Revista Exame

Não há onde se esconder

O reconhecimento facial chegou à segurança pública no Brasil e no mundo, e a tecnologia enfrenta uma polêmica global sobre a privacidade

Biometria facial em Salvador: a tecnologia ajuda no combate ao crime na cidade (Pedro Accioly/Exame)

Biometria facial em Salvador: a tecnologia ajuda no combate ao crime na cidade (Pedro Accioly/Exame)

Lucas Agrela

Lucas Agrela

Publicado em 26 de setembro de 2019 às 05h28.

Última atualização em 26 de setembro de 2019 às 10h05.

As pessoas que caminham hoje pelas ruas de Salvador, na Bahia, podem dizer que fazem parte de um novo experimento na área de segurança. O rosto de cada uma é filmado, digitalizado e, por meio de um sistema de inteligência artificial, comparado a uma base de dados com as fichas criminais do estado da Bahia. Eventualmente, o sistema identifica uma pessoa procurada por um crime, e ela é abordada por policiais na rua e presa na mesma hora. Isso acontece graças a um sistema de reconhecimento facial que passou a ser usado pela polícia baiana.

Ao custo de 18 milhões de reais, a tecnologia, fornecida pela chinesa Huawei, é empregada na cidade desde dezembro do ano passado. Até meados de setembro, as autoridades conseguiram encontrar e prender 63 acusados de crimes como homicídio, estupro e tráfico de drogas. O número é pequeno porque a instalação do sistema ainda está nas primeiras etapas. As câmeras podem, ainda, reconhecer placas de carros roubados, e isso ajuda a identificar também as rotas usadas por quadrilhas.

Na contramão das políticas que incentivam a truculência com criminosos — e que fazem vítimas inocentes, como a menina Ágatha Félix, recentemente morta no Rio de Janeiro —, as câmeras são um exemplo claro de como o investimento em inteligência policial pode ajudar a reduzir a violência, que fez 57.341 vítimas no país em 2018. É a maior quantidade do mundo em números absolutos. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia relaciona o uso da tecnologia à queda de 18% nos roubos e de 5% nos furtos de veículos no primeiro semestre de 2019 em comparação  com o mesmo período do ano passado.

Salvador — nona capital mais violenta do Brasil e onde houve 1.245 mortes em 2018 — é monitorada em pontos de grande fluxo de pessoas, como locais de integração de transporte público e o estádio Arena Fonte Nova. Quando o sistema encontra uma pessoa com semelhança acima de 90% de um suspeito, entre os 65.000 indivíduos cadastrados na base de dados, o software dispara um alerta. Nessa hora, o policial avalia o caso com a equipe de inteligência e avisa o agente mais próximo. Tudo ocorre em minutos. É, portanto, uma tecnologia que pode ajudar, em muito, a combater o crime — algo urgente no Brasil.

Há oito anos no cargo, Maurício Barbosa, secretário de Segurança Pública da Bahia, coordenou a criação em 2016 de um centro integrado de operações. Ali estão reunidos o atendimento de emergência, a Polícia Civil e a Polícia Militar. A unidade fica no prédio da secretaria. A adoção do sistema de reconhecimento facial veio em seguida. Com a integração do banco de dados de mandados de prisão emitidos pela Justiça, bem como a associação de indivíduos flagrados pelas câmeras às suas fotos, a polícia consegue prender suspeitos sem depender apenas da perspicácia de um policial.

Para Barbosa, é difícil estimar o impacto do uso da tecnologia, uma vez que, ao tirar um acusado das ruas, não é possível saber quantos crimes ele poderia ter cometido. “O reconhecimento facial ajuda a melhorar a eficiência e a eficácia do policial porque temos uma gama de suspeitos procurados por uma série de delitos diferentes. Agora podemos acompanhá-los a distância, sem oferecer risco ao agente de campo. E conseguimos realizar mais prisões”, disse o secretário em entrevista a EXAME em Salvador. Com centenas de câmeras espalhadas pela cidade, o próximo passo é levar a tecnologia para municípios do interior com altos índices de criminalidade.

A Bahia não é o único estado que começa a utilizar o sistema de reconhecimento facial na segurança pública. Em um teste realizado no bairro de Copacabana no Carnaval de 2019 pelo Centro Integrado de Comando e Controle do Estado do Rio de Janeiro, com a operadora Oi e a Huawei, a PM identificou e prendeu oito pessoas para as quais havia mandados de prisão, ante apenas uma durante o feriado em 2018. Numa segunda fase do teste, de julho a setembro deste ano, 38 procurados foram presos, segundo Max de Oliveira, coordenador de assuntos estratégicos da Secretaria de Polícia Militar do Rio de Janeiro. “O sistema é uma ferramenta de eficiência operacional. Ele não obriga a prisão. O protocolo de ação prevê uma abordagem normal para a verificação de documentos. Caso o suspeito não seja a pessoa apontada pelo sistema, ele é liberado”, diz Oliveira. Além da Bahia e do Rio, São Paulo também estuda o uso da tecnologia no monitoramento policial.

O avanço trazido pelo reconhecimento facial à segurança pública é comparado por especialistas ao da análise de DNA em cenas de crime. A Interpol, organização internacional das polícias com sede na França, usa a tecnologia. Em 2017, a agência localizou 60 procurados por meio do reconhecimento facial. Mas o país que lidera a adoção da tecnologia é a China. Lá, o governo tem mais de 200 milhões de câmeras, uma para cada sete habitantes. Com a vigia, os crimes cometidos com arma de fogo caíram 28% no país em 2018. No caso da China, o problema é quando o sistema extrapola a segurança pública e é usado para perseguir opositores políticos e críticos do regime do Partido Comunista. Não é à toa que os manifestantes de Hong Kong usam máscaras, guarda-chuvas e raios laser para despistar o Grande Irmão.

Passageiros no metrô na China: o país tem uma câmera para cada sete habitantes | Lam Yik Fei/The New York Times/Fotoarena

Quando bem aplicada, no entanto, a tecnologia de reconhecimento facial é uma aliada contra o crime em diversos países. Na Rússia, as autoridades usaram óculos com tecnologia de biometria facial durante a Copa do Mundo, no ano passado, e prenderam 180 pessoas. Em 2020, o acessório será usado pela polícia no dia a dia. A tecnologia é fornecida pela estatal chamada Rostec. Nos Estados Unidos, o tema é polêmico. Sem uma lei federal, cidades como São Francisco e Oakland, na Califórnia, e Somerville, no Texas, decidiram proibir o uso de reconhecimento facial para espiar a população. Mas Baltimore, próxima à capital Washington e uma das cidades mais violentas do país, já usou a tecnologia para prender suspeitos.

Com a presença cada vez mais difundida do reconhecimento facial nos meios público e privado — em sistemas de autenticação antifraude, por exemplo —, o mercado para esse tipo de tecnologia está em expansão. A consultoria americana Tractica estima que o faturamento global das empresas do segmento passará de 3,6 bilhões de dólares, em 2018, para 15 bilhões, em 2024. Isso está inserido num mercado crescente de câmeras de videomonitoramento, que deverá ter uma receita de 86 bilhões de dólares em 2024, segundo a consultoria indiana Mordor Intelligence.

Nessa onda, muitas startups têm surgido e recebido investimentos cada vez maiores. Um levantamento exclusivo feito pela consultoria Pitchbook para EXAME mostra que o número de investimentos em startups de reconhecimento facial passou de 112 milhões de dólares em 2015 para 4,7 bilhões no ano passado. Os países que registraram os maiores recursos são China — que concentrou 91% dos investimentos de 2018 —, Estados Unidos, Israel e Reino Unido. A startup do setor mais valiosa do mundo é a chinesa SenseTime, avaliada em 7,6 bilhões de dólares. Com aportes de 2,6 bilhões, ela atua no ramo de inteligência artificial, que está diretamente relacionado com o reconhecimento facial, transformando imagens de rostos em códigos.

A vigilância em massa preocupa especialistas. Kalev Leetaru, pesquisador sênior do Centro de Cibersegurança e Segurança Nacional na Universidade de Auburn, nos Estados Unidos, vê o uso de reconhecimento facial por governos como algo alarmante. Para ele, os algoritmos de biometria facial podem gerar maior número de falsos positivos em pessoas negras. “Os algoritmos podem apresentar viés racial, algo que é preocupante para o uso governamental”, afirma Leetaru.

A privacidade é uma das polêmicas em torno do reconhecimento facial. A Comissão Europeia é contra o uso da tecnologia no monitoramento da população e planeja limitá-lo. O bloco europeu, conhecido pela dura Regulação Geral sobre a Proteção de Dados, almeja criar regras para que os cidadãos saibam quando os dados de seu rosto estão sendo utilizados. O Brasil tem uma lei de proteção de dados parecida com a europeia, mas o uso da biometria facial não é restringido. “A lei não limita o uso para a identificação de imagens de pessoas nas ruas. Mas é um tema polêmico. Apenas o governo deve ter acesso aos dados”, afirma Adriano Mendes, especialista em direito digital e sócio do escritório de advocacia Assis e Mendes. Outro entrave é a precisão.

A acurácia da imagem passou de 92,3%, em 2010, para 99,7%, em 2018, segundo o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, vinculado ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos. Porém, a margem de erro ainda é grande para o uso em ampla escala. Alessandro Faria, um dos maiores pesquisadores em biometria do Brasil e sócio da empresa Certiface, diz que a tecnologia requer cautela. “Mesmo com uma margem de erro de 0,01%, entre 12 milhões de habitantes, ainda estamos falando de 1.200 pessoas com possíveis alertas falsos”, diz Faria. Ainda que precise de supervisão, o reconhecimento facial está pronto para o uso. Falta, agora, vencer as barreiras éticas, políticas e legislativas.

Acompanhe tudo sobre:BiometriaPrivacidadeSegurança públicaseguranca-digital

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025