Se eu falo que minha empresa vai gerar X de lucro no futuro, não há uma antítese objetiva a essa tese. Não é uma informação falseável (Andriy Onufriyenko/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 16 de dezembro de 2021 às 05h26.
Última atualização em 11 de janeiro de 2022 às 15h04.
“A história é um conjunto de mentiras sobre as quais se chegou a um acordo.” Você encontra muitas frases atribuídas a Napoleão Bonaparte, mas essa aí parece que veio dele mesmo. A ideia da história como narrativa não é nova na literatura.
Aliás, existe contribuição brasileira relevante sobre o tema. Pérsio Arida tratou com brilhantismo o assunto ainda na década de 1980, no artigo A História do Pensamento Econômico Como Teoria e Retórica. É um dos mais belos papers acadêmicos já escritos por um brasileiro e, muito provavelmente, teria recebido destaque internacional não fosse o fato de Deirdre McCloskey ter publicado pouco antes o clássico The Rhetoric of Economics. Ambos estudavam, em paralelo, a questão; e Pérsio, inclusive, já a havia debatido internamente na PUC, mas, como McCloskey publicou em periódico antes, acabou recebendo mais atenção. Sem bairrismo, o artigo do Pérsio é melhor.
A percepção sobre a importância da retórica em economia ficou mais popular recentemente, com a publicação de Narrative Economics — How Stories Go Viral & Drive Major Economic Events, de Robert Shiller. Nassim Taleb também havia tratado da coisa com a expressão “falácia da narrativa”, uma construção feita sob o viés da retrospectiva, de uma história verossímil para explicar eventos passados, muitas vezes confundindo aleatoriedade com relações causais.
Na dialética de Hegel, a história representaria uma sucessão de embates entre uma tese e uma antítese. Uma hipótese (tese) é confrontada com uma alternativa (antítese). Dessa disputa emerge uma síntese, que, no período subsequente, se torna tese, para enfrentar uma nova antítese. E assim o ciclo perdura eternamente. Ou, pelo menos, perduraria enquanto durasse. Francis Fukuyama enterrou a ideia com a proposição de O Fim da História e o Último Homem. Com a queda do Muro de Berlim, não haveria mais antítese à tese da democracia liberal. Teríamos chegado à síntese definitiva, sem antagonistas. Matamos a dialética hegeliana.
Fomos descobrir depois que esse é um bicho difícil de morrer. Em algumas de suas brilhantes colunas, Marcos Troyjo chamou atenção para o “fim do fim da história” (eu prefiro o termo “pós-história”), com focos capazes de desafiar a globalização profunda, a economia de mercado e a democracia representativa. O partidão chinês suspendeu o teto de permanência de um indivíduo na condição de presidente — e assim temos mais um Grande Timoneiro? A lista de autocratas encontra nomes: Vladimir Putin, na Rússia; Bashar al-Assad, na Síria; Recep Erdogan, na Turquia; Nursultan Nazarbayev, no Cazaquistão; Viktor Orbán, na Hungria.
Houve uma transição importante na história e na narrativa dos mercados entre novembro e dezembro, com desdobramentos expressivos para a frente. É um desses marcos na trajetória de médio e longo prazo dos ativos financeiros. Diante da preocupação com a inflação alta e o abandono oficial, por Jerome Powell, da expressão “transitória” para descrevê-la, e da expectativa por aceleração da retirada dos estímulos monetários e por subida de taxas de juro em âmbito global, as ações de empresas de alto crescimento foram simplesmente dizimadas.
Alguns exemplos de queda desde as máximas de 52 semanas, com dados de fechamento de 6 de dezembro: PayPal (-40%), Snap (-42%), Twitter (-45%), Alibaba (-55%), Roku (-57%), Zoom (-59%), Nikola (-67%), Teladoc Health (-69%), Beyond Meat (-69%), Zillow (-71%), Robinhood Markets (-74%), Peloton Interactive (-75%), SmileDirectClub (-83%), C3.ai (-83%). Sem escapar à tendência global, temos nossos representantes. Citando somente alguns com desempenho bastante negativo em 2021: Enjoei (-73%), Stone (-75%), GetNinjas (-77%), Mobly (-79%), entre outros.
Embora haja elementos idiossincráticos ajudando a explicar as variações negativas, em grande medida elas se devem a esse mau humor geral com casos cujos fluxos de caixa estão lá na frente. Se todo o valor de uma companhia é dado pelos seus fluxos na perpetuidade, ao trazer esses valores para o presente com uma taxa de juro baixa, ainda temos um valor alto. Um valor dividido por zero tende ao infinito. Mas se as taxas de juro, que descontam esses fluxos, sobem, o valor justo dessas companhias cai dramaticamente. É uma imposição algébrica. O paradigma de pagar muito por um lucro distante no futuro foi quebrado.
Há algo maior, porém. Se eu falo que minha empresa vai gerar X de lucro no futuro, não há como haver uma antítese objetiva a essa tese. Não é uma afirmação falseável e, portanto, é algo não científico. Não há o contrafactual da observação empírica. Só existem concretamente o passado e o presente. O futuro é uma elucubração. Se, subitamente, passamos a duvidar daquela narrativa sobre o futuro, perdemos o chão.
Uma empresa sem a tangibilidade dos lucros não tem um fundo concreto. Cai 10% ou 50% e não se pode caracterizar como barato. Quanto vale uma promessa sem lastro objetivo? Eu, sinceramente, não sei. Mas o lucro podemos tocar e saber exatamente quanto vale… O que morreu em novembro não foi apenas o fluxo de caixa da perpetuidade. Vimos a morte da retórica e das narrativas prometedoras. Voltamos a olhar para algo sobre o qual havíamos perdido o interesse: o lucro. Talvez seja apenas um choque de realidade.