Revista Exame

“Não é o vírus que tira meu sono”

O historiador americano Joel Mokyr diz que a sociedade tem mais condições para enfrentar pandemias

O historiador econômico Joel Mokyr, professor na Universidade Northwestern, em Chicago, acredita que a sociedade hoje tenha muito mais ferramentas para enfrentar pandemias como a do novo coronavírus. E, por isso, crê que seus efeitos serão limitados. O que ele teme, porém, são as investidas de líderes populistas contra a democracia e as instituições  (Agence Opale/Alamy/Fotoarena)

O historiador econômico Joel Mokyr, professor na Universidade Northwestern, em Chicago, acredita que a sociedade hoje tenha muito mais ferramentas para enfrentar pandemias como a do novo coronavírus. E, por isso, crê que seus efeitos serão limitados. O que ele teme, porém, são as investidas de líderes populistas contra a democracia e as instituições (Agence Opale/Alamy/Fotoarena)

FS

Fabiane Stefano

Publicado em 18 de junho de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h36.

O historiador econômico naturalizado americano Joel Mokyr costuma se diferenciar de seus pares por um olhar otimista sobre a capacidade da sociedade de enfrentar os desafios que os tempos atuais impõem. Um dos maiores especialistas do mundo em economias industriais modernas e professor na Universidade Northwestern, em Chicago, Mokyr acredita que os avanços científicos e tecnológicos tenham criado uma resiliência muito maior das economias perante as adversidades. São essas conquistas que o fazem pensar que o impacto do coronavírus deve ser limitado.

O historiador, porém, diz que tem se preocupado muito mais com retrocessos na democracia, nas instituições e nas liberdades individuais. “Essa é a vulnerabilidade da sociedade hoje. A prosperidade econômica exige um alto grau de liberdade, inconformismo e gente pensando fora da caixa”, afirma Mokyr. Leia a seguir a entrevista concedida à ­EXAME.

Do ponto de vista da história econômica, como o senhor dimensiona a pandemia do novo coronavírus?

>A pandemia vai trazer mudan­ças permanentes, mas, pensando num cenário mais amplo, não acho que mudará o curso da sociedade. Continua­remos a ter um crescimento econômico baseado em avanços cie­ntíficos e tecnológicos. É fato que não vivemos nada parecido com isso nos últimos 100 anos. Surgiram novos vírus, como o zika e o HIV. Pense na aids: quando surgiu, era asso­ciada a grupos como o de homossexuais e o de hemofí­licos. Não havia um medo co­­letivo de contrair aids. No caso da covid, sabe-se que os assintomáticos são capazes de transmitir a doença, mas não há segurança de como e quando isso ocorre, o que exigiu que tudo fosse fechado e as pessoas se recolhessem em casa.

Mas os impactos econômicos serão profundos...

Sim, os efeitos de longo prazo vão persistir. Talvez sejam necessários dois ou três anos para estarmos no patamar do PIB global anterior ao da pandemia. Mas os efeitos são dispersos e desiguais. Há setores que foram duramente atingidos, como o transporte aéreo. Um grande número de pequenas empresas, talvez 50%, não voltará a operar nos Estados Unidos. Negócios como restaurantes, oficinas, salões de beleza não vão sobreviver à crise. Mas é como ocorre depois de um incêndio florestal: o meio ambiente é tão favorável que outras árvores vão nascer naquele lugar. No caso de um restaurante, por exemplo, a demanda deve continuar lá, os profissionais permanecem disponíveis. Outros virão.

Mas quais mudanças a pandemia deverá trazer?

Haverá, obviamente, ajustes na economia. E nem todos serão ruins. Muitas pessoas descobriram que conseguem trabalhar produtivamente de casa, e o teletrabalho será cada vez mais comum. Vamos repensar a utilização dos espaços, que na prática são aproveitados somente 50% do tempo. Metade do tempo nós estamos em casa; e metade, no trabalho. É muito desperdício.

As pandemias do passado não nos prepararam para a atual?

Sempre soubemos do risco de novas pandemias. Os governos têm sido alertados para isso e sobre como deveriam responder adequadamente. Historicamente, o meio ambiente joga contra os seres humanos. Doenças antigas sofrem mutações e podem se tornar mais agressivas. Foi isso que aconteceu com a varíola. Era um vírus que sempre esteve por aí e, entre os séculos 16 e 17, uma mutação o tornou muito mais virulento. As pessoas ficaram apavoradas, pois era uma doen­ça terrível e mortal. Aí descobriu-se a vacina em 1796 e foram necessários 200 anos para que a doença fosse erradicada. Um processo parecido ocorreu com a pólio nos anos 1920 e 1930, quando surtos da doença provocaram pânico. E aí veio a vacina nos anos 1950. Essas coisas se repetem. É uma eterna guerra entre os humanos e os microrganismos que tentam nos matar.

Laboratório na Itália: “O sequenciamento genético do novo coronavírus levou semanas para ser feito” | Antonio Masiello/Getty Images (Divulgação)

Mas os avanços científicos não colocam a humanidade numa situação muito mais vantajosa hoje?

A humanidade tem hoje ferramentas que há 100 anos, quando emergiu a gripe espanhola, nem sequer poderiam ser imaginadas. Em 1918, as pessoas não sabiam que a gripe espanhola era causada por um vírus, que foi isolado apenas em 1933. Já o sequenciamento genético do coronavírus foi feito em semanas, em meio a uma crise sanitária que surgiu há seis meses. A gripe espanhola matou 50 milhões de pessoas no mundo. Nos Estados Unidos, as estimativas apontam que morreram aproximadamente 600.000 pessoas na época, numa população equivalente a um terço da atual. Se a covid-19 tivesse a mesma mortalidade da gripe espanhola, ela mataria 2 milhões de americanos. E isso não vai acontecer. Vamos derrotar o vírus e, no processo, vamos aprender mais e criar novas soluções que serão aplicadas a outras coisas. E na próxima pandemia seremos ainda mais rápidos.

A sociedade se tornou mais resiliente, portanto?

Somos mais resilientes a qualquer tipo de choque porque a prosperidade das nações hoje é construída com base em conhecimento e tecnologia. Isso é difícil de destruir. A pobreza no mundo vem caindo rapidamente nos últimos 20 anos, sobretudo por causa do crescimento econômico da China e da Índia. Esses fundamentos devem continuar os mesmos. Sendo muito franco, o que me tira o sono não é um vírus, mas os ataques à democracia e às instituições. Essa é a vulnerabilidade da sociedade hoje. O risco para a prosperidade futura não vem da natureza, de pandemias ou terremotos, mas, sim, dos seres humanos.

Quais riscos o senhor vê?

Nos últimos 20 anos, porém, houve um declínio acentuado na prevalência e na popularidade das democracias liberais. Isso faz parte de um “ciclo normal”. As democracias liberais são processos confusos e difíceis de manejar, geralmente repletos de corrupção. Então, as pessoas se cansam delas e escolhem populistas autoritários ou machos “lei e ordem”, como Rodrigo Du­terte, nas Filipinas, e Hugo Chávez, na Venezuela, somente para descobrir que são dez vezes piores, e depois querem os democratas de volta.

Por que isso ocorre?

O problema é que existe uma assimetria: é fácil votar em líderes democráticos inaptos ou desonestos — essa, afinal, é a ideia por trás da democracia. Mas os autoritários, em geral, exigem muito mais esforço para ser desalojados: veja o horrível Viktor Orbán, na Hungria, para não falar de Vladimir Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China. Foi preciso uma guerra para livrar o mundo de Mussolini e uma espera de 30 anos para fazer o mesmo com Franco, na Espanha. Eles compartilham entre si uma visão anti-intelectual e anticiência, sem compromisso com valores como a liberdade de expressão. Eles não são conservadores, mas criam uma mistura tóxica de ideologia nacionalista reacionária, criptofascista e raivosa.

O presidente Jair Bolsonaro já se envolveu em muitas polêmicas desde que foi eleito e agora tem minimizado os impactos da pandemia no Brasil. Como o senhor avalia o presidente brasileiro?

Bolsonaro representa uma tendência global em direção ao declínio da qualidade institucional e à corrupção da governança básica. O que a história nos conta é que, ao contrário da tecnologia que sempre melhora, isso não se aplica aos governos, que ora avançam, ora retrocedem. Mas a diferença entre esses novos líderes populistas está nas restrições institucionais que enfrentam: Duterte e Putin podem se safar de assassinatos, Xi é ainda pior, Trump não pode fazer da maneira que ele gostaria. Vamos torcer para que Bolsonaro acabe mais como Trump e menos como Putin. Mas não invejo os brasileiros.

A polarização foi ampliada pelas redes sociais?

Não estou convencido de que isso seja tão novo assim. Muito lixo já foi publicado nos jornais antes do surgimento do Twitter e do Facebook. Nos Estados Unidos, Joseph McCarthy liderou uma rede de notícias falsas em nome do combate ao comunismo na década de 1950. A vantagem da internet e das redes sociais é que o acesso é muito barato. As pessoas costumam ler basicamente o que confirma o que elas pensam. Se olharmos para os anos 1950 e 1960, não era tão diferente assim. Acho que o impacto atribuído às redes sociais é exagerado.

Mas qual é a diferença hoje?

A diferença está nas pessoas­ que têm poder e tomam as decisões. Trump acabou de cortar relações com a Organização Mundial da Saúde. Isso não é uma notícia falsa, é política. Existe um movimento de desmantelamento da cooperação global que pode resultar em políticas mais agressivas contra, por exemplo, a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Isso não ocorre somente nos Estados Unidos. Veja o que acontece na China. Os chineses abandonaram o comunismo, abriram seu mercado e tornaram-se uma economia capitalista. Mas uma economia capitalista exige mais democracia, porque são coisas que andam juntas. E Xi Jinping, em particular, virou as costas à democracia, à proteção dos direitos individuais, à liberdade de expressão. É o que estamos vendo também nos protestos em Hong Kong. O filósofo e historiador alemão ­Friedrich ­Schiller [1759-1805] disse que “contra a estupidez até os deuses lutam em vão”.

Com a pandemia, temos visto muitos ataques às cadeias globais de produção, sobretudo as da China. Essa é uma preocupação legítima ou é uma desculpa para uma guerra comercial?

Diria que o fato de a pande­mia ter iniciado em Wu­han, na China, é nada mais do que um azar. E daí? É responsabilidade dos chineses? É verdade que sob a administração Trump há claros sinais de aumento da sinofobia, especialmente porque Peter Navarro [conselheiro econômico de Trump] tem alegado que a China está trapaceando, roubando a tecnologia e destruindo a indústria americana. Resumindo, para Navarro os chineses são pessoas terríveis. Obviamente, ele não menciona que a China é quem há anos fornece produtos baratos que foram incrivelmente favoráveis aos consumidores americanos. Provavelmente, 50% das coisas que tenho na minha casa foram feitas na China. Os chineses não são perfeitos, claro, mas também não são essa força do mal. Dito isso, a China ficou mais agressiva sob a liderança de Xi, o que explica o aumento dos ataques por parte do governo Trump.

Há riscos contra a globalização?

Ela não está morta, mas profundamente abalada. A globalização foi uma força para o bem. Fez muita gente enriquecer e tornou o mundo mais integrado. Não foi boa para todo mundo, como quase nada é, mas foi a principal responsável por tirar milhões de pessoas da pobreza. É só olhar para o que aconteceu em Bangladesh, um lugar absurdamente miserável. O setor têxtil lá passou a produzir para as grandes marcas globais, a um custo baixíssimo, em condições de trabalho horríveis. O que aconteceu com a pandemia? Todas as fábricas fecharam e o que era ruim ficou pior. E foi isto que a globalização fez: deu a pessoas muito pobres uma chance de sobreviver. Elas não vivem bem, certamente poderia ser melhor, mas tirar isso delas é tornar tudo pior — tanto que as fábricas de vestuário estavam reabertas em maio. A globalização fez muito pelas pessoas, mas pode colapsar muito rápido. Essa parte da economia é pouco resiliente.

Os países estão gastando trilhões de dólares no combate à crise. O papel dos governos vai mudar com a pandemia? 

As dívidas vão aumentar para todos os paí­ses do mundo, sem dúvida nenhuma. No entanto, pragmaticamente, o que muda num país em que o endividamento de 90% do produto interno bruto passa temporariamente para 120%? O que espero é que as pessoas percebam que riscos como as pandemias exigem mais intervenção dos governos. É algo que o livre mercado jamais será capaz de lidar sozinho. Questões fundamentais virão quando surgir a vacina. Qual será o preço dela? Como será sua distribuição? Quem tiver dinheiro vai se vacinar antes dos mais pobres? Não sou um grande fã do Estado como regulador, mas esse é um caso em que as forças do mercado não podem agir sozinhas.

O presidente americano, Donald Trump, anuncia corte para Organização Mundial da Saúde: “Não é fake news. Isso é política”, diz Mokyr | Alex Wong/Getty Images

Em quais outras situações os governos deveriam ser mais atuantes?

Um assunto urgente é a questão das mudanças climáticas. Sem a intervenção dos governos, esse será de longe um desastre muito maior do que a pandemia de covid-19 terá sido. A diferença é o tempo do impacto. Os efeitos das mudanças climáticas levam anos para se manifestar. É apavorante o que pode acontecer e ninguém está fazendo nada a esse respeito. Já sabemos o que precisa ser feito e também como fazer, mas isso demanda recursos que os governos só passam a gastar se outros governos também estiverem desembolsando. E, ainda assim, os recursos não serão suficientes. O mundo atingiu uma sofisticação tecnológica capaz de solucionar muitos dos nossos problemas, porém seguimos tendo líderes idiotas. A prosperidade econômica exige um alto grau de liberdade, inconformismo e gente pensando fora da caixa.

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