Revista Exame

Nem parece Harvard

Sob críticas cada vez mais duras, a universidade que criou o MBA há mais de um século reconstrói as bases do curso, um caminho que se mostra inevitável para as principais escolas de negócios

Harvard: novas salas de aula, viagens para países emergentes e empreendedorismo

Harvard: novas salas de aula, viagens para países emergentes e empreendedorismo

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Da Redação

Publicado em 21 de julho de 2012 às 08h00.

Boston - Apenas oito alunos compunham a primeira turma de MBA do mundo, formada em 1910 pela escola de negócios da Universidade Harvard, nos arredores de Boston. De lá para cá, o grupo cresceu exponencialmente. Hoje, há 9 000 inscritos todos os anos, dos quais 10% são aprovados.

Numa tradição secular, a base do curso permaneceu quase tão intocada quanto a paisagem do campus, repleta de prédios no aristocrático estilo georgiano. Pelo menos foi assim até a aula inaugural da turma que deverá se formar no início de 2013. Em setembro do ano passado, ela se tornou cobaia de um experimento histórico — a maior revisão curricular realizada pela escola em mais de 100 anos de existência.

No novo modelo, o conceituadíssimo método de estudos de caso, criado em Harvard e copiado à exaustão por milhares de escolas de negócios em todo o mundo ao longo do último século, perdeu espaço. Mais do que nunca, os alunos deixaram as quatro paredes da escola.

Trabalharam por uma semana num país emergente que não conheciam. Criaram uma empresa do zero. Até mesmo as tradicionais salas de aula mudaram. “Num período de apenas três meses, concluí um projeto na Índia e abri uma empresa de internet, além de outras atividades do curso”, diz o mineiro César Carvalho, um dos alunos da mais nova turma de MBA de Harvard.

Os planos de mudar surgiram após a nomeação do indiano Nitin Nohria como reitor em julho de 2010. Sua chegada, por si só, representou uma quebra na tradição da escola de negócios, cujo comando jamais fora ocupado por um estrangeiro. Nohria logo passou a articular uma resposta às críticas contra os cursos de MBA, que se intensificaram nos últimos anos.

Muitas delas partiram de dentro da própria instituição. Uma das mais impactantes está no livro Rethinking the MBA (“Repensando o MBA”, sem versão para o português), lançado em 2010 por um grupo de acadêmicos de Harvard, Srikant Datar, David Garvin e Patrick Cullen.

Os autores criticam duramente o currículo, “extremamente teórico”. Sobra até para os alunos, “exageradamente confiantes” e mais interessados em circular e fazer contatos do que polir seu conhecimento. Para o indiano Pankaj Ghemawat, especialista em estratégia egresso de Harvard e atual professor da escola de negócios espanhola Iese, os cursos são pouco globais num mundo globalizado.


Segundo ele, apenas um terço dos estudos de caso usados em aula se refere a outros países. Com o estouro da crise financeira em 2008, que afetou duramente empresas comandadas por executivos formados em prestigiosas escolas de negócios, as instituições voltaram à berlinda. “As pessoas perderam a confiança nos negócios, e nossos alunos parecem responsáveis por isso”, disse Nohria durante o anúncio das mudanças em julho passado. 

MBA no divã

Além de Harvard, outras escolas de primeira linha já seguem a mesma trilha. Boa parte delas tenta ampliar a experiência prática e internacional. Em Wharton, na Filadélfia, os alunos puderam escolher o conteúdo e o formato do curso neste ano. Aulas de gestão, por exemplo, passaram a ter duas opções — um módulo voltado para empresas grandes e outro para pequenas.

Disciplinas como mar­keting passaram a ter aulas baseadas num método que envolve simulações práticas. Em 2011, Berkeley passou a oferecer a possibilidade de “reciclar” o conhecimento de ex-alunos do MBA a cada sete anos em aulas gratuitas sobre temas a escolher.

Na suíça IMD, os alunos passaram a visitar empresas no ano passado para aplicar na prática o conhecimento teórico aprendido em aula. “Pelo menos sete em cada dez das principais escolas de negócios do mundo fizeram alguma mudança nos últimos dois anos”, diz John Fernandes, presidente da AACSB International, associação que certifica escolas de negócios no mundo.

Nenhuma, porém, foi tão radical como Harvard. A revisão aconteceu a toque de caixa. Três professores trabalharam em tempo integral na concepção dos novos módulos a partir de janeiro de 2011. Seis meses mais tarde, o plano estava pronto.

“Desde o início, a proposta era trazer experiência de campo para os alunos em atividades obrigatórias”, disse a EXAME Alan MacCormack, professor de Harvard e um dos responsáveis pelo redesenho. O resultado foi a criação de três módulos, concentrados no primeiro ano do curso — sob o sugestivo nome Field, sigla em inglês para “experiência de imersão em campo para o desenvolvimento de liderança”. 

O choque mais imediato é físico. Durante mais de um século, a escola se tornou conhecida pelas salas de aula em formato de anfiteatro, em que o professor é o centro das atenções. Na preparação para criar os módulos do Field, um prédio novo foi incorporado ao campus de Harvard.


A cerca de 20 minutos a pé das salas de aula tradicionais, o edifício de linhas modernas abrigava, até os anos 90, os estúdios do popular programa de TV da cozinheira americana Julia Child, celebrizada no filme Julie & Julia. Numa reforma concluída em menos de um ano a um custo de 25 milhões de dólares, o edifício passou a ter dez salas de aula com capacidade para até 90 alunos cada uma.

Com mesas, cadeiras e lousas com rodinhas, podem ser configuradas de diversas maneiras. Nos corredores, cadeiras coloridas e telões de projeção criam um ambiente distinto do padrão tradicionalmente sisudo da escola. Uma das primeiras atividades realizadas ali, no primeiro módulo do Field, tinha como objetivo desenvolver habilidades de relacionamento.

“Quería­mos que os alunos deixassem de atuar como indiví­duos com um desempenho extraor­dinário para se transformar em parte de um grupo eficiente”, afirmou a EXAME Youngme Moon, diretora do programa de MBA de Harvard. Alguns exercícios em pequenos grupos foram inspirados em técnicas do Exército americano.

Um deles é a despretensiosa construção de torres feitas com uma quantidade determinada de espaguete cru espetado em bolas de marshmallow. “É algo que eles nunca fizeram e isso os tira da zona de conforto”, diz o professor MacCormack. “Além disso, exige capacidade de organização e diálogo.” 

Bem-vindos à vida real

Boa parte da experiência do Field, no entanto, acontece fora das salas de aula. Em janeiro, os alunos foram levados não apenas para fora da escola como também para fora do país. Dividida em times, a turma passou uma semana num país emergente até então totalmente desconhecido, pré-requisito para a alocação dos profissionais.

Até o ano passado, a viagem internacional era opcional e acontecia apenas no segundo ano do curso. Neste ano, os alunos visitaram dez países e trabalharam em 140 empresas. O paulista Marco Crespo passou uma semana na cidade de Chong Qinq, no interior da China. Com cinco colegas, ajudou a montar um plano de negócios para uma escola de idiomas local. “Com intérpretes, entrevistamos dezenas de alunos”, afirma Crespo. 


Quando se fala em sair da zona de conforto, nada se compara à criação de uma empresa, obrigatória mesmo para aqueles sem aspiração empreendedora. A medida já existia há décadas em cursos de escolas como Babson College, reconhecida pela tradição em empreendedorismo.

Diferentemente do que se vê em Babson, o propósito em Harvard não é incentivar os alunos — muitos egressos de consultorias e bancos — a se tornar empreendedores. “É a melhor maneira de experimentar o risco de aplicar a teoria na prática”, diz a diretora Moon.

A escola investiu 5 000 dólares em cada uma das 100 empresas abertas. “Muitas vão falir, o que pode ser frustrante”, diz o professor MacCormack. “Mas isso faz parte da vida real.” Quem não conseguir gerar receita durante o curso escreverá um relatório sobre as razões do fracasso. 

A maneira como os alunos são avaliados também ganhou uma dose extra de realidade. O método, que antes dependia basicamente do professor, agora passa pelo juízo implacável dos próprios alunos. Numa simulação da bolsa de valores, os alunos compram ações das empresas dos colegas, num sistema eletrônico interno. Quem faz escolhas ruins também perde pontos.

Os professores ressaltam que o modelo de estudos de caso — criado nos anos 20 — não foi abandonado. A escola possui mais de 10 milhões deles e continuará a produzir novos. “Os dois modelos terão o mesmo peso”, diz a coordenadora Moon. Em maio, a faculdade anunciou mudanças também na seleção de alunos para a próxima turma, com a inclusão de uma etapa, digamos, reflexiva.

Após a entrevista, eles terão até 24 horas para enviar um texto sobre algo que não tiveram chance de contar. Num lugar que transpira tradição, quebrar tantos protocolos soa ainda mais subversivo. “É o fim de uma era”, diz David Garvin, coautor do livro Rethinking the MBA. Professores não descartam ajustes para a turma seguinte. Mas, para eles, as bases para os próximos 100 anos estão lançadas.

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