Revista Exame

Para impeachment, não precisa haver um Fiat Elba, diz Mendes

Gilmar Mendes, ministro do STF, diz que não é preciso haver provas de que um presidente cometeu um crime para o impeachment — basta mostrar sua omissão


	Ministro Gilmar Mendes: “É preciso uma repactuação política no Brasil”
 (Carlos Humberto/SCO/STF)

Ministro Gilmar Mendes: “É preciso uma repactuação política no Brasil” (Carlos Humberto/SCO/STF)

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Da Redação

Publicado em 23 de dezembro de 2015 às 04h56.

São Paulo — A presidente Dilma Rousseff mostrou indignação no discurso proferido em 2 de dezembro, logo após o presidente da Câmara dos Deputados, Eduar­do Cunha, ter aceitado a abertura do processo de impeachment contra ela. Dilma ressaltou que não paira sobre ela nenhuma suspeita de desvio de dinheiro público ou outro ato ilícito.

Além de uma provocação a Cunha, acusado de ter contas ilegais no exterior, a afirmação é uma forma de a presidente se distanciar pessoalmente dos atuais escândalos de corrupção. No entanto, esse argumento pode não funcionar em sua defesa.

“A responsabilidade política vai além da pessoal”, diz o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Men­des. Segundo o ministro, para ocorrer o im­peachment não é necessário haver uma prova como foi o famoso Fiat Elba para o ex-presidente Fernando Collor de Mello — o carro de uso particular do presidente foi comprado com dinheiro de contas fantasmas, o que subsidiou o processo de impeachment de Collor. 

Nenhum ministro do Supremo tem sido tão abertamente crítico ao Partido dos Trabalhadores como Mendes. Deputados petistas desistiram de questionar a abertura de processo de impeachment na Câmara depois de descobrir que Gilmar Mendes havia sido o sortea­do para julgar o pedido. Entre os 11 mi­nistros da corte, ele é o único indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Mato-grossense de Diamantino, Mendes vem de uma família de fazendeiros. Cursou direito na Universidade de Brasília, foi procurador da República e advogado-geral da União. Está no Supremo desde 2002, corte que presidiu de 2008 a 2010. Mendes conversou com EXAME antes de inaugurar uma unidade em São Paulo do Instituto Brasileiro de Direito Público, fundado por ele em Brasília na década de 90.

Exame - Com os fatos já revelados pela Operação Lava-Jato e com as pedaladas fiscais, a presidente Dilma pode perder o cargo?

Mendes - Tudo isso tem de ser examinado pelo Congresso Nacional. Mas, em tese, sim: os fatos poderiam levar a um impeach­ment. Até porque a responsabilidade política vai muito além da pessoal. Para caracterizar o crime de impeach­ment, não precisa haver um Fiat Elba ou dinheiro recebido em conta pessoal.

Basta o fato de, por ação ou omissão, um presidente ter deixado que crimes contra a lei orçamentária ou contra a probidade da administração ocorressem. Isso é possível provar com a indicação de pessoas que permitiram a prática, com a nomeação de envolvidos em casos de corrupção ou pelo fato de não demiti-los.

Exame - São vários processos que correm ao mesmo tempo: o de impugnação da candidatura de Dilma no Tribunal Superior Eleitoral, a discussão das contas reprovadas no Tribunal de Contas da União e a comissão agora instaurada no Congresso. Eles terão desfecho em 2016?

Mendes - Acredito que sim. É bom que se resolvam na primeira parte do ano. Mas os processos têm seu ritmo. Por exemplo, a admissão da ação contra a presidente no TSE tomou muito tempo, já poderíamos ter instaurado isso em março. A demora se justifica devido à complexidade do assunto.

É rara a abertura de um processo contra um presidente da República. Duas situações se colocam: o caráter especial da ação e a situação peculiar de conflito, com os ânimos acirrados. Mas é bom que haja um rápido encaminhamento para que as ações — e a instabilidade — não se eternizem.

Exame - Como o senhor compara a situação vivida agora com o impeachment do presidente Collor?

Mendes - Do ponto de vista econômico, a situação hoje talvez seja muito pior, porque estamos em um quadro de depressão econômica. Collor tinha menos apoio político na época do que tem a presidente Dilma.

Obviamente, os fatos ligados ao impeachment de Collor eram mais limitados e, na Lava-Jato, eles são imensamente mais graves. Basta ver os valores que já foram devolvidos para ter a dimensão do escândalo. É unânime que se trata do maior caso de corrupção do Brasil, talvez do mundo.

Exame - Quais são os reflexos do processo de impeachment na economia?

Mendes - O país vem sofrendo muito com a depressão econômica desde o início do ano. Não sei qual o reflexo imediato do impeachment e é difícil fazer uma estimativa de longo prazo.

A vantagem da abertura do processo é que se caminha para uma solução, algo positivo para as forças econômicas e sociais. E contribui para o fim de um estado de indefinição, malemolência e estagnação. Também é preciso haver uma repactuação política no país.

Exame - O caso das pedaladas fiscais mostra que temos de amadurecer em relação à transparência das contas públicas. O que pode ser feito?

Mendes - Temos de criar mecanismos de defesa do processo democrático para for­talecer a ideia de responsabilidade fiscal e minimizar o risco de pedaladas. Muitos países europeus fizeram seu dever de casa. A Alemanha é um exemplo, com uma lei de estabilidade econômica e financeira.

O Brasil trilhava um bom caminho com a Lei de Responsabilidade Fiscal, mas as au­toridades públicas perceberam que a legislação atrapalhava seus propósitos — e, por isso, vivemos nessa si­tuação de déficit e de depressão econômica. Temos de retomar o caminho da responsabilidade fiscal para ter crescimento sustentável.

Exame - O que muda no Brasil com a Operação Lava-Jato?

Mendes - A Lava-Jato tem revelado um método de governança em que a corrupção é a forma de atuar politicamente. E, por isso, ela tem um significado extremo em termos institucionais. Sem a Lava-Jato, teríamos a possibilidade de eternização de um dado grupo no poder se alimentando nas burras das estatais, fatiando propinas entre partidos.

Felizmente houve essa descoberta. Por outro lado, temos no futuro o grande desafio de encontrar uma forma de governança que coloque as estatais a salvo desse tipo de ataque.

Exame - Na Operação Lava-Jato, existem gravações que indicam que políticos recorreriam aos ministros do Supremo para influenciar suas decisões. Isso de fato ocorreu?

Mendes - Diante do quadro de anormalidade em que vivemos, aparecem lobistas e pessoas que vendem prestígio fazendo esse tipo de insinuação. É claro que tais citações são indesejáveis, mas elas ocorrem.

Há advogados que dizem que têm facilidade aqui e acolá. Foi o que aconteceu no episódio lamentável envolvendo o senador Delcídio do Amaral. E o tribunal tem pouco a fazer a não ser lamentar e denunciar essa prática. Sempre haverá esse tipo de menção.

Exame - O debate sobre o papel do Estado na economia e na sociedade voltou à ordem do dia com todos os casos de corrupção recentes. A Constituição nos dá alguma luz sobre essa discussão?

Mendes - O texto constitucional sinaliza que o caminho a ser seguido é o de menor participação estatal. A criação de empresas estatais, por exemplo, só deve ocorrer em caso de necessidade estratégica para o país.

Veja o que aconteceu com a Vale, que foi privatizada, e com a Petrobras, estatal. Ambas empresas de grande porte, uma com a versão profissional e a outra com uma versão politizada. Esse deve ser o debate que devemos ter no futuro, quando o país voltar à normalidade.

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