Revista Exame

O dono da empresa sem dono

A varejista de moda Renner não tem controlador, mas tem “dono”: é José Galló, presidente da empresa há mais de 20 anos. Deu certo até agora. Mas os acionistas começam a perguntar: quando a fila vai andar?

José Galló, da Renner: hoje, um quarto do bônus dele depende da formação de sucessor (Fabiano Accorsi / EXAME)

José Galló, da Renner: hoje, um quarto do bônus dele depende da formação de sucessor (Fabiano Accorsi / EXAME)

DR

Da Redação

Publicado em 22 de setembro de 2014 às 06h00.

Porto Alegre - A administrador gaúcho José Galló costuma vestir de cima a baixo as roupas da Renner, rede varejista de moda que ele preside. Enquanto seus pares se acomodam em ternos sob medida e dão nós duplos em gravatas italianas, Galló vive dentro dos limites de estilo impostos por blazers de 199 reais e calças que custam menos da metade disso.

Mas a recíproca, nesse caso, também é verdadeira: a Renner veste de cima a baixo José Galló. Ele manda por lá desde 1991, quando assumiu o que era uma rede de oito lojas à beira da falência. Nos 23 anos seguintes, Galló liderou uma virada daquelas que rendem um livro (que, aliás, deve ser lançado no próximo ano, de autoria da jornalista Suzana Naidicht).

A pequena rede tornou-se a maior do setor, fatura 4 bilhões de reais e vale 10 bilhões. Aos poucos, a Renner acabou virando “a empresa do Galló”. Seus traços pessoais tornaram-se parte da cultura corporativa. O principal é sua austeridade: além de, eventualmente, se vestir como se fosse da “nova classe média”, toma vinhos que custam 50 reais e racha a conta do jantar de fim de ano com a diretoria.

Na Renner, todos os diretores se servem sozinhos de água e café da garrafa térmica. Galló é um adepto do microgerenciamento. Reúne-se com fornecedores, planeja coleções novas nas férias, acompanha o movimento das lojas por câmeras e telefona se vê algo errado. Ele tem, em suma, todas as características de um apaixonado e onipresente dono do negócio. Mas há um porém — Galló não é dono de negócio algum.

Fundada em 1965 por descendentes de ale­mães, a Renner deixou de ser uma companhia familiar em 1998, quando foi comprada pela varejista americana JCPenney. Após sete anos sem saber o que fazer no Bra­sil, os americanos decidiram vendê-la. Co­mo faltaram interessados na compra, a JCPenney vendeu suas ações na bol­sa, acabando, assim, com a figura do controlador.

Hoje, a Renner é uma das poucas empresas brasileiras com capital pulveriza­do, no modelo de “corporation” típico dos Estados Uni­dos. São raros os casos de pre­si­den­tes, nesse tipo de empresa, que du­ram mais de cinco anos — a fila anda constantemente. José Galló não é um executivo normal, mas uma figura única no capitalismo brasileiro: é, na prática, o dono de uma empresa sem dono.

É uma anomalia que, sem dúvida, deu muitíssimo certo até hoje. Desde que a JCPenney vendeu suas ações, o valor de mercado da Renner se multiplicou por 8. A empresa tem atualmente 228 lojas da Renner mais 55 pontos da Camicado, rede de cama, mesa e banho. Segundo analistas, Galló viu antes da concorrência o impacto que a ascensão social das classes C e D teria no varejo de vestuário.

Neste ano, enquanto a economia brasileira estacionou no primeiro semestre, o lucro da Renner aumentou 42%, para 170 milhões de reais. Hoje, a empresa vale 30% mais que a própria JCPenney. Com tamanho sucesso, Galló sempre pôde fazer o que quis com o aval dos principais acionistas: fundos estrangeiros, como Aberdeen, Black­rock e T. Rowe Price.

Mas, recentemente, a situação começou a causar desconforto. Esses fundos, afinal, investem com a perspectiva de manter por muitos anos as ações da Renner. E alguns representantes começaram a cobrar do conselho de administração um plano — como será a Renner sem José Galló?

Loja da Renner: empresa vale hoje 30% mais que a americana JCPenney (Kiko Ferrite)

É paradoxal, mas o poder de Galló faz com que uma empresa de controle pulverizado enfrente dilemas típicos de uma companhia familiar. A tensão começou a aflorar em 2010, quando o diretor financeiro, José Carlos Hruby, deixou o cargo ao completar 65 anos. Hruby estava na Renner havia mais de 40 anos e era uma espécie de braço direito de Galló.

Segundo acionistas ouvidos por EXAME, a saída acendeu a luz amarela: ficou claro, ali, que não havia plano de sucessão para a cúpula da Renner. Como não existiam candidatos internos para o lugar de Hruby, um processo de seleção foi iniciado. O novo diretor financeiro durou pouco mais de três anos no cargo.

“Eles nos diziam que o substituto estava sendo formado dentro de casa, mas fomos surpreendidos quando tiveram de buscar o diretor no mercado”, diz um grande acionista que pediu para não ser identificado. “O que assusta é que, para o Galló, a história é parecida.”

Onda de consolidação

O presidente da Renner tem, atualmente, 63 anos — e não há um candidato óbvio para sucedê-lo no comando da empresa. Em abril, o contrato de Galló foi renovado até 2017, quando ele completará 65 anos, mas pode ser prorrogado até 2019.

Há três anos, o conselho de administração decidiu que 25% de seu bônus anual seria atrelado à formação de sucessores dentro da empresa. “A Renner não é mais uma empresa de um homem só. Estou envolvido na formação de um sucessor”, afirma Galló.

Nos próximos anos — os últimos de Galló à frente da Renner —, esse jeitão de fazer as coisas passará por um teste. São inegáveis as pressões para uma onda de consolidação no varejo de roupas brasileiro. As três maiores redes (Renner, Riachuelo e C&A) têm, somadas, apenas 5% de participação de mercado.

Nos últimos cinco anos, as maiores empresas donas de shoppings cresceram exponencialmente, aumentando seu poder de barganha com os lojistas. “O varejo vai se consolidar para ganhar na escala de compras e em poder na negociação com os shoppings. Não faz sentido continuar do jeito que está”, afirma o presidente de uma concorrente da Renner.

Em tese, uma “corporation” teria tudo para liderar esse processo. Como não tem bloco de controle, empresas de capital pulverizado têm muito mais facilidade na hora de emitir ações para comprar um concorrente. Mas, no caso da Renner, o papel de Galló pode inibir movimentos mais ousados.

Como os maiores rivais da Renner têm controlador definido, uma eventual fusão criaria, necessariamente, um acionista majoritário: um chefe para Galló, portanto. Acabaria a empresa “sem dono”. Galló diz acreditar que o melhor para a Renner é crescer organicamente — seguir o plano anunciado em 2013, de dobrar o número de lojas até 2021.

“Mas isso pode mudar”, diz o presidente de uma grande fornecedora da Renner. “Como a pressão por sucessão está aumentando, quem sabe ele não encerra seu ciclo anunciando uma grande fusão?” Encerrar o ciclo? Para Galló, isso é assunto para depois.

“A idade-limite para permanecer no conselho de administração é 75 anos”, diz ele. Se depender dele, portanto, a Renner não trocará de roupa por mais 12 anos.

Acompanhe tudo sobre:ComércioEdição 1073EmpresasEmpresas abertasRennerVarejo

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda