Apreensão de carga roubada: as empresas perderam 2 bilhões de reais em 2017 com esse tipo de crime (Maíra Coelho / Agência O Dia/Exame)
Naiara Bertão
Publicado em 1 de março de 2018 às 05h00.
Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 15h50.
Mal havia amanhecido na Granja Mantiqueira, maior produtora de ovos da América do Sul, com sede em Itanhandu, município do sul de Minas Gerais, quando Leandro Pinto, fundador e presidente da empresa, foi acordado com uma péssima notícia. Um comboio de quatro caminhões que transportavam 2 milhões de ovos havia sido interceptado na Rodovia Presidente Dutra, perto do Rio de Janeiro, às 7 horas da manhã por um grupo armado com fuzis. Os caminhões, que abasteceriam quatro redes de supermercados, foram recuperados 5 horas depois, próximos da comunidade conhecida como Gogó da Ema, em Belford Roxo, na região metropolitana do Rio. Toda a carga havia sido roubada, um prejuízo de 600.000 reais. Até hoje, mais de um mês depois, a companhia sofre para normalizar as entregas.
Como o estado do Rio representa metade do faturamento, o jeito foi investir em escolta armada e mudar os horários do transporte. A empresa também instalou uma central para monitorar em tempo real o trajeto dos caminhões. “Não desistimos do Rio, mas está difícil operar no estado”, diz Pinto. Em 2017, a Mantiqueira perdeu 1,3 milhão de reais com o roubo de ovos, um crime antes considerado raro. O número de ocorrências aumentou tanto que a renovação do seguro para a empresa ficou inviável. E recuperar a carga virou uma missão quase impossível.
O relato mostra com clareza como a violência atinge qualquer tipo de negócio. Produtos antes menosprezados por bandidos, como ovos, pães, detergentes e vasos de cerâmica, agora estão na mira do crime. “Tudo que tem liquidez e pode ser revendido facilmente é alvo. Celular virou dinheiro”, diz Sérgio Herz, presidente da Livraria Cultura e conselheiro do Instituto de Desenvolvimento do Varejo. O mercado ilegal de cigarros, por exemplo, já representa 48% do volume total vendido no país. Um estudo publicado no ano passado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento mostra que a criminalidade custa, em média, 3% do produto interno bruto da América Latina e do Caribe. No Brasil, as perdas chegam a 103 bilhões de dólares. Quase metade disso é gasta pelo setor privado com segurança, sem contar o valor dos bens roubados e a perda de produtividade das empresas.
Como o estudo se baseia em dados de 2014 e, de lá para cá, a violência piorou visivelmente, é provável que essa conta tenha aumentado de forma significativa. Somando os prejuízos com roubos, furtos e atos de vandalismo aos investimentos em segurança e apólices de seguro, só o setor industrial desembolsou mais de 30 bilhões de reais em 2017, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria, montante que aumentou quase 10% em relação a 2016.
Em alguns lugares, porém, a situação tem se mostrado mais grave. O Rio de Janeiro é um dos pontos em que a violência é mais dramática. Só o turismo do estado perdeu 657 milhões de reais de janeiro a agosto de 2017 por causa da criminalidade, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. O valor representou 30% da retração de 2,3 bilhões de reais que as receitas do turismo sofreram no período. Preocupadas com o estouro da violência, algumas empresas decidiram fechar unidades em regiões mais problemáticas, como a Pavuna, bairro da zona norte carioca, onde várias companhias instalaram fábricas e centros de distribuição nos últimos anos para se beneficiarem da localização privilegiada, próxima às principais rodovias.
A farmacêutica Cimed, quarta maior do país em produção, transferiu em abril de 2017 seu centro de distribuição da Pavuna para Duque de Caxias, cidade da Baixada Fluminense. Mesmo tendo um custo extra de 200.000 reais com a mudança, a companhia achou que valeu a pena: conseguiu cortar os gastos com escolta armada, que chegavam a 11.000 por mês, evitou mais prejuízos com roubos e deu mais segurança aos funcionários. Segundo dados da consultoria imobiliária SiiLA, quase 30% dos condomínios logísticos no Rio estão vazios, um recorde histórico de desocupação.
Apesar de a situação do Rio parecer a pior, não há região imune ao crime. “No Nordeste e em Minas Gerais é arrombamento de lojas. No Norte, especialmente no Maranhão e no Pará, é roubo à mão armada. No Rio, carga roubada. Em cada lugar do país, há a predominância de um tipo de crime”, diz Rodrigo Nunes, vice-presidente da varejista Ricardo Eletro, que tem 800 lojas em 23 estados e no Distrito Federal. E os criminosos estão ficando mais atrevidos. Em Santo André, na Grande São Paulo, um túnel de 40 metros foi construído para perfurar um duto da Petrobras e furtar combustível.
Segundo a Transpetro, subsidiária da Petrobras para a área de logística e distribuição, o número de furtos e tentativas de furto de combustível no país aumentou 15 vezes de 2015 para cá — só no ano passado foram 226 ocorrências. Para os negócios, a violência se manifesta de diversas formas. O roubo de cargas certamente representa um dos maiores prejuízos. Segundo um cálculo da corretora de seguros e consultoria de risco Lockton, o prejuízo com cargas roubadas alcançou quase 2 bilhões de reais em 2017, valor 86% maior do que o de 2014. Empresas como a fabricante de cigarros Souza Cruz chegam a contabilizar perdas milionárias com roubos de cargas. Só em 2017 foram seis ocorrências por dia (a maior parte no estado de São Paulo), correspondendo a 280 milhões de cigarros perdidos, 72% mais do que em 2014, quando esse tipo de crime começou a crescer. Além de tabaco, bebidas, alimentos, remédios e eletroeletrônicos são outros itens muito visados pelos bandidos.
E não são apenas as emboscadas a caminhões que preocupam as empresas. Os constantes assaltos e roubos em suas lojas de departamentos já levaram o grupo mineiro Zema a fechar duas unidades em cidades pequenas de Goiás, Araguaiana e Abadiânia. “Em cada arrombamento perdemos cerca de 100.000 reais em mercadorias”, diz Juliano Oliveira, diretor comercial do Zema, que também atua na distribuição de combustíveis e já teve bombas de postos roubadas antes mesmo da inauguração do estabelecimento.
No Rio Grande do Sul, outro estado cuja violência aumentou nos últimos anos, a rede de restaurantes Madero teve de contratar uma empresa de segurança privada e outra de atendimento emergencial para enfrentar os frequentes assaltos, já que houve casos em que a polícia demorou 14 horas para responder ao chamado. Cerca de 40% dos funcionários do Madero no estado já foram assaltados na saída do restaurante. “O medo da violência sempre nos obriga a mudar para pior”, diz Luiz Ildefonso Lopes, presidente da incorporadora canadense Brookfield no Brasil. Do total de despesas de seus seis shoppings no país, 23% são para segurança, cinco vezes a proporção de operações semelhantes nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Até os estacionamentos são planejados com mais curvas e cancelas para dificultar a fuga de bandidos, e o Brasil é o único país em que é preciso ter sistemas de reconhecimento facial e manter um banco de dados de frequentadores para identificar assaltantes recorrentes. “O problema é que o custo extra com segurança está matando a margem de lucro das empresas e, quem consegue, repassa para o consumidor”, diz Ana Tozzi, sócia da consultoria de varejo AGR. A distribuidora de energia Light, que opera no Rio de Janeiro, estima que, se não houvesse o furto de eletricidade, a conta de luz seria 17% mais barata. No Rio, os fornecedores de bares e restaurantes já aumentaram 4% os preços, em média — mais uma má notícia para muitos estabelecimentos que já estão encerrando o expediente mais cedo na cidade por causa da violência. “É um cenário em que todos perdem”, diz Sérgio Duarte, vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro.
Para não ficar à mercê de uma polícia sobrecarregada, desmotivada e mal equipada, as empresas estão investindo do próprio bolso em segurança. Só a indústria desembolsou 11,7 bilhões de reais nisso em 2017. Parte do dinheiro foi para monitorar a frota de transporte: instalar rastreadores nos caminhões, esconder sensores com GPS nas cargas, blindar veículos e até usar drones para localizar cargas. A transportadora paulista Fadel, especializada em alimentos e bebidas, paga 6 milhões de reais por ano para rodar, simultaneamente, cinco plataformas tecnológicas diferentes de rastreamento em seus 400 caminhões. “De cada três concorrentes nossos, dois desistiram de operar nas mesmas rotas por insegurança”, diz Ramon Alcaraz, presidente da Fadel.
A fabricante de biscoitos e massas Piraquê, do grupo cearense M. Dias Branco, dobrou o tamanho da escolta no ano passado, quando anotou praticamente um roubo por semana. Hoje, 30 seguranças particulares acompanham diariamente parte dos 150 caminhões da frota, especialmente no Rio, onde a Piraquê tem duas fábricas e um centro de distribuição. Outra estratégia adotada foi formar comboios de três a cinco caminhões para dificultar os assaltos. Mesmo assim, só neste ano já houve nove ocorrências. “Em nossos 60 anos de operação no Rio, nunca vimos uma situação como essa”, diz Alexandre Colombo, diretor de marketing da Piraquê. Deixar de vender no estado está fora de cogitação, já que 70% da receita sai de lá. Não é para menos que o transporte aéreo tem crescido. A empresa de logística especializada em medicamentos RV Ímola dobrou o volume de medicamentos levados por seus aviões no ano passado. Na transportadora Panalpina, os pedidos de envio por avião de eletroeletrônicos, em especial celulares e tablets, cresceram 25% em 2017.
Com os índices crescentes de violência, o setor de seguros apertou seus critérios. No Rio de Janeiro, as seguradoras aumentaram tanto as exigências para algumas cargas que fazer seguro delas se torna inviável. Além de pedir sistema de rastreamento e escolta, algumas empresas passaram a cobrar a taxa de emergência excepcional, de 10 reais por 100 quilos transportados mais um percentual do valor da carga (de 0,3% a 1%). A taxa foi criada em abril do ano passado para cobrir o aumento dos riscos no Rio de Janeiro. É comum também sugerirem franquias de até metade do valor do bem. “Muitas já nem aceitam mais fazer o seguro”, diz Aparecido Rocha, especialista em seguros internacionais.
A fabricante de itens de higiene e limpeza Bombril teve um aumento de 29% nas despesas com prêmios de seguros neste ano, somando custos extras de 245 milhões de reais. No último ranking do Joint Cargo Committee, comitê inglês formado por especialistas em avaliação de risco, o Brasil aparece como o oitavo país mais violento entre os 57 analisados, depois do México e de locais em guerra e com conflitos civis. A lista é usada por seguradoras para calcular apólices e taxas adicionais de transporte internacional e leva em consideração o risco de guerra, pirataria e roubos em cada país. Na luta contra o crime, as empresas estão usando as armas disponíveis, mas, sozinhas, jamais vencerão essa guerra.