Iselde Kelbert, aromista sênior, e Ana Cláudia Tezza, aromista trainee: na Duas Rodas, gerações de aromistas criam os sabores de vários produtos que comemos (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter de Negócios
Publicado em 25 de janeiro de 2024 às 06h00.
Uma mesa repleta de quitutes como geleias e salgadinhos, além de energéticos e outras bebidas, preenche uma das salas mais importantes do laboratório da indústria de ingredientes Duas Rodas. Localizada no meio de um naco de Mata Atlântica em pleno centro de Jaraguá do Sul, cidade catarinense de 200.000 habitantes, a Duas Rodas é um dos exemplos mais completos de uma empresa brasileira que construiu uma reputação global numa atividade de nicho — e de altíssimo valor. O negócio dela usa processos químicos para transformar essências da natureza em pós e líquidos com sabor. Tudo isso para servir de matéria-prima a alimentos industrializados. Na sala das guloseimas, funcionários da Duas Rodas costumam receber clientes para degustarem sabores recém-criados. Sentada numa das cadeiras está a técnica de alimentos Iselde Kelbert. Com a mesma naturalidade com que respira, ela pega um dos copinhos de plástico à sua frente, cheira o produto e, na hora, decifra os ingredientes presentes. “Aqui tem uma nota mais cítrica, uma essência de pêssego, um composto mais adocicado”, diz ela, emendando a conversa ao falar de compostos químicos aromáticos também adicionados à composição do produto, como aldeídos, ésteres e álcoois. Há 40 anos Kelbert é aromista da Duas Rodas. A função dela é identificar as mais de 3.000 matérias-primas no portfólio da empresa. Tudo isso porque é também atribuição dela combinar uma essência com outra até formar um novo sabor.
Não é uma tarefa fácil. Um aroma de manga, por exemplo, é definido pela composição de mais de 250 substâncias, como óleos essenciais, vindos da própria destilação a vapor da fruta — o que é feito antes, por outros profissionais —, e químicos aromáticos, normalmente em pó. O aromista identifica a substância e a solicita por meio de uma biblioteca de matérias-primas, gerenciada também ali no laboratório. Como gerente de desenvolvimento de aromas, Kelbert comanda uma equipe de dez profissionais. Com um quê de alquimia, eles passam o dia de jaleco branco adicionando químicos e extratos naturais, pesando insumos, fazendo anotações e criando fórmulas para serem utilizadas em larga escala nas fábricas da empresa. E, depois, nos processos industriais dos clientes. Em regra, a função da Duas Rodas é criar um gosto incrível para o produto do cliente, numa composição mantida sob sigilo absoluto, digno da fórmula da Coca-Cola. A equipe de Kelbert tem um conhecimento apuradíssimo. Para ter uma ideia, o programa de trainee de aromistas dura quatro anos. O profissional só deixa de ser júnior após dez anos na função. Além de muita leitura de manuais de química, o trabalho exige provações elevadas. Para preservar a papila gustativa e o olfato, o consumo de alimentos condimentados deve ser evitado; cigarro, nem pensar. “Ficamos tão sensíveis ao gosto que, num supermercado, compramos as comidas e involuntariamente descobrimos os compostos que estão ali”, diz Kelbert. Embaixo da sala dos aromistas, um espaço reproduz as linhas de produção dos clientes. Tem de tudo por ali: uma máquina de refrigerantes, outra de pão, de bolos e de sorvetes. “A ideia é saber se os aromas criados aqui terão uma boa reação quando assados ou fritos”, diz Kelbert.
Ao longo de nove décadas, a Duas Rodas virou a maior fábrica de ingredientes da América Latina. A julgar pelo ritmo de expansão dos últimos anos, a empresa pode entrar na liga das maiores do mundo. De 2019 para cá, o faturamento praticamente dobrou. No ano passado, foi de 1,6 bilhão de reais. Entre os concorrentes globais da Duas Rodas está a irlandesa Kerry Group, cujo faturamento está na casa dos 10 bilhões de dólares, além das suíças Givaudan (receita anual de 8,2 bilhões de dólares, dos quais 54% vêm de aromas e sabores) e Firmenich (4,9 bilhões de dólares).
Por trás do crescimento expressivo da Duas Rodas estão mudanças profundas nos hábitos alimentares. A preocupação com saúde e bem-estar virou do avesso a dieta de muita gente, sobretudo na geração Z. Tudo isso abriu espaço para foodtechs ganharem mercado em cima de gigantes com produtos novos e ingredientes inovadores. Muitos deles dependentes das essências fabricadas pela Duas Rodas. “Ficamos colados no cliente para criar produtos que eles nem sabem que precisam, mas ficam interessados em comprar quando degustam”, diz Leonardo Fausto Zipf, CEO da empresa e membro da terceira geração da família proprietária. O nome dos clientes também é segredo absoluto por ali. As próprias empresas alimentícias ou de bebidas evitam associar-se publicamente à Duas Rodas com medo de os concorrentes descobrirem de onde vêm os sabores dos produtos — o ativo mais estratégico de seus negócios. Atualmente, além de aromas, os aromistas da Duas Rodas produzem extratos botânicos, recheios, condimentos, aditivos e insumos para sorveterias e confeitarias. A produção é feita na sede, em Jaraguá do Sul, ou em fábricas nos estados de São Paulo e Sergipe, além de unidades no Chile, na Colômbia e no México. O ar nas fábricas costuma misturar cheiros de todo tipo. Para evitar contaminação cruzada, a produção é organizada de modo que os sabores de cheiro neutro, como a baunilha, sejam fabricados no início da semana. Os mais fortes, como o chocolate, saem na sexta-feira — dia em que a reportagem da EXAME esteve no local. A produção é vendida para 39 países com a ajuda de escritórios comerciais na China e nos Estados Unidos.
A ambição global da Duas Rodas ganhou um impulso relevante no começo de janeiro com a aquisição da Tropextrakt, uma empresa de Frankfurt, na Alemanha, dedicada à importação e distribuição de extratos botânicos e insumos naturais de frutas tropicais. Com a compra, o foco é ampliar o investimento em alimentos funcionais, ou “superalimentos”, nome dado àqueles com alguma promessa de bem-estar para o corpo. “A Europa é o berço do desenvolvimento dos produtos saudáveis que depois vão para o mundo inteiro e são consumidos em escala nos Estados Unidos”, diz Rosemeri Francener, diretora de negócios internacionais da Duas Rodas. “Com a compra, vamos desenvolver e pesquisar produtos na Europa, além de ficar mais próximos de nossos clientes e das tendências de alimentação funcional.” Fundada em 2002, a alemã tem cerca de 1.000 clientes. No portfólio estão nomes presentes na casa de muita gente, como afabricante de cereais Dr. Oetker e a farmacêutica Bayer.
A pegada da Tropextrakt é oferecer aos clientes a chance de utilizar ingredientes considerados exóticos por terem produção centralizada numa região do globo. Na lista estão o açaí do Brasil, o coco das Filipinas e o goji da China. Além de importar insumos para alimentos e bebidas, a empresa alemã opera um laboratório de testes de ingredientes nos moldes do mantido pela Duas Rodas. Com a aquisição, o espaço vai virar um centro de inovação e tecnologia para a indústria de suplementos alimentares e de superalimentos. A aposta é crescer num dos nichos mais promissores da indústria global de alimentos. Em 2022, o mercado de ingredientes para bebidas e alimentos funcionais movimentou 109 bilhões de dólares. Até 2030, o número deve crescer 53%, segundo a consultoria Precedence Statistics. A aquisição também vai permitir à Duas Rodas exportar para 21 novos países, hoje atendidos somente pela Tropextrakt. Em quatro anos, a meta é chegar a 25% do faturamento da Duas Rodas com exportações — atualmente a fatia é de 18%. No longo prazo, o “sonho grande”é ter praticamente metade das receitas vindas de fora do Brasil. Para isso, a aposta é continuar com aquisições lá fora. “Sabe aquele jogo de War, em que você vai conquistando territórios no mapa-múndi? Queremos ir conquistando espaços assim com a Duas Rodas”, diz Zipf. “A ideia é levar toda a riqueza da biodiversidade brasileira para o mundo, preservando as regiões onde os frutos são produzidos e ensinando pessoas de fora do país a usar esses ingredientes.”
Com a aquisição da Tropextrakt, de certa forma a Duas Rodas retorna às origens. O negócio começou em 1925, quando dois alemães chegaram à região de Jaraguá do Sul, cidade que, assim como Blumenau, Pomerode e Joinville, nasceu a partir de uma colônia de imigrantes da Alemanha. O químico-farmacêutico Rudolph Hufenüssler e sua mulher, a física Hildegard Hufenüssler, embarcaram num navio rumo ao Brasil com um pequeno destilador de essências. O objetivo era extrair óleos essenciais de frutas brasileiras. Os dois vinham de Mainz, cidade no sudoeste da Alemanha, cujo brasão são duas rodas com uma cruz no meio. Ao desembarcar, trataram de usar a mesma imagem para representar o negócio recém-criado. “Mesmo chamada de Indústrias Reunidas Jaraguá do Sul, os clientes insistiam em pedir os produtos ‘daquela empresa de duas rodas’”, diz Zipf. A mudança de nome veio em 1992 e ainda gera conversas entre os clientes. “Todo mundo pergunta isso. É uma boa maneira de apresentar a empresa”, diz ele. O storytelling é relevante para a Duas Rodas porque, apesar de bilionária e quase centenária, a empresa acaba ficando à sombra dos clientes, normalmente grandes indústrias alimentícias cujas marcas costumam estar na ponta da língua dos consumidores.
Nesse tempo todo, a fórmula para crescer foi manter a agilidade nas tomadas de decisão, sobretudo em momentos críticos. O último deles foi a pandemia. Um dos principais sintomas da infecção por covid-19 é a perda do olfato e do paladar, dois sentidos vitais para o trabalho do aromista. Na fase mais aguda da crise sanitária, quando ainda não havia vacinas, a Duas Rodas montou esquemas para minimizar o contato dos aromistas com o restante dos 1.700 funcionários. “Tivemos de ter resiliência para encarar aquele momento”, diz Zipf.
Olhando para o futuro, o fato de a Duas Rodas ter nascido no Brasil pode dar uma vantagem competitiva à empresa diante das concorrentes estrangeiras. “O Brasil é um grande celeiro, tem muita fonte de matéria-prima para a cadeia de aromas”, diz Maria Eugenia Proença Saldanha, diretora-executiva da Abifra, a associação brasileira de ingredientes, fragrâncias e aromas. “E a Duas Rodas sabe mapear isso e desenvolver tecnologias.” Entre as criações da empresa reconhecidas pelo mercado como inovadoras estão extratos naturais de frutas brasileiras, como a acerola. Nos últimos anos, o olhar redobrado ao bioma brasileiro acelerou o ritmo de novos produtos. Hoje, 23% do faturamento da Duas Rodas vem de produtos criados nos últimos três anos. A guinada da empresa tem sido acompanhada de perto pelos gigantes do setor, todos de alguma maneira também apostando as fichas em extratos naturais capazes de servir de ingredientes aos alimentos funcionais. Em 2020, a Givaudan comprou 40% da francesa Naturex, fabricante de extratos botânicos para aromas e uma concorrente direta da Tropextrakt, por 522 milhões de euros. O plano de crescimento da Givaudan é dobrar de tamanho até 2030, basicamente com ingredientes para uma alimentação saudável. Firmenich e Kerry Group têm metas semelhantes. Até pouco tempo atrás, o desafio do mercado dos alimentos funcionais era fazer as pessoas superarem um sabor por vezes insatisfatório em nome da saúde. “Houve uma mudança forte na pandemia, quando as pessoas valorizaram demais a própria imunidade”, diz Ary Bucione, CEO da NutriConnection, consultoria do mercado de alimentação saudável. “A indústria entrou de cabeça na tendência, com o desenvolvimento de produtos saudáveis e também gostosos.”
Com concorrentes adotando uma estratégia mais ou menos parecida, o contra-ataque da Duas Rodas envolve investimentos em inteligência artificial. Nos últimos meses, ela criou uma plataforma para captar dados sobre consumo de alimentos ao redor do mundo. O motivo: descobrir os ingredientes em alta e, assim, ajustar o trabalho de criação de sabores — e o da produção em massa de aromas. “Ela analisa até se vai chover, porque isso interfere no consumo de sorvete”, diz Lucimar Coelho, diretor de operações industriais da Duas Rodas. “Isso interfere no consumo dos nossos ingredientes.” A inteligência artificial também alimenta o centro de controle da linha de produção. A estrutura, com várias telas interligadas, lembra a torre de controle de um aeroporto. As imagens mostram cada ponto da linha de produção e da logística dos produtos até os clientes. A tecnologia destaca pontos de melhoria nos processos e, desde a adoção, já permitiu reduzir em 10% os estoques armazenados nas fábricas — uma economia de 20 milhões de reais. Além disso, ajustes no modo de produção elevaram a capacidade de algumas fábricas em 30%.
É da mistura de inovação com uma arte quase milenar de extração de aromas que o crescimento da Duas Rodas vem se desenvolvendo. No meio do caminho há desafios. A guinada a um mundo com apetite pelos alimentos funcionais traz consigo a perda de valor dos ingredientes sintéticos. Muita gente os associa às fórmulas de guloseimas e de alimentos de baixo valor nutricional. A Duas Rodas trabalha com muitos aromas sintéticos. O desafio, aqui, é desmistificar a ideia de que eles são menos seguros do que os naturais. “A regulação do tema é rígida ao redor do mundo e busca os maiores padrões de qualidade”, diz Saldanha, da Abifra. “Se está sendo usado, é porque é seguro, mas o setor tem o desafio de comunicar isso para os consumidores.” As leis de outros países sobre o que é permitido ou não num alimento também podem azedar a ambição global da Duas Rodas. As definições de aromas naturais variam entre os Estados Unidos e a União Europeia conforme a produção do ingrediente. A vanilla, utilizada na baunilha, é considerada natural na União Europeia com qualquer tipo de fermentação. Nos Estados Unidos, só é considerada natural ao ser fermentada com ácido ferúlico. A adequação às regras pode levar um tempo. A solução é ir trilhando o crescimento com paciência, assiduidade e perseverança, características que o cantor Jorge Ben Jor listou para descrever os alquimistas, aqueles que trabalham sob leis herméticas de trituração, fixação, destilação e a coagulação. Mas bem que ele poderia estar falando, também, dos aromistas. E, considerando o plano de expansão da Duas Rodas, dá para dizer: os aromistas estão chegando — e querem conquistar o mundo.