Revista Exame

Perigo real ou medo em excesso?

O cancelamento de eventos e espetáculos na Europa e nos Estados Unidos levanta a questão: onde começa e onde termina a ameaça?

Estádio San Siro, em Milão.  (Marco Luzzani/Getty Images)

Estádio San Siro, em Milão. (Marco Luzzani/Getty Images)

Ivan Padilla

Ivan Padilla

Publicado em 12 de março de 2020 às 05h15.

Última atualização em 12 de março de 2020 às 05h15.

O mercado de luxo foi pego de surpresa ao receber um e-mail da Fundação da Alta Relojoaria de Genebra nas primeiras horas do dia 27 de fevereiro. O comunicado dizia que o Watches & Wonders de Genebra, salão realizado todo ano pelo grupo Richemont, que tem em seu portfólio marcas como Cartier, Montblanc e Panerai, estava sendo suspenso devido ao risco de contágio pelo coronavírus.

A surpresa não foi pelo cancelamento em si. Naquele momento, a infecção já estava fazendo as primeiras vítimas na Itália e, apenas um dia depois, o Salão do Automóvel de Genebra também seria suspenso. A diferença é que o evento do segmento automotivo aconteceria três dias depois. Já o salão de relojoaria tinha como data de início o dia 25 de abril, ou seja, dali a dois meses. Até lá, muita coisa ainda poderia acontecer.

A decisão foi precipitada? Essa era a discussão. Da mesma forma, dezenas de outros eventos do mercado de luxo e de entretenimento com previsão de aglomeração ou deslocamento de pes­soas vinham sendo cancelados na Europa e nos Estados Unidos, onde a infecção ainda apresentava índices baixos de infecção em relação à Ásia. Até o fechamento desta edição, a cada dez pessoas com o vírus, apenas uma residia em algum dos 41 países europeus atingidos — e menos de 1% dos casos havia sido registrado nos Estados Unidos. Por volta de 80% dos pacientes apresentam sintomas como coriza, tosse ou febre. Só um em cada 50 pacientes morre, geralmente idoso e com problemas cardíacos ou diabetes.

Não se está aqui menosprezando o risco. O surto desse novo coronavírus pode, sim, transformar-se em uma pandemia global. Segundo Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, a janela de oportunidade para conter o vírus está fechando. Epidemiologistas alertaram que dois terços dos casos podem estar subnotificados. A fase de contenção, em que as pessoas infectadas ficam em quarentena, não tem tanta eficácia nesse estágio. A fase de mitigação em resposta a uma epidemia, como fechamento de escolas e cancelamento de eventos, não evita o contágio, apenas ajuda a diminuir seu risco. Nos últimos dias, a velocidade de propagação vinha reduzindo na China, mas aumentando na Europa. Tampouco se está minimizando o temor, um sentimento de medida pessoal, que depende do histórico de vida, comportamental e social de cada indivíduo.

O que o surto do coronavírus coloca em perspectiva são as rea­ções coletivas em torno de uma ameaça, real ou imaginária. Vivemos hoje uma epidemia do medo, segundo o psicanalista Jorge Forbes (veja entrevista abaixo). Para a escritora americana Eula Biss, a paranoia tende a ser contagiosa. Depois de quase perder o filho durante o parto, ela escreveu Imunidade, mistura de ensaio pessoal com investigação científica sobre a fragilidade da vida em diversos aspectos. Citando outra pensadora, a também americana Eve Sedgwick, ela afirma que a obsessão tem um amplo alcance, que ocupa outras formas de pensar e, com frequên­cia, passa por inteligência. Teorizar com base em qualquer coisa que não seja uma postura crítica paranoica passou a ser ingênuo, religioso ou complacente.

Para o historiador americano Michael Willrich, as percepções de risco e os juízos intuitivos que as pessoas desenvolvem sobre os perigos de seu mundo podem ser extremamente resistentes às provas dos especialistas. Não tendemos a ter medo das coisas com maior probabilidade de nos prejudicar. Andamos de carro, de bicicleta, ingerimos bebidas alcoólicas. Ao mesmo tempo, alimentamos ansiedade em relação a coisas que, estatisticamente falando, representam pouco perigo. Segundo Willrich, tememos tubarões, enquanto os mosquitos são, em termos de vidas perdidas, provavelmente os animais mais perigosos do planeta.

As pessoas tendem a acreditar que os acidentes causam mais mortes do que as doenças, assim como o homicídio é mais letal do que o suicídio, quando o oposto é verdadeiro em ambos os casos. Foi o que comprovou Paul Slovic, professor de psicologia na Universidade de Oregon, autor de The Perception of Risk (sem publicação no Brasil). A primeira interpretação é que a maioria da população está errada sobre as ameaças. A percepção de risco, no entanto, pode ter menos relação com o risco quantificável do que com o medo imensurável. Nossos medos são formados por fatores diversos: história, economia, poder social, estigmas, mitos e pesadelos. Assim como acontece com outras crenças arraigadas, nossos medos nos são caros. Quando encontramos informações que contradizem nossas crenças, tendemos a duvidar das informações.

O medo é um sentimento abstrato, mas os prejuízos decorrentes do temor ao coronavírus são palpáveis — e, talvez, desproporcionais à dimensão real do problema. Somente o mercado de luxo deve sofrer perdas em vendas de até 43 bilhões de dólares neste ano, segundo pesquisa feita pelo Boston Consulting Group por encomenda da firma de gestão de ativos Bernstein. Foram consultados 28 executivos de marcas de luxo, em anonimato. Desse total, 43% disseram estar esperando impacto nas vendas nos próximos três a seis meses. A queda se deve principalmente à mudança nos hábitos de consumo dos chineses, responsáveis por cerca de 35% dos gastos no segmento de alta renda e 90% do crescimento desse mercado, segundo a consultoria Bain.

Semana de Moda de Paris: em desfiles como o da marca Dries Van Noten (acima), máscaras cirúrgicas descartáveis viraram acessório fashion entre a plateia | Anne-Christine Poujoulat/AFP

Cada mercado recebe o impacto de uma forma. O salão de relojoaria Watches & Wonders é o momento em que as marcas do grupo Richemont apresentam suas novidades para a imprensa e, principalmente, para os revendedores. Os donos de butiques de relojoaria convidados para os quatro dias do evento ganham hospedagem nos melhores cinco-estrelas e muitas vezes esticam a viagem pela Europa com a família. O paparico tem uma razão: o tamanho do pedido dos revendedores é o que vai calibrar o volume de produção ao longo do ano. Depois do cancelamento do evento, Baselworld, o outro grande salão de relojoaria global, rea­lizado na cidade suíça da Basileia, com participação de marcas como Rolex e Patek Philippe, também foi suspenso.

No negócio de relojoaria, o surto de coronavírus pode ajudar na atuação das marcas em mercados regionais. “Já percebemos aumento de movimento”, afirma Freddy Rabbat, diretor-geral da TAG Heuer no Brasil. “As pessoas estão deixando de viajar, mas não de consumir.” O segmento já vem crescendo. No último trimestre do ano passado, a venda de relógios cresceu 41,2% no Brasil em relação ao período anterior, segundo a Federação Suíça da Indústria Relojoeira. “Estamos prevendo um resultado até melhor neste ano”, diz Rabbat. Para o setor automotivo, um salão serve de vitrine de exposição. Com o cancelamento dos salões de Genebra e depois de Pequim, as montadoras devem investir em eventos menores locais.

Enquanto isso, grandes eventos continuam caindo. O Salão do Móvel de Milão, o mais presti­giado do setor, que reúne os principais designers, arquitetos e lojistas do mundo, passou de abril para junho. A ProWein, a mais importante feira de negócios do vinho do mundo, realizada em Dusseldorf, na Alemanha, cancelou a edição deste ano, que aconteceria em março. O South by Southwest (SXSW), maior festival global de inovação, em Austin, não será mais realizado. Nas semanas de moda europeia, em fevereiro, a plateia assistia aos desfiles com máscaras cirúrgicas. Para abril e maio estavam previstos os cruises, desfiles que as grifes realizam entre as coleções de inverno e verão. Gucci, Prada e Armani já suspenderam suas apresentações.

Até o futebol, o esporte das multidões por excelência, tomou um carrinho por trás do coronavírus. A Federação Italiana de Futebol decretou que os jogos fossem realizados sem público. “Uma torcida não vale a pena pela sua expressão numérica”, escreveu o cronista Nelson Rodrigues. “Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento.” Nos stadi de Milão e Turim, assim como nos eventos mundo afora, essa alegria das massas virou um ativo escasso nas últimas semanas.


“TER MEDO VIROU UMA VIRTUDE”

Para o psicanalista Jorge Forbes, passamos a temer tudo, da camada de ozônio ao glúten. Esse é o preço que pagamos por viver numa sociedade ocidental livre

O psicanalista Jorge Forbes: múltiplas escolhas nas comunidades geram angústia e paralisia | Divulgação

Estamos vendo o cancelamento de eventos com muita antecedência. O pânico pelo coronavírus é justificado?

Vivemos uma epidemia do medo. Temos medo de tudo: camada de ozônio, glúten, sexo, andar na calçada. De uma perspectiva ocidental, de uma sociedade de formação europeia, tivemos a quebra de um modelo padronizado, hierárquico e verticalizado, orientado pela autoridade do pai. Vivemos hoje numa sociedade muito mais livre, flexível, múltipla, líquida, sem amarras. Ao quebrar esses padrões, passamos a ter pela frente múltiplas escolhas, passamos a viver numa sociedade de escolha. Isso pode gerar uma grande felicidade de início, uma liberdade muito grande. Até percebermos que, ao escolher uma possibilidade, perdemos outras nove, o que vira motivo de angústia.

Qual é a consequência dessa angústia?

Uma das consequências é que a ética do medo imobiliza a criatividade humana, congela nossas atitudes. É o tal do ­Fomo (sigla em inglês para “­fear of missing out”), o medo de estar por fora de coisas legais, e isso nos paralisa. O contrário do medo é o entusiasmo. O medo é certo, o entusiasmo é um risco. Quando estamos com medo, não criamos nada. A criatividade implica riscos, e quando estamos com medo ficamos prevenidos, encolhidos, não queremos sair de nossa zona de conforto. Nessa hora surgem os riscos, aqueles que exploram nosso medo, os exorcismos dos padres da esquina, os livros de autoajuda.

Como podemos nos proteger do medo e sair dessa imobilidade?

A ansiedade por viver numa época sem padrões fixos leva as pessoas a erigirem símbolos de ­unificação. Em torno do medo nos unimos, pro­curamos viver uma experiência comum, com pessoas com dificul­dades semelhantes. Criamos laços até com pessoas que não conhecemos. No caso do coronavírus, chega a existir uma coisa lúdica no uso das máscaras — é um elemento que nos une em uma comunidade, uma tribo. Quem usa máscara virou parte de uma turma que não foi infectada e não quer ser infectada.

As pessoas estão deixando de viajar e se fechando em seu país. Isso pode aumentar reações como racismo e sentimento antiglobalização?

Acredito que sim. Estamos muito perdidos, tomados por uma histeria. Veja a chegada dos brasileiros que voltaram da China e ficaram em quarentena, foram tratados como o papa em visita ao Brasil. O medo pode criar, sim, novos tipos de racismo, agora contra certas nacionalidades: chineses, italianos, iranianos. Antes o mundo era muito mais organizado, estava dividido em identidades, até que veio a globalização e pôs em questão todos esses valores. A convivência se impôs, e com isso passamos a ter de lidar com as diferenças. Mas isso é algo bastante difícil.

O medo muda conforme a idade?

Houve uma inversão, na verdade. Quando éramos pequenos — isso ­para quem tem mais de 40 anos —, nossos pais diziam que medo era coisa de criança. Os adultos se colocavam numa posição de coragem, nos diziam que quando crescêssemos perderíamos o medo. Crescemos e no fim ficamos mais medrosos. O medo virou prudência, virtude.

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