresso social (Josse/Leemage/Getty Images)

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Raphaela Sereno

Publicado em 13 de julho de 2017 às 05h55.

Última atualização em 14 de julho de 2017 às 12h09.

São Paulo — O fim do século 18 foi um momento especial na Inglaterra. Influenciados pela independência dos Estados Unidos em 1776 e pela Revolução Francesa em 1789, políticos e pensadores do país debateram qual seria a influência desses movimentos na monarquia e na aristocracia britânicas. Na liderança da defesa dos valores tradicionais estava Edmund Burke, político e filósofo que combatia a ideia das reformas radicais daqueles movimentos. Do outro lado estava Thomas Paine, pensador libertário de grande influência no movimento de independência americano. Os dois trocaram cartas e publicaram uma série de textos contestando as ideias um do outro. Esse debate, para Yuval Levin, cientista político e jornalista, está na origem das divisões entre a esquerda e a direita que vemos até hoje na política.

No livro O Grande Debate, que será lançado neste mês no Brasil, Levin conta a história do embate de ideias entre Burke e Paine e como isso influenciou a política no Ocidente. Nascido em Israel, Levin é hoje um influente comentarista conservador nos Estados Unidos. A seguir, leia um trecho inédito de seu livro.

Qualquer pessoa que busque as origens de nossas ideias políticas é atingida pela importância dos eventos do fim do século 18. Entre 1770 e 1800, muitos dos conceitos, termos, divisões e argumentos cruciais que ainda definem a vida política surgiram no mundo de forma feroz e impetuosa. Foi a era das revoluções Americana e Francesa e, durante muito tempo, tivemos o hábito de atribuir a explosão da filosofia e do drama político na modernidade a esses dois levantes. A Revolução Americana — a primeira revolta colonial bem-sucedida — fez nascer uma nação que personificava o ideal do Iluminismo, ao passo que a Revolução Francesa iniciou a busca moderna pelo progresso social. O fundamento da política moderna foi forjado nas duas revoluções, ou assim dizem os livros.

Evidentemente, há muita verdade nesse clichê, mas essa é uma verdade parcial. De fato, o fim do século 18 foi palco de um grande debate sobre o significado do liberalismo moderno — um debate que, desde então, moldou a vida política da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e de uma crescente porção da humanidade. A Revolução Americana personificou o debate e a Revolução Francesa o intensificou, mas ele precede e sobreviveu a ambas.

As facções da luta na França — jacobinos e girondinos, monarquistas e aristocratas — não têm paralelo real na política contemporânea. Mas as facções do intenso debate anglo-americano sobre a Revolução Francesa — um partido do progresso e um partido da conservação — têm clara semelhança com partidos que hoje compõem a política de muitos países. As divisões que surgiram naquela época deram origem a elementos-chave da divisão esquerda-direita de nossos tempos. O debate tinha a ver com as promessas e os perigos das revoluções Americana ou Francesa e trouxeram à superfície uma discordância que jamais perdeu a proeminência.

Não há representantes melhores desse grande debate do século 18 do que os filósofos políticos Edmund Burke (1729-1797) e Thomas Paine (1737-1809). Burke era um político e escritor britânico, irlandês de nascimento; um homem de opiniões intensas e com um talento sem igual para expressá-las em retórica política. Foi o mais devoto e hábil defensor de sua época das tradições da Constituição inglesa. Reformador paciente e gradual das instituições de seu país, ele esteve entre os primeiros e mais inflexíveis e efetivos críticos da influência do radicalismo da Revolução Francesa na política inglesa.

Já Thomas Paine era um inglês que imigrou para os Estados Unidos e tornou-se uma das mais importantes e eloquentes vozes na defesa da independência. Quando a revolução começou na França, tornou-se um defensor da causa revolucionária, como ensaísta e ativista em Paris e Londres. Mestre da língua inglesa, ele acreditava no potencial do liberalismo iluminista para avançar a causa da justiça e da paz, ao desalojar regimes corruptos e opressores e substituí-los por governos que respondessem ao povo. Foi um brilhante e apaixonado defensor da liberdade e da igualdade.

Ambos eram homens de ideias e de ação — com retórica política poderosa e profundo comprometimento moral com uma causa. Ambos viram nos debates da época bem mais que as particularidades dos eventos que os iniciaram. Eles se conheciam, encontraram-se várias vezes, trocaram cartas e responderam publicamente aos textos um do outro. Sua disputa privada e pública sobre a Revolução Francesa foi chamada por especialistas de ‘o mais crucial debate ideológico jamais conduzido’. Mas a profunda discordância entre Burke e Paine se estende muito além de confrontos diretos. Cada um deles deu voz a uma visão de mundo diferente sobre as mais importantes questões do pensamento político liberal-democrático.

Este livro procura examinar essa discordância entre os dois e, com base nela, aprender tanto sobre a política daquela era quanto sobre a nossa. O conservadorismo reformador de Burke e o progressismo restaurador de Paine são mais complexos e coerentes do que parecem. E uma consideração cuidadosa pode esclarecer os debates de nosso tempo, especialmente a linha divisória de nossa política atual. Como Burke e Paine nos mostram, a linha entre progressistas e conservadores divide dois tipos de política e duas visões distintas da sociedade liberal.

A história de Burke e Paine

Os acadêmicos que estudam os textos  e a vida de Edmund Burke costumam se dividir. A principal questão é se Burke teve um conjunto consistente de opiniões durante a vida ou se a Revolução Francesa o transformou. Isso porque ele passou as primeiras duas décadas de sua carreira política defendendo reformas — das finanças do governo inglês, do tratamento das minorias religiosas, da política comercial e de outras. Passou grande parte do tempo lutando contra a inércia da política inglesa. Mas, depois da revolução na França, que ele temia que pudesse ser importada para a Grã-Bretanha, Burke transformou-se num defensor das tradições políticas inglesas. Opôs-se a todos os esforços para enfraquecer o poder da monarquia e da aristocracia inglesas, e também alertou contra as reformas na política (como os movimentos que defendiam a democratização), que poderiam separar a nação de suas longas tradições.

A imagem de um homem tentando equilibrar seu navio — ou equilibrar seu país num mar de problemas — contra as várias ameaças à sua preciosa estabilidade é a mais adequada a Burke. Ele foi um reformador quando os elementos da Constituição inglesa ameaçavam sufocar o país. Foi um preservador quando lhe pareceu que a revolução era a inimiga suprema da reforma. Estabilidade, para Burke, não é estagnação, mas uma maneira de pensar a mudança e a reforma, e a vida política em geral. Essa foi a metáfora central de seu pensamento político.

Já no caso de Thomas Paine a principal questão que divide os acadêmicos é ainda mais profunda: Paine realmente foi um pensador político ou apenas um panfletário e agitador? Embora ele tivesse uma habilidade retórica inquestionável, sua seriedade — sua preocupação com ideias políticas genuínas — às vezes é colocada em dúvida. Os críticos da época tentaram desconsiderá-lo como um raivoso criador de slogans ou, conforme disse o próprio Burke, como um homem sem ‘nem mesmo uma moderada porção de qualquer tipo de educação’.

Mas as acusações sempre foram tingidas por um esnobismo. Elas foram feitas por oponentes que consideravam a filosofia de Paine pouco séria e eram inclinados a ver seus defensores — sobretudo os que não correspondiam à imagem tradicional do filósofo culto — como pouco sérios. Paine não era um intelectual erudito, como Burke. Sua educação formal era mínima. Seus textos de fato não fazem referências a grandes pensadores. Ele tampouco participou diretamente da política, como Burke.

Contudo, os excelentes textos de Paine tiveram um imenso papel tanto na Revolução Americana quanto na resposta do mundo inglês à Revolução Francesa. Paine entendia a política como sendo movida por princípios e achava que os sistemas políticos tinham de responder aos ideais filosóficos — especialmente os de igualdade e liberdade. Para Paine, por mais estabelecidos e grandiosos que os governos pudessem ser, eles tinham de ser avaliados em função de quão bem defendiam esses valores humanos básicos.

Os princípios políticos eram fundamentais para Paine e apareciam com mais destaque em seus textos do que nos de Burke. Em uma carta de 1806, Paine escreveu: ‘Meu motivo e objetivo nas minhas obras políticas foi resgatar o homem da tirania e dos falsos princípios e dos falsos sistemas de governo, e permitir que fosse livre e estabelecesse um governo por si só’. Paine buscou teorias e ideias que fundamentavam a vida política e argumentou que somente um governo que respondesse às teorias e às ideias certas poderia fazer qualquer alegação de legitimidade.

A esquerda e a direita hoje

Precisamente porque tanto Burke quanto Paine eram pensadores e atores políticos, a disputa entre eles abre uma janela para as origens de nossa atual ordem política. Burke, por exemplo, costuma ser evocado por liberais contemporâneos preocupados em resistir a transformações dramáticas no estado de bem-estar social. Ninguém menos do que o ex-presidente Barack Obama, ícone da esquerda americana, se descreveu como seguidor de Burke, porque estava disposto a evitar mudanças súbitas.

Mas o maior legado de Burke e Paine é outro. Suas visões de mundo ainda descrevem duas amplas diferenças em relação à vida política em nossa era. A tensão entre elas pode ser observada em questões muito básicas da política, como: o relacionamento dos cidadãos deve ser definido, acima de tudo, pelo direito de livre escolha do indivíduo ou por uma rede de obrigações e convenções que não são de sua escolha? Queremos aliviar a pobreza usando dinheiro público para complementar a renda dos mais pobres ou ajudar os pobres a obter as habilidades necessárias para progredir?

Com frequência, o debate entre a esquerda e a direita ainda gira em torno dessas questões fundamentais. Mas os progressistas de esquerda atuais estão muitas vezes engajados numa luta para preservar um conjunto de programas sociais que seus predecessores construíram no século passado (com argumentos claramente burkeanos). Enquanto isso, os conservadores de direita buscam transformar as instituições governamentais recorrendo a argumentos dos princípios liberais clássicos que evocam Paine.

Na política cotidiana, ouvimos ecos de um debate que parece o remanescente da divisão entre capitalismo e socialismo, entre tradicionalismo e cosmopolitismo. Mas esses ecos são, de fato, lembranças da discordância no início da ordem política moderna. Essa discordância ganhou uma voz clara no debate entre Edmund Burke e Thomas Paine, e fica mais fácil compreendê-la quando prestamos atenção no que eles têm a nos ensinar.

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