Cidade de Deus, zona oeste carioca: chegada da UPP tranquilizou moradores e abriu espaço para negócio (Eduardo Monteiro/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.
Em fevereiro de 2009, a operadora de TV por assinatura Sky inaugurou um estande de vendas no coração da Cidade de Deus, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, na zona oeste da cidade. Enquanto a Sky fechava as primeiras vendas, uma farmácia, na principal praça da comunidade, ganhava novo letreiro, indicando a presença de um caixa eletrônico da rede 24 Horas, o primeiro do lugar. Poucos meses depois, agentes da Light, principal distribuidora de energia do estado, iniciavam o cadastramento de moradores que usavam eletricidade por ligações ilegais, os famosos “gatos”.
Os técnicos da concessionária também mapearam os locais onde a rede de distribuição precisaria de reparos. Numa ação quase simultânea, a varejista Ponto Frio, instalada há quatro anos na Cidade de Deus, promovia uma mudança em sua loja: finalmente colocava eletrodomésticos e eletrônicos em prateleiras — antes, esse tipo de produto ficava escondido em caixas por medida de segurança. Atualmente, o Banco do Brasil está adaptando um prédio já alugado na comunidade, onde vai inaugurar uma agência até dezembro. “Não estamos fazendo caridade. Queremos estar lá porque há uma classe média significativa e um comércio pulsante”, diz Hilderaldo Dwight, gerente de gestão de canais do banco.
Com quase 40 000 moradores — população superior à de 4 815 cidades brasileiras, ou 86% do total de municípios do país —, e boa parte deles da classe C, é incrível que a Cidade de Deus ainda não contasse com serviços tão básicos. A explicação para a carência de oferta está no crime organizado, que criava uma barreira intransponível para a chegada de empresas e do próprio Estado. A história da Cidade de Deus se confunde com a do Comando Vermelho, facção criminosa que controlou a região por mais de três décadas. A relação entre a comunidade e o crime ganhou projeção internacional em 2002 com o filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Sucesso de bilheteria no país, com mais de 3 milhões de espectadores, o filme também agradou ao público internacional e, em 2004, recebeu quatro indicações ao Oscar. A obra de Meirelles mostrou como os criminosos, encastelados na comunidade pela força das armas, impunham suas leis e controlavam a prestação de serviços, como a venda de gás e de água.
Estado presente
O cenário começou a mudar em fevereiro de 2009 com a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora, apelidada de UPP pelo governo do estado, a segunda das 13 postas em operação até agora no Rio de Janeiro. O posto policial e o sistema de patrulhamento das ruas começaram a funcionar após três meses de operações policiais que culminaram na prisão dos principais chefes do tráfico local — o Batalhão de Operações Especiais (Bope) realiza a primeira fase do trabalho, uma espécie de limpeza do terreno, apreendendo armas e prendendo os chefes do tráfi co que resolverem enfrentá-lo. Hoje, 309 oficiais revezamse no policiamento da Cidade de Deus. Em um ano de ocupação, o índice de homicídios caiu 82%, e o número de roubos, 72%. “Sabemos que não acabamos com o comércio de drogas, mas não há mais o poder paralelo do crime e a circulação de pessoas com armas de guerra”, diz José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do estado. “Também não há mais desculpas para o bairro não ter escola, hospital e outros serviços prestados pelo Estado.”
As primeiras empresas a chegar à Cidade de Deus foram as de infraestrutura. Até recentemente, além da insegurança, elas esbarravam na concorrência de serviços ilegais ofertados na favela, operados com o aval do tráfico. Desde a chegada da UPP, três centrais clandestinas de TV foram desmontadas, abrindo espaço para empresas como Oi, Sky e Embratel. “Antes, mal conseguíamos fazer reparos na rede de telefonia”, diz João Silveira, diretor de mercado da Oi, que deslocou promotores de venda para a região e hoje possui 1 050 clientes de seu serviço de TV por assinatura na comunidade.
O estande inaugurado pela Sky fez com que a empresa aumentasse em 50% o número de clientes na Cidade de Deus em um ano, mais que o dobro do crescimento registrado nas demais favelas do Rio. Com o resultado, a Sky Brasil decidiu levar lojas da companhia a todas as comunidades “pacifi cadas” do Rio de Janeiro. A Light viu nas UPPs a chance de atacar um de seus maiores problemas, o furto de energia. Todos os anos, cerca de 20% da energia que a concessionária compra para repassar a seus clientes no estado é desviada por ligações ilegais. Na Cidade de Deus, a empresa investiu 8 milhões de reais na instalação de medidores de consumo de energia, na renovação da rede e num projeto de troca de lâmpadas e de geladeiras dos moradores. A estimativa da Light é que o esforço gerará um aumento de 15% na base de clientes na região até o fim deste ano.
Para as empresas já instaladas na Cidade de Deus, a pacificação representa a chance de explorar o potencial de consumo de uma comunidade onde um terço dos moradores está na cobiçada faixa de renda da classe C (de 1 115 a 4 800 reais mensais). Um ano após a instalação da UPP, as vendas da rede de varejo de eletroeletrônicos Ponto Frio cresceram inéditos 15%. O supermercado Prezunic, o maior da comunidade, aumentou as vendas em 10%. “Muitas pessoas preferiam fazer as compras fora daqui por medo de ser roubadas na saída da loja. Agora, frequentam a nossa loja”, diz Antônio Félis, gerente do Prezunic. Para os moradores, a retomada da Cidade de Deus pelo Estado representou não só o acesso a novos serviços mas também uma mudança radical em seu modo de vida. Há dois meses, a manicure Noemi Gomes da Costa, de 30 anos, adquiriu um pacote de TV por assinatura. Foi apenas uma de suas recentes conquistas. Com o aumento da segurança, seus três filhos deixaram de ter as aulas suspensas por causa de tiroteios constantes. As crianças também ganharam permissão para brincar parte do dia na rua, algo impensável antes da UPP. “Agora posso trabalhar até mais tarde no salão e voltar tranquila para casa. Antes, perdíamos clientes para não chegar à noite”, diz.
Formalização
No caso do carioca Alexandre Leôncio, dono de uma loja de doces e biscoitos, a pacifi cação foi sucedida pela formalização. Leôncio foi um dos primeiros a tirar o alvará de funcionamento de seu comércio. A legalização da loja foi facilitada pelo Empresa Bacana, programa da prefeitura que acelera a emissão de alvarás de pequenos negócios. Desde fevereiro, quando o Empresa Bacana foi implantado na Cidade de Deus, 334 estabelecimentos foram formalizados, cerca de 15% do total do bairro. Com a empresa legalmente aberta, Leôncio começou a fazer encomendas diretamente de fornecedore como Elma Chips, Nestlé e Minalba. Com isso, seu faturamento mensal passou de 4 000 para 35 000 reais, o suficiente para que Leôncio ampliasse a loja e contratasse um funcionário. “Não fazia ideia das portas que poderiam se abrir pelo simples fato de estar legalizado", diz ele. Apesar de tardia, a presença do Estado na Cidade de Deus foi ampliada nos últimos meses com a inauguração de uma escola técnica, uma creche e uma rede de internet sem fio gratuita. A prefeitura mobilizou uma operação tapa-buracos e comprou 700 novos pontos de luz, que estão em fase final de instalação.
É evidente que os problemas ainda são muitos. Eles transparecem no cheiro de esgoto em várias ruas, no transporte precário e no lixo acumulado em vielas. De qualquer forma, os avanços alcançados chamam a atenção principalmente por mostrar que é possível quebrar o domínio exercido pelas quadrilhas do tráfico, uma mazela histórica da cidade. Fora isso, os benefícios das UPPs começam a extrapolar os limites das comunidades. Prova disso é a valorização dos imóveis nos bairros com favelas pacificadas. Em Copacabana, o preço dos imóveis aumentou até 70% desde que duas comunidades receberam UPPs, segundo levantamento feito em agosto pelo Secovi-Rio, entidade que representa as imobiliárias. A meta do governo é levar 40 UPPs a 160 favelas do Rio nos próximos quatro anos. No ritmo atual, porém, o trabalho de pacificação das quase 1 000 comunidades da cidade pode levar décadas. Ao que tudo indica, entretanto, vale a pena perseverar e acelerar o trabalho. Quanto mais cedo são dados os primeiros passos, mais rápido se chega às soluções de longo prazo.