Revista Exame

Nem esquerda, nem direita – só enganação

Essa divisão ideológica confunde mais do que esclarece, diz o escritor Nassim Taleb

Taleb: “Se você mora em Brasília, não é afetado pelas políticas que aprova” / Alamy/Fotoarena (Alamy/Fotoarena/Divulgação)

Taleb: “Se você mora em Brasília, não é afetado pelas políticas que aprova” / Alamy/Fotoarena (Alamy/Fotoarena/Divulgação)

DC

David Cohen

Publicado em 25 de outubro de 2018 às 05h36.

Última atualização em 25 de outubro de 2018 às 05h36.

Cisne negro. Antifragilidade. Pele no jogo. Cientismo (a aparência de ciência, sem o estofo). IMI (intelectual mas idiota). Intervencionista (gente que propõe intervenções achando que está fazendo o bem, mas causando desastres).

Nassim Nicholas Taleb, um libanês da comunidade grega ortodoxa, educado na França, residente e cidadão dos Estados Unidos, que ganhou milhões de dólares no mercado financeiro como um corretor de derivativos e depois fez uma fortuna ainda maior antecipando a crise de 2008, é um prolífico criador de termos. Bastaria o primeiro (cisne negro) para colocá-lo na lista de escritores mais influentes do pós–guerra: é o título do livro escrito em 2007 sobre o impacto extremo de eventos imprevisíveis. Foi o segundo de uma coletânea que, segundo Taleb, terá cinco livros, intitulada Incerto — sobre, é claro, como lidar com a incerteza.

O mais recente tomo dessa coleção é Skin in the Game (“pele no jogo”), recém-lançado no Brasil com o título Arriscando a Própria Pele. O conceito já havia sido usado duas dúzias de vezes em seu livro anterior, Antifrágil (outro de seus conceitos, que significa a qualidade de florescer no caos, em vez de ser derrubado por ele).

Pele no jogo é a barra a partir da qual, em um mundo de incertezas, você pode definir se confia ou não em alguém. É simples: se as coisas derem errado, a pessoa vai sofrer alguma consequência? Os banqueiros resgatados pelo governo após a crise de 2008 não sofreram. Taleb tem uma longa lista de desafetos, como o psicólogo Steven Pinker e o recém-vencedor do Nobel de Economia Richard Thaler, o biólogo evolucionista Richard Dawkins e o jornalista Thomas Friedman. Ah, sim, e a empresa de transgênicos Monsanto (comprada pela alemã Bayer). As razões são, quase sempre, falta de pele no jogo, ou falta de rigor estatístico.

Pelas duas razões, Taleb prefere governos locais a governos em grande escala: as coisas que acontecem no universo micro não funcionam da mesma forma na dimensão macro, e os políticos que vivem na localidade que administram têm pele no jogo. Seus livros não costumam seguir em linha reta. São, antes, coletâneas de conceitos que giram, em espiral, em torno dos temas relacionados à incerteza. Ele é um iconoclasta, frasista de efeito, e não poucos jornalistas se queixam de sua indisposição com quem discorda dele.

Comigo, Taleb foi simpático, embora deixasse claro que não gosta de dar entrevistas. Ao final da conversa, por videochamada, perguntou-me se eu tinha ascendência libanesa. Respondi que sim, e perguntei se ele ainda ia muito ao Líbano. “Uma vez a cada cinco semanas”, disse. Para visitar a mãe: “pele no jogo”.

Em seu mais recente livro, o senhor diz que direita e esquerda são conceitos enganosos. Como, então, interpretar diferenças ideológicas?

Eu falo em termos de escala. Isso quer dizer que você pode ser comunista em sua aldeia, mas ser libertário no nível esta-dual. É por isso que não se pode analisar alguém como tendo uma posição única. O Brasil tem mais de 200 milhões de pessoas, você não pode fazer uma análise para 1 milhão de pessoas e aplicar em todo o país. A realidade se transforma quando a escala muda.

Como decidir, no nível nacional?

Você pode ser de esquerda ou de direita, mas essa questão é enganosa. A discussão é se é descentralizado ou não.

Quer dizer, política de baixo para cima…

Exatamente. Eu digo que localismo é melhor do que universalismo, e todas as discussões sobre direita e esquerda são bobagem. Quer um exemplo? Você pode ser comunista no nível familiar, social-democrata no nível da cidade e libertário no nível nacional.

Neste momento, o Brasil vai escolher entre dois polos.

Eu não comento sobre política brasileira porque não estou familiarizado. Mas eu escolheria aquele que descentraliza mais, no topo. Por exemplo, nos Estados Unidos eu entendo que alguém vote em um libertário para presidente e, ao mesmo tempo, vote em um comunista ou um socialista para prefeito.

Existe algum país governado assim?

A Suíça. E os Estados Unidos, acredite ou não, costumavam ser uma federação em que o governo central tinha menos ingerência nos assuntos do dia a dia e das comunidades. Os cantões da Suíça são a melhor maneira de organizar a política. A China está se movendo nessa direção. Quando você compara Singapura à China, percebe que a recompensa de um sistema de governo de uma cidade é maior do que a de um governo continental.

Pescadores: em comunidades pequenas, eles tendem a se ajudar e a proteger o meio ambiente; em comunidades maiores, é cada um por si | André Dib/Pulsar imagens

Isso não tem a ver com a ideologia?

É muito mais importante do que direita ou esquerda. Vou dar um exemplo do porquê. Quando você visita uma comunidade de 300, 400, até 500 pescadores, eles são muito colaborativos. Protegem um ao outro e não pescam em exagero, porque sabem que têm de preservar seus recursos. Agora, quando você expande essa comunidade para, digamos, 10.000 pessoas, aí é cada um por si, e o meio ambiente acaba sofrendo.

Os políticos têm pele no jogo?

Não. A não ser que sejam locais. Esse é o problema. Se você está decidindo pela cidade, e vive lá, tem família lá, então você tem pele no jogo. Se você mora em Brasília e não é afetado pelas políticas que aprova, então não tem pele no jogo.

A mesma coisa vale para intelectuais, consultores…

Sim. Se um encanador não tiver habilidade, você vai perceber. Se o carpinteiro não for bom, você vai saber.

Talvez só depois que a casa cair…

Talvez tarde demais, mas você vai saber. O que eu digo é que, no nível micro, você não consegue enganar as pessoas. Mas, quando se trata de qualidades abstratas, não dá para ter certeza se a pessoa tem habilidade ou não. Por essa razão, é necessário que elas tenham pele no jogo. A credibilidade dos intelectuais — de qualquer campo em que os profissionais sejam julgados apenas pelos pares — é muito baixa. Em profissões em que o profissional pode ser julgado pelos clientes, pelo mercado, a credibilidade acaba sendo muito maior.

Mas, como se faz para o mercado julgar os intelectuais?

Não sei. Eles podem continuar falando, mas não há razão para levá-los a sério. Há disciplinas inteiras, como psicologia e sociologia, que estão ruindo. Em psicologia, por exemplo, estamos vivendo uma crise de replicação de experimentos. Menos da metade das pesquisas descritas em artigos se sustenta, quando são refeitas por equipes diferentes. Não é ciência, mas eles nos fazem acreditar que seja.

Qual é a sua rixa com [o jornalista americano] Thomas Friedman?

Não tem pele no jogo. Ele, e vários outros intelectuais, fizeram uma enorme campanha pela guerra no Iraque. A guerra é um desastre, muita gente perdeu a vida. E eles não perderam nada, nenhum dano à reputação. Friedman continua recebendo o mesmo por suas palestras e artigos…

E com [o teórico evolucionista] Richard Dawkins, [o psicólogo] Richard Thaler, [o psicólogo] Steven Pinker…?

Tudo bobagem. Não têm rigor. Eu não gosto de alguns intelectuais, de outros eu gosto. Mas esse não é o ponto. O ponto é que os intelectuais não têm uma métrica para a gente saber se eles estão falando bobagem. Um matemático, você sabe se ele fez algo grande ou idiota. Um intelectual, não.

O senhor desdenha de todas as ciências humanas?

Não desdenho. Não poderia desdenhar, eu mesmo tento fazer parte dessa comunidade intelectual. Só prego certo ceticismo. Especialmente quando eles se expressam muito bem. E, principalmente, quando todos eles pensam da mesma forma. Eu gosto de pessoas que divergem da norma, porque aí você pode entender quem elas são. 

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