Revista Exame

Otimismo de guarda-chuva em Davos

O tom do Fórum Econômico Mundial sai da administração de crises para a retomada do crescimento

A deslumbrante Davos: cenário do clássico de Thomas Mann, os Alpes suíços abrigam o maior bazar capitalista do mundo (Alexander Hassenstein/Getty Images)

A deslumbrante Davos: cenário do clássico de Thomas Mann, os Alpes suíços abrigam o maior bazar capitalista do mundo (Alexander Hassenstein/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h40.

Perguntado uma vez se era otimista, um político britânico respondeu há cerca de meio século: “Sim. Mas um otimista que não sai sem guarda-chuva”. É uma definição que cabe, de uma forma geral, para os 2 500 líderes do Fórum Econômico Mundial que se reuniram como de hábito para debates no final de janeiro em Davos, uma cidadezinha deslumbrante no topo dos Alpes suíços na qual Thomas Mann ambientou A Montanha Mágica. Depois de dois anos em que os ânimos em Davos refletiam a temperatura local em janeiro — com quedas de até 20 graus negativos — em razão da crise financeira global, os bons prognósticos retornaram. Mas sem efusão. O que se viu, conforme a definição que abre este artigo, foi um otimismo de guarda-chuva.

Basicamente, segundo um dos consensos de Davos em 2011, o mundo saiu de uma fase de administração de dificuldades para uma etapa de planejamento de retomada de avanço. Essa visão coincidiu com a publicação de um documento do FMI que prevê um crescimento global de mais de 4% neste ano. Os sorrisos em Davos ficaram parcialmente nublados não por razões econômicas — mas pelos acontecimentos extraordinários que irromperam subitamente no Egito, onde a população decidiu sair às ruas para pedir o fim de um governo corrupto e inepto que montou no poder há 30 anos e parecia interessado em se perpetuar como uma pirâmide.

Davos teve uma pista de que as coisas estavam complicadas no Egito quando a delegação egípcia cancelou sua tradicional participação no encontro sem dar explicações, poucos dias antes da eclosão dos protestos. Sinal dos novos dias, o caso egípcio preocupava em Davos o economista Nouriel Roubini muito mais que a situação dos grandes bancos mundiais ou coisa parecida. Roubini, conhecido como Doutor Catástrofe pelo teor de suas previsões, quase sempre corretas, aliás, enxergou antes que os outros, há poucos anos, o tamanho da crise dos créditos imobiliários podres.

Nestes dias em Davos, ele estava empenhado em montar uma discussão de última hora sobre o caso egípcio. Claro que ele não poderia deixar de dar suas opiniões honestas sobre as coisas no universo da política e da economia. Roubini afirmou que o mundo está sem lideranças. Disse que o G20 — o grupo que congrega curiosamente as 19 maiores economias do planeta, e não 20, como sugere o nome — se converteu, na verdade, em G Zero.


Não foi exatamente um tapinha nas costas do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que ocupa a presidência temporária do G20. Como Roubini, Sarkozy foi a Davos para falar — teoricamente — de sua visão para o G20. Ele acabou fazendo uma defesa veemente do euro, alvo de muitos vaticínios fúnebres por causa de crises em dominó nos países que aderiram à moeda. Sarkozy disse que a França e a Alemanha, as duas potências do euro, o defenderiam com todas as forças.

Numa reunião em que os horários eram respeitados devotadamente, Sarkozy submeteu a uma espera a plateia presente à sua apresentação. Não foi propriamente uma surpresa. Recentemente, a primeira-dama francesa, Carla Bruni, deixou escapar que, numa visita à Inglaterra, ela e o marido se atrasaram para um encontro com a rainha no Palácio de Buckingham porque estavam entregues a uma jornada matinal de sexo.

Sarkozy foi um de vários chefes de Estado presentes em Davos. Também estavam lá colegas seus, como Dimitri Medvedev, da Rússia, Angela Merkel, da Alemanha, e David Cameron, do Reino Unido. Medvedev, numa locução fria como a Sibéria, leu sua fala num iPad, o aparelho da Apple que foi a sensação tecnológica de Davos. Ali você tem, todos os anos, um retrato dos gadgets que fascinam as pessoas por estar nas mãos de participantes altamente influentes e fascinados por novidades da tecnologia. “Davos está feia por causa de tantos iPads”, escreveu um homem de negócios em seu Twitter. Pairam, de fato, dúvidas sobre a beleza do iPad.

Os chefes de Estado vão a Davos basicamente para vender as qualidades de seus países a uma plateia riquíssima. Nisso se distinguem de usuais convidados, como Bono Vox, Paulo Coelho e Peter Gabriel — aos quais Davos abre as enormes possibilidades de uma das maiores bocas-livres do planeta. No papel de supervendedores, os governantes querem atrair a simpatia e principalmente o dinheiro dos investidores.

O clube dos super-ricos

Cálculos confiáveis indicavam que os fundos de investimento representados em Davos em 2011 movimentam 3 trilhões de dólares. Sessenta e nove bilionários do mundo da lista da revista americana Forbes estavam lá também, a começar por Bill Gates. A fortuna deles combinada chega a 427 bilhões de dólares. Para presidentes e primeiros-ministros, Davos pode significar a assinatura de contratos para novos investimentos. O presidente do México, Felipe Calderón, por exemplo, anunciou em Davos dois novos investimentos de capital estrangeiro em seu país.


O premiê britânico, Cameron, destacou as virtudes de seu país e ao mesmo tempo os defeitos dos concorrentes quando se dirigiu aos investidores internacionais, numa pequena demonstração de que o mundo está distante da era da cooperação sonhada por utopistas bem-intencionados. Cameron afirmou que é melhor investir em nações estáveis política e juridicamente do que naquelas em que as regras podem mudar. É verdade que o capital se comove mais com altas taxas de juro do que com a beleza intrínseca à estabilidade de países democráticos, mas Cameron fez um bom ponto.

Foi uma alusão não tão indireta assim aos países emergentes. Outro dos consensos de Davos em 2011 foi que o poder no mundo está se distribuindo mais equanimemente agora, com a ascensão de países como China, Índia e Brasil. A presidente Dilma Rousseff pode ter perdido uma chance de, indo a Davos, mostrar a cara da nova administração e deixar claro à comunidade internacional de negócios que, ao contrário do que falou Cameron, as regras no Brasil são e serão respeitadas. Caso Dilma entenda futuramente que uma de suas funções mais preciosas é vender o Brasil — no bom sentido —, é provável que ela inclua Davos em sua agenda.

A chinamania

Faz já anos que a China, ao contrário do Brasil, tem uma presença vistosa em Davos. A China dominou muitas das discussões. Uma mesa-redonda promovida pela BBC teve como tema a perspectiva de a China substituir os Estados Unidos futuramente no papel de líder supremo do mundo. Um dos livros mais lidos e comentados em Davos era o provocativo When China Rules the World (“Quando a China dominar o mundo”), do acadêmico britânico Martin Jacques. Segundo ele, isso vai acontecer por volta de 2050. Jacques argumenta que um dos erros do Ocidente é ver a China com “olhos ocidentais”.

Menos solene, um artigo do blogueiro americano Andrew Larkin foi também avidamente discutido em Davos. Larkin mostrava quanto custa ser um “Homem de Davos”, para usar a expressão cunhada na década de 90 por Samuel Huntington, o mesmo autor da tese do choque das civilizações. (Huntington tinha uma visão negativa do “Homem de Davos”, para ele um egoís ta só interessado em suas próprias coisas.) Para fazer parte do grupo, você tem de pertencer a uma empresa que seja sócia do World Economic Forum, um negócio de 185 milhões de dólares anuais. Fundado e dirigido pelo empresário alemão Klaus Schwab, ex-professor de administração, o WEF admite vários graus de sociedade. O mais básico custa 50 000 dólares ao ano. Fora isso, o convite — sempre individual — para Davos está na faixa de 20 000 dólares.


Faz sentido? Do ponto de vista contábil, sem dúvida. Davos é um dos maiores bazares capitalistas do universo. As pessoas ali estão trocando cartões o tempo inteiro e tendo a oportunidade de iniciar negócios às vezes nem sequer sonhados. A executiva Indra Nooyi, presidente mundial da Pepsico, disse em Davos que teria de ter um dia de 50 horas para administrar direito os encontros de negócios ali. Indra era uma das poucas mulheres em Davos. Mesmo com os esforços da organização para elevar a presença feminina, apenas 16% dos líderes de Davos em 2011 eram mulheres. A própria Indra esgrimiu uma tese. O frio de Davos é para homens, não para mulheres.

Para Davos se sustentar como um fórum respeitado de ideias, só o dinheiro não basta. O prestígio do fórum depende de ele ser percebido como um lugar em que se debatem grandes ideias para supostamente promover o bem da humanidade. Sua pomposa missão é contribuir para melhorar o mundo. Aí começam os problemas. Nos últimos anos, o World Economic Forum perdeu espaço, no terreno das ideias, para iniciativas absolutamente distantes do perfil de bazar de negócios, como TED e Fora, organizações voltadas para discussões sobre o futuro. Em outras palavras, mesmo sendo um bazar, o World Economic Forum não pode ser visto como um bazar. O esforço de Schwab em dar feições nobres ao encontro de Davos se expressa numa série enorme de debates politicamente corretos. Em 2010, por exemplo, se discutiu em Davos até a prática de extirpação de clitóris em jovens mulheres de países islâmicos com uma retumbante e previsível condenação.

Se é visto apenas como um lugar para fazer dinheiro e trocar cartões de visita, Davos não atrai personalidades vitais para a repercussão mundial do encontro. Isso já vem acontecendo. Em anos passados, uma estrela da grandeza de Angelina Jolie foi a Davos como se estivesse indo a mais uma de suas missões de solidariedade para com os desvalidos do mundo. Hoje, Davos tem de se contentar com convidados como Paulo Coelho, uma semicelebridade, ou Peter Gabriel, um exroqueiro em atividade.

O WEF vive uma espécie de crise de identidade corporativa. O glamour do “Homem de Davos” ficou para trás. É ainda um formidável balcão de negócios. Mas, feliz ou infelizmente, isso não parece ser suficiente para manter o prestígio do fórum. Se as percepções não mudarem, o “Homem de Davos” pode estar condenado à extinção ou, simplesmente, a um tipo de irrelevância faustosa.

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