Revista Exame

Como a Eletrobras tenta se reerguer após anos de má gestão

Supersalários, corrupção, custos explosivos — sob o comando de Wilson Ferreira, a Eletrobras tenta deixar de ser um símbolo do Brasil que deu errado

Wilson Ferreira Júnior, da Eletrobras: “Precisava ser um desafio tão grande assim?”  (Germano Luders/Exame)

Wilson Ferreira Júnior, da Eletrobras: “Precisava ser um desafio tão grande assim?” (Germano Luders/Exame)

AP

Ana Paula Ragazzi

Publicado em 3 de dezembro de 2016 às 05h55.

Última atualização em 3 de dezembro de 2016 às 05h55.

São Paulo — Na madrugada de 11 de outubro, mais precisamente às 3h48 da manhã, Wilson Ferreira Júnior respirou aliviado pela primeira vez desde que assumiu a presidência da Eletrobras, estatal brasileira de energia, em agosto deste ano. Naquele minuto, Ferreira conseguiu entregar à SEC, agência que regula o mercado financeiro americano, os balanços auditados da empresa dos anos de 2014 e 2015. Aquela era a data-limite estabelecida pela SEC para que as informações fossem entregues.

Caso Ferreira não conseguisse, a estatal seria expulsa da bolsa de Nova York, transformando-se de vez em pária do mercado financeiro internacional. Para qualquer uma dos milhares de empresas normais que têm ações listadas na bolsa americana, entregar balanços a cada ano é tarefa elementar. O básico. Para a Eletrobras, uma carcomida estatal que parece viver num mundo paralelo, foi um feito e tanto. Ferreira teve de coordenar uma força-tarefa para botar de pé os balanços atrasados.

Foi uma vitória comemorada, e justamente. Mas, apesar da alegria daquela madrugada, era impossível mascarar a realidade: para que a situação da maior empresa de energia do país ficasse ruim, seria preciso melhorar muito. Assolada por anos, décadas de má  gestão, descaso, uso e abuso governamental, a Eletrobras tenta se reerguer sob o comando de Ferreira, engenheiro de 57 anos que fez carreira no setor elétrico e presidiu, por 16 anos, outra empresa do setor, a CPFL.

O atraso na publicação dos balanços era apenas um sintoma da doença que vinha comendo as entranhas da Eletrobras. A empresa está metida numa série de denúncias de corrupção originadas nas investigações da Operação Lava-Jato, e precisava estimar o prejuízo causado pela roubalheira. Aquela era a razão específica para a lentidão na publicação dos balanços. Mas, assim como aconteceu com sua coirmã Petrobras, a corrupção representa apenas parte do problema da Eletrobras.

Vitimada por um descontrole operacional difícil de compreender, projetos grandiosos sem retorno e intervenções desastradas do governo federal, a estatal perde muito dinheiro. De 2012 a 2015, a Eletrobras teve um prejuízo somado de 31 bilhões de reais. Com uma dívida de 45 bilhões de reais, não tem fôlego para o futuro. O buraco se deve, em parte, à Medida Provisória 579, editada em 2012.

Para reduzir as tarifas de energia, o governo permitiu que as empresas do setor renovassem suas concessões desde que seguissem uma nova metodologia de cálculo de preços que poderia diminuir suas receitas em até 70%. Os acionistas minoritários da Eletrobras protestaram, mas, como o governo é o dono, a companhia aceitou os novos termos. Em janeiro, a companhia chegou a valer, em bolsa, parcos 7 bilhões de reais, uma fração de seu patrimônio e de sua receita, que foi de quase 40 bilhões de reais no ano passado.

Ferreira foi convidado logo após a troca de governo. “No início, dá desespero”, diz ele, que, como qualquer executivo que se preze, justifica a decisão de aceitar o convite do novo governo por ser “movido a desafios”. Mas logo emenda, meio rindo: “Precisava ser um desafio tão grande assim?” Há muito se sabe que o problema da Eletrobras não é de diagnóstico, mas de execução. Há dois anos, o conselho de administração da companhia contratou a consultoria Roland Berger para elaborar um plano de ação para tirar a companhia da crise.

Nada saiu do papel. Ferreira ganhou do governo a promessa de autonomia para colocar os projetos em andamento. No plano mais imediato, o objetivo é tirar a Eletrobras da beira da insolvência. Em paralelo, transformá-la numa empresa administrável, o que não é o caso hoje. O Grupo Eletrobras é a maior empresa de energia da América Latina. Atua em geração e transmissão por vocação —  e em distribuição a contragosto.

Nos anos 90, chegou a valer mais na bolsa do que a Petrobras e o Banco do Brasil, mas a situação foi se deteriorando à medida que os anos passavam. Hoje, a dívida da companhia equivale a oito vezes sua geração de caixa — um número considerado insustentável. As sete distribuidoras sugam 2 bilhões de reais por ano em prejuízos.

Antes mesmo da chegada de Ferreira, o conselho já havia decidido privatizá-las — ao mesmo tempo levantava dinheiro para melhorar a situação financeira do grupo, tornando a gestão do conglomerado mais racional. A venda das distribuidoras é um sonho antigo, que remonta aos anos 90, mas nunca foi posta em prática. Em julho, o governo publicou uma medida provisória autorizando o processo, que deverá ser concluído em dezembro de 2017.

O primeiro leilão, da Celg (distribuidora de Goiás), foi marcado para o dia 30 de novembro, depois do fechamento desta edição de EXAME. Para financiar gastos emergenciais até que a venda de ativos comece a levantar dinheiro, o governo liberou também aportes de 4,5 bilhões de reais. Talvez o pedaço mais difícil da missão de Ferreira seja justamente o segundo — fazer da Eletrobras uma empresa normal.

O grupo é dividido em 13 subsidiárias e tem participações minoritárias em 178 sociedades de propósito específico (SPEs), como são chamados os diferentes projetos da companhia. Se o novo  presidente quisesse conhecer pessoalmente cada uma delas, não daria conta de fazê-lo em um ano. Nesse bolo, estão incluídos megaprojetos de geração, como as usinas hidrelétricas de Belo Monte, Jirau, Teles Pires e Santo Antônio.

A única coisa em comum a todas essas SPEs é a participação minoritária da Eletrobras, entre 25% e 40%. Os sócios da empresa em cada projeto são diferentes e os contratos, que determinam as obrigações e a remuneração dos sócios, seguem padrões distintos. As subsidiárias têm vida própria e são apelidadas dentro do grupo de “descontroladas”. Cada uma faz o que quer, como se não tivesse dono.

A Eletrobras já afirmou, num exemplo grotesco, que não monitorava o combustível consumido por uma de suas subsidiárias, a Amazonas Energia, que tem hoje uma dívida de 7 bilhões de reais com a Petrobras. Em leilões de venda de energia, Furnas, Chesf, Eletronorte e CGTEE, outras “descontroladas”, entravam competindo entre si e baixando os preços. Dois anos atrás, a cúpula da Eletrobras soube pela imprensa que Furnas, sua subsidiária de geração e transmissão, pensava em abrir o capital.

Além de os controles serem precários, não há padrão para sistemas operacionais e cada empresa usa os serviços de uma empresa de auditoria. Ferreira foi para os conselhos de administração das subsidiárias e está passando um pente-fino nas SPEs e em seus projetos, muitos deles atrasados. Vendê-las será um desafio. As SPEs foram criadas na era Lula-Dilma sem nenhuma pretensão de dar retorno (o objetivo era ajudar a desenvolver o país e ganhar dinheiro mais tarde, com o crescimento da economia, e deu no que deu).

A projeção de investimento para os próximos anos caiu 30%. Ferreira espera reduzir o endividamento da empresa para quatro vezes sua geração de caixa — sobretudo com a venda das SPEs —, reduzir o volume de investimentos, melhorar a eficiência e os controles internos, enxugar o quadro de funcionários e vender participações nas distribuidoras. No total, espera arrecadar 5 bilhões de reais.

Até agora, pelo menos, Ferreira não trocou nenhum diretor, mas ajudou a formar um novo conselho, com nomes prestigiados, entre eles Ana Paula Vescovi, secretária do Tesouro Nacional, Esteves Pedro Colnago Júnior, secretário executivo adjunto do Ministério do Planejamento, a advogada Elena Landau, que está se dedicando às privatizações, e o consultor Vicente Falconi, que tem a missão de melhorar a eficiência administrativa. Também estão de volta José Luiz Alquéres, que já foi do conselho de várias empresas do grupo, e Mozart Araujo, que já comandou a Chesf.

Em tese, a Eletrobras é uma espécie de empresa dos sonhos de qualquer reestruturador. A quantidade de custos escandalosos é enorme. O grupo tem 24 000 funcionários, metade deles em funções corporativas. Estima-se que pelo menos 200 deles recebam o dobro do salário do próprio Ferreira (de 50 000 reais). Acumularam aumentos ao longo de décadas de empresa e hoje custam 300 milhões de reais por ano. “Tem anuênio, quinquênio, incorpora uma função gerencial, ganha uma  gratificação, e as coisas vão acumulando”, diz Ferreira.

No Rio de Janeiro, seis empresas do grupo ocupam prédios diferentes; o mesmo acontece  com outras quatro em Brasília, onde nove motoristas ficam à disposição da presidência. Nos próximos meses elas passarão a ocupar juntas um prédio no Rio e outro em Brasília. Ferreira ainda nem sequer foi apresentado a todos os seus assessores diretos. Na prática, porém, o caminho rumo à racionalidade é cheio de obstáculos típicos do mundo estatal.

Os cortes de pessoal acontecerão à medida que as distribuidoras forem vendidas e os funcionários aderirem a um plano de demissão e aposentadoria voluntárias que deverá custar 2,5 bilhões de reais — cerca de 40% dos funcionários têm 51 anos ou mais. A Eletrobras não adota nenhum mecanismo de incentivo ao desempenho, como bônus por cumprimento de metas. Um comitê liderado por Vicente Falconi está elaborando um modelo para implantar a tal “meritocracia” no grupo. Até lá, Ferreira vai se virando como pode.

Quanto tempo vai levar, no ritmo atual, para que a Eletrobras deixe de ser esse monstrengo? O plano de Ferreira tem prazo para acabar — cinco anos. Como a situação atual é muito ruim, é fácil imaginar que as coisas evoluam nesse período. Mas existem, claro, riscos. Segundo os analistas do banco Morgan Stanley, entre os principais estão as investigações sobre corrupção, a capacidade de Ferreira de implementar o plano e se ele terá, de fato, o apoio do governo.

Por enquanto, os sinais que vêm de Brasília têm sido positivos. “A questão não é ter carta branca ou não. O fato é que, se essa reorganização não for feita, não haverá Eletrobras para contar história”, disse a EXAME Fernando Bezerra Coelho Filho, ministro de Minas e Energia (leia a entrevista ao lado). Existem ainda passivos para os quais a empresa não fez provisões: o banco Morgan Stanley estima em 32 bilhões de reais os esqueletos que podem pular do armário — como passivos trabalhistas e fiscais.

Ainda que nada tenha saído do papel, o mercado está gostando do que pode ser a nova Eletrobras — o Morgan está recomendando comprar as ações. Após o anúncio de que Ferreira assumiria a companhia, o valor da estatal na bolsa subiu 200%. É um pouco como o Brasil: a mera mudança de discurso e alguns sinais de coragem já bastam para que os investidores deem o benefício da dúvida. Daqui para a frente, vem a parte mais difícil — mostrar que esse otimismo não é em vão. “Nós trazemos um benefício para a sociedade, que é transmitir e gerar energia mais barata”, diz Ferreira. “Se conseguirmos fazer isso sem perder dinheiro, será excepcional.”

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