Revista Exame

Amianto faz sócio virar inimigo

Antigas aliadas na produção de amianto, Eternit e Brasilit se engalfinham em torno da proibição do uso do minério no Brasil

Martins, da Eternit, e Corrêa Netto, da Brasilit: briga nos bastidores pela liderança de um mercado de 2 bilhões de reais (Germando Lüders/EXAME.com)

Martins, da Eternit, e Corrêa Netto, da Brasilit: briga nos bastidores pela liderança de um mercado de 2 bilhões de reais (Germando Lüders/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h40.

Em dezembro de 2008, o quadro Lar Doce Lar, comandado por Luciano Huck em seu programa semanal nas tardes de sábado, na Rede Globo, ganhou um patrocinador desconhecido de parte do público. Na época, a Brasilit, divisão do grupo francês Saint-Gobain, passou a fornecer telhas para as moradias que passassem pelo extreme makeover do apresentador. Desde então, em seus programas, Huck frisa que os produtos são “totalmente livres de amianto”, numa clara estocada ao produto da principal concorrente da Brasilit, a Eternit, líder desse mercado, com 30% de participação, que tem no mineral sua principal matéria-prima.

O troco veio exatamente dois anos depois, quando a Eternit passou a ser um dos patrocinadores de um quadro semelhante de reformas no programa Domingo Legal, do SBT. A briga midiática é a face pública de uma batalha entre as duas empresas que já se arrasta há quase uma década — e que ganhou um tumultuado novo capítulo em dezembro de 2010. Na ocasião, a Brasilit distribuiu a 5 000 parlamentares, ministros, governadores e prefeitos um estudo realizado pela Unicamp segundo o qual seria possível banir o amianto do país sem que isso gerasse nenhum impacto econômico significativo. (O minério foi totalmente vetado em 58 países da Europa em 2005, com a alegação de provocar câncer de pulmão em quem lidava diretamente com ele.) “O amianto é um produto tóxico e precisa ser totalmente banido no Brasil”, diz Roberto Netto, diretor-geral da Brasilit.

Concorrência

Por trás da discussão sobre os perigos do amianto está a disputa por um mercado que movimenta quase 2 bilhões de reais por ano. A tensão entre Brasilit e Eternit surgiu entre 2001 e 2007, quando quatro estados brasileiros — Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo — decidiram abolir de vez o uso do material (no resto do país é permitido o uso do amianto do tipo crisotila, utilizado pela Eternit atualmente). Juntos, esses estados respondem por mais da metade das vendas de telhas de amianto no país, empregadas principalmente nas construções voltadas para a baixa renda.

A fim de conquistar esses mercados recém-abertos, a Brasilit apresentou às lojas de material de construção produtos à base de uma fibra alternativa, conhecida como PP. No mundo todo, a
divisão da Saint-Gobain é a única a dominar a tecnologia que permite empregar esse material na fabricação de telhas .“É muita coincidência que a proibição ao uso do amianto tenha ocorrido especificamente nos estados em que a Brasilit tem fábrica”, diz o executivo Élio Martins, presidente da Eternit.

Por uma dessas ironias que às vezes surgem no mundo dos negócios, as duas empresas, que hoje se engalfinham, já foram muito próximas. A Brasilit foi acionista da Eternit entre 1990 e 2003. Naquele último ano, a companhia encerrou uma sociedade com a hoje rival na Eterbrás, empresa criada para fabricar produtos à base de amianto para Eternit e Brasilit. A parceria terminou quando os franceses decidiram sair do negócio de amianto no Brasil assim que o produto foi banido na Europa.


Briga nos bastidores

Apesar das alfinetadas públicas, é nos bastidores que a disputa é mais aguerrida. Há dois anos, a Eternit apoiou um estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo demonstrando o impacto econômico provocado por uma eventual proibição no uso de amianto no Brasil. Segundo o estudo, o país perderia 170 000 empregos e assistiria a uma súbita elevação nos preços de produtos alternativos, levando a um “desequilíbrio concorrencial”. A papelada foi distribuída a deputados, senadores e órgãos do governo. Parte dos ataques das duas companhias se dá por meio de entidades de classe, que se encarregam de encomendar estudos, se reunir com políticos e até organizar caravanas de trabalhadores a Brasília.

Por meio do Instituto Brasileiro de Crisotila (IBC), a Eternit conta com o auxílio de dois escritórios de advocacia na capital federal — Ferraz dos Passos e Maurício Corrêa Advogados (do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Maurício Corrêa). Eles reuniram um time de cinco profissionais que têm a missão de derrubar eventuais leis a favor do banimento do amianto que surjam no STF. Paralelamente, o consultor Eduardo Bismarck ficou encarregado de conferir, diariamente, a pauta de discussões no Congresso Nacional — toda vez que o assunto entrasse na agenda, um grupo de 250 trabalhadores ligados à produção de amianto se uniria para impedir a votação. A tática foi utilizada — e funcionou — 30 vezes ao longo de 2010.

A estratégia da Brasilit é similar. A empresa é representada pela Associação Brasileira das Indústrias de Fibrocimento (Abifibro). Além disso, o técnico João Carlos Paes, ex-funcionário da Brasilit, foi destacado como lobista junto a órgãos do governo. Seu trabalho consiste em organizar seminários e encontros para defender o banimento do amianto no país. Foi dele a iniciativa de procurar a Vigilância Sanitária de São Paulo, em 2009, para convencer o órgão a verificar se as lojas de material de construção estavam obedecendo à proibição de venda de produtos feitos à base de amianto. Só no ano passado, essas blitze detectaram 65 irregularidades.

O futuro das duas empresas está diretamente ligado ao que ficar resolvido em torno do total banimento (ou não) do amianto no Brasil. A Eternit tem 60% de sua receita baseada na venda de produtos feitos com o minério. Para a Brasilit, a questão é também crucial. Atualmente, a empresa tem uma participação de mercado de 19% — a proibição ao uso do amianto a colocaria numa posição privilegiada para atacar um mercado que cresce no ritmo do setor de construção civil, ou 10% ao ano. “A disputa é para ver quem vai surfar melhor a onda do crescimento do mercado imobiliário”, diz Felipe Miranda, analista da empresa de pesquisa Empiricus. É pouco provável, no entanto, que a solução do impasse esteja próxima. Estima-se que a substituição das telhas de amianto por outras que não usam esse material represente um aumento de custos de 30% — o que teria um impacto alto na construção de casas populares, por exemplo. Até que exista uma eventual definição, as ex-sócias prometem continuar em pé de guerra.

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