Presidente Dilma Rousseff: um governo marcado pela intervenção do Estado na economia (Ichiro Guerra/Dilma 13/Divulgação via Fotos Públicas)
Da Redação
Publicado em 17 de outubro de 2014 às 12h24.
São Paulo - Embora as autoridades brasileiras, inclusive a própria presidente Dilma Rousseff, falem muito na necessidade de aumentar os investimentos do setor privado e estimular a produtividade e a competitividade, elas acreditam que esses fatores podem e devem ser induzidos pelo governo.
‘A presidente acredita piamente que todo problema tem uma solução governamental’, comenta o economista José Roberto Mendonça de Barros. Em 2011, quando a valorização do real estava no auge, Dilma anunciou um pacote de medidas destinadas a ajudar a indústria, batizado de Brasil Maior.
Algumas medidas eram razoáveis, tais como incentivos para que universidades e empresas colaborassem na área de pesquisa. O Ciência sem Fronteiras, programa de Dilma para que brasileiros estudem no exterior, também fazia sentido. O plano, no entanto, incluía duas medidas polêmicas.
A primeira era o aumento em 30 pontos percentuais do imposto sobre carros importados de montadoras sem uma fábrica no Brasil. A segunda era a eliminação de imposto sobre os salários dos setores de vestuário, calçados, móveis e software.
Em lugar de premiar os vencedores, objetivo de qualquer política industrial, parecia um pacote de socorro para fracassados (embora o corte de impostos sobre a folha de pagamentos tenha sido depois estendido para outros setores).
Uma cópia malfeita
Os críticos acusam o governo de pegar a onda do capitalismo de Estado — que, segundo Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso, nunca chegou a desaparecer por completo no Brasil. ‘É um modelo que enfatiza a concessão de benefícios a determinadas empresas, em vez de deixar o mercado funcionar.
É um modelo ruim que, associado ao protecionismo, fica ainda pior’, entende ele. Para o professor Sergio Lazzarini, da escola de negócios Insper, em São Paulo, o governo começou a usar estatais para regular os mercados de petróleo, eletricidade e bancos, fazendo com que essas empresas passassem a registrar prejuízos.
Todas essas medidas contrastam com a bem-sucedida política industrial sul-coreana, evocada por Luciano Coutinho, presidente do BNDES, e outras autoridades brasileiras. A política sul-coreana tinha como principal meta impulsionar as exportações a fim de obrigar as empresas a competir no exterior. E, passado um período limitado de tempo, o governo asiático foi implacável no corte de subsídios.
A abertura do comércio promovida pelo presidente Fernando Henrique na década de 90 foi radical pelos padrões brasileiros, mas não se comparada a de muitos outros países da América Latina. Mesmo após a queda das barreiras, a economia brasileira permaneceu relativamente fechada.
As tarifas médias continuaram superiores às de Coreia do Sul, China e Taiwan, por exemplo, e ainda foram elevadas depois de 2008. O custo de importação de um contêiner para o Brasil é excepcionalmente alto. Contratos públicos e muitos setores têm regras de conteúdo nacional.
Em 2012, as importações corresponderam a apenas 13% do PIB, o valor mais baixo entre os 176 países acompanhados por um estudo do Banco Mundial. A Coreia do Sul, a potência industrial e tecnológica admirada pela equipe econômica de Dilma, é muito mais aberta, com exportações e importações equivalentes a 58% e 54% do PIB, respectivamente.
O pendor protecionista é arraigado entre as autoridades brasileiras. Edmar Bacha, um dos pais do Plano Real, destaca as falhas nessa abordagem: ‘É patético você olhar tanta reclamação contra importação. Temos algo muito peculiar no Brasil, que é essa enorme abertura para investimento estrangeiro da qual não resulta em exportação.
Fico abismado quando vejo nossa presidente dizer ‘vamos proteger nosso mercado’. E quem está explorando nosso mercado são as multinacionais, que têm aqui lucros extraordinários’.
O Brasil tem mesmo alergia ao liberalismo. Roberto Campos, um dos mais importantes economistas liberais do país, morto em 2001, escreveu que ‘assumir explicitamente o liberalismo é tão alienígena em um país com cultura dirigista quanto fazer sexo em público’. (Ele mesmo começou sua carreira na vida pública como funcionário do governo dirigista de Juscelino Kubitschek.)
Há razões para isso — e é por causa delas que o Brasil é diferente dos Estados Unidos, com os quais tantas vezes gosta de se comparar.
Dos tempos coloniais à ditadura, a manutenção da coesão de um vasto território de geografia difícil — onde o estabelecimento de comunicações e as condições para a vida humana abundante e saudável apresentavam enormes dificuldades — foi uma preocupação permanente dos governantes.
Por isso, no Brasil, foi o Estado que criou a nação, e não a nação que criou o governo, como nos Estados Unidos. Do mesmo modo, diferentemente da América espanhola, os governantes brasileiros sempre tiveram consciência da necessidade de consultar os notáveis locais, a fim de conservar a unidade nacional e evitar a secessão.
A escravidão — e o temor da revolta dos escravos — foi outra causa da necessidade de uma frente unida, além de distorcer as prioridades do Estado de tal maneira que retardou por séculos o desenvolvimento do país, condenando-o ao status de eterno país do futuro.
A consequência trágica de uma sociedade de senhores e escravos foi que o Estado, quando começou a desenvolver a economia, não tratou de investir na educação, saúde e segurança da grande massa de brasileiros mais pobres. Foi somente a partir de 1988 que o país decidiu se propor uma sociedade em que o Estado de Direito fosse aplicado igualmente a todos.
Estados Unidos do sul?
Não se trata de uma defesa da tese de que o Brasil tem de imitar os Estados Unidos. Nos tempos de Tiradentes, em Minas Gerais, se ansiava por uma república jeffersoniana. Desde então, os brasileiros comparam seu país com seu alter ego do Norte.
Muitos lamentam, como o escritor brasileiro Viana Moog, morto em 1988, que o Brasil tenha produzido bandeirantes extrativistas em vez de trabalhadores pioneiros. O Brasil, porém, não pode mudar sua história ou, pelo menos no curto prazo, sua cultura.
Na verdade, o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, um dos raros liberais do país, entende que, se o Brasil não se tornou como os Estados Unidos, ‘foi essencialmente por não querer’ — por não se dispor a sacrificar a alegria e sua abordagem tranquila da vida em prol da acumulação de capital e da prosperidade futura.
Ele propõe que o Brasil ofereça ao mundo um conjunto diferente e menos materialista de valores do que o estilo de vida americano, como mostra o recente compromisso do país com o ambientalismo.
Sem dúvida, a conversão nas duas últimas décadas para políticas mais preocupadas com a proteção do meio ambiente marca o fim de uma longa marcha, de mais de quatro séculos, para ocupar o vasto território brasileiro, iniciada com jesuítas e bandeirantes.
A agricultura do país já confia mais no aumento da produtividade do que na incorporação de novas terras. Ainda há, entretanto, muitos pobres. O país não poderá renunciar, por um bom tempo, à busca do crescimento econômico.
Também vale ressaltar que a crítica ao renascimento do nacional-desenvolvimentismo não constitui um argumento em prol de um Estado mínimo ‘neoliberal’ (ou seja, neoconservador). O Brasil não é Singapura.
É um país grande demais, com demasiadas desigualdades sociais e regionais, para que essa opção seja viável (ainda que os brasileiros tenham muito a aprender com a determinação daquele país com a inovação, a abertura e a seguridade social).
Pelo contrário, trata-se de uma convocação para que o Brasil retome o consenso social-democrata que tanto êxito obteve de 1994 a 2006, com sua combinação de economia amplamente liberal com maior ênfase na política social e na redução das desigualdades.
Se o Brasil não abandonar seu recente flerte com o renascimento do Estado corporativo e não voltar a se empenhar na criação de uma regulamentação eficaz, não conseguirá atender às demandas de seus cidadãos — detentores de um poder cada vez maior — por mais oportunidades, melhores serviços e maior qualidade de vida.
É uma pena, embora talvez fosse inevitável, que o debate no seio do movimento de oposição que se alastrou por São Paulo no fim da década de 70 tenha levado à fundação de dois partidos rivais — o PT e o PSDB.
De maneiras diferentes, ambos constituíram forças modernizadoras, mas tornaram-se polos opostos na política, cada qual obrigado a aliar-se às forças arcaicas do peemedebismo e seus congêneres. Como observou o economista Mario Henrique Simonsen em 1987, ‘o grande debate nacional não é entre esquerda e direita, mas entre o moderno e o arcaico’.
Ainda é verdade. A eleição de outubro poderá produzir uma mudança de rumo. Quer isso ocorra ou não, o povo, que pouco a pouco adquire mais educação e, sob certos aspectos, torna-se mais empreendedor, poderá interferir na condução das políticas públicas.
Em três ocasiões nos últimos 25 anos, os brasileiros foram em grande número às ruas, em protestos pacíficos contra o status quo. Embora não tenham conseguido as eleições diretas para presidente que demandaram em 1984, a democracia veio rápido.
Em 1992, provocaram a deposição do presidente Fernando Collor, ainda que não a sua punição, por seu desprezo pelo Estado de Direito. Será que vão obter a melhoria dos serviços públicos e a maior responsabilização política que exigiram em 2013? Deve ser essa a pauta do debate político no país nos anos que antecederão o bicentenário da Independência, em 2022.
Quase pela primeira vez em sua história, os brasileiros agora querem refazer seu país de baixo para cima, como um país de cidadãos iguais, não de privilégios patrimoniais. Isso colocou o Estado corporativo na defensiva, e dá motivos para esperar que as conquistas das duas últimas décadas serão construídas e ampliadas em uma nova fase da história brasileira.”