Revista Exame

Não dá mais para fazer só o básico

Num símbolo da nova fase da indústria automobilística brasileira, a líder Fiat faz um esforço bilionário para deixar de ser apenas uma montadora de carros baratos

Fábrica da Fiat em Pernambuco: a empresa pretende atingir a liderança entre os SUVs no ano de estreia  (Germano Lüders / EXAME)

Fábrica da Fiat em Pernambuco: a empresa pretende atingir a liderança entre os SUVs no ano de estreia (Germano Lüders / EXAME)

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Da Redação

Publicado em 19 de outubro de 2015 às 11h10.

São Paulo - Por enquanto o vaivém dos cerca de 1 400 funcionários só pode ser visto em algumas partes do dia. Ainda é raro encontrar os primeiros carros que começam a tomar forma na recém-construída linha de produção da Fiat no Brasil, na pequena cidade de Goiana, a 63 quilômetros de Recife, em Pernambuco.

Em fase de testes, a fábrica produziu 200 unidades do Renegade, um SUV compacto da marca Jeep, desde outubro. O ritmo, porém, deve se intensificar — e muito — nas próximas semanas. No começo de março, a visita do italiano Sergio Marchionne, presidente mundial do grupo Fiat Chrysler,­ marcará a inauguração da fábrica.

No mês seguinte, o modelo deve chegar aos pontos de venda. Passado o compasso de estreia, a equipe poderá se revezar em até três turnos capazes de entregar 250 000 veículos por ano. O complexo, que consumiu 7 bilhões de reais, é o maior investimento numa só tacada da companhia no mundo atualmente.

O início da produção do jipinho em Pernambuco marca uma nova fase da Fiat no Brasil. O modelo destoa do restante de seu portfólio no país. A montadora ainda não confirma, mas especialistas estimam que o preço-alvo do Renegade no mercado brasileiro deve girar a partir de 65 000 reais.

Dos 15 modelos da empresa no país, apenas quatro têm preço inicial acima desse valor: o compacto de luxo Fiat 500, os sedãs Bravo e Linea e o SUV Freemont. Apenas 19 942 unidades desses modelos chegaram ao mercado em 2014, o equivalente a 3% das vendas da companhia.

Se os planos derem certo, o Renegade sozinho deverá vender três vezes mais de abril até dezembro e, dessa forma, ultrapassar os rivais diretos no país, o líder ­Eco­Sport, da Ford, e o vice-líder Duster, da francesa Renault, que venderam, respectivamente, 54 263 e 48 866 unidades em 2014.

“Daqui para a frente, queremos ser mais do que uma montadora de carros populares“, diz Cledorvino Belini, presidente da empresa no país. “E vamos investir pesado para isso.”

Nova fase

Mais do que um emblema do esforço individual da Fiat, a nova fábrica simboliza a intensa transição pela qual a indústria automobilística brasileira vem passando nos últimos anos. Até agora a montadora italiana se manteve na liderança, conquistada em 2001, ao colecionar êxitos com seus modelos básicos.

O extinto Mille, por exemplo, rodou no país por três décadas com praticamente o mesmo desenho quadrado até sair de linha, no ano passado — tempo suficiente para torná-lo um dos modelos que mais amortizaram o investimento inicial para seu lançamento no país.

Em 2014, o Palio — principal modelo básico da montadora — atingiu um marco histórico ao tirar pela primeira vez o pódio de carro mais vendido do país que o Gol, da Volkswagen, mantinha havia 27 anos. Os números do setor deixam claro, no entanto, que nada disso é suficiente para crescer.

Hoje, as vendas de modelos com motor 1.0 correspondem a 28% do mercado nacional. Em 2000, esse percentual passava dos 60%. Nas vendas da Fiat, esse percentual ainda é de 53% — só não é maior do que o percentual da Volkswagen, vice-líder do setor. O reflexo disso nos resultados é claro.

Belini, presidente da Fiat no Brasil: desafio de aprender a vender carros caros (Germano Lüders / EXAME)

Nos três últimos anos, enquanto o mercado teve queda de 9%, o volume de vendas da Fiat caiu 20%. Mesmo assim, a empresa se manteve — pelo menos até o fechamento desta edição — como exceção em meio à onda de dispensas nas maiores montadoras do país, que demitiram mais de 1 000 funcionários nos primeiros dias do ano.

Para escapar dessa armadilha, a saída é uma só: afastar o portfólio do estigma de carroça. “Todas as marcas estão fazendo um esforço maior para sustentar as vendas”, diz Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford, que desde 2013 só produz carros com direção hidráulica e travas elétricas. O novo KA, lançado em agosto de 2014, tem ar-condicionado e vidros elétricos de série.

Para renovar toda a linha de produtos, a GM investiu 5,7 bilhões de reais, de 2009 a 2013. Um dos lançamentos é o Onix. Lançado em 2012, o modelo, que sai de fábrica com todos os itens adicionais, foi o quarto mais vendido no país no ano passado.

Nada tem sido tão promissor, no entanto, quanto o segmento de SUVs. Nos últimos cinco anos, esse mercado saltou de 167 000 para 298 000 unidades — um aumento de 78%. 

No caso da Fiat, aproximar-se desse novo estrato fica mais fácil com a Chrysler, incorporada mundialmente pela montadora italiana em 2009. A companhia americana agregou seis marcas e 20 modelos, boa parte deles sedãs e SUVs. A primeira tentativa de tirar proveito disso aconteceu no fim de 2011, com o lançamento do Freemont, um jipe importado do México que chegou ao preço de 82 000 reais.

No ano passado, vendeu cerca de 3 700 unidades. Uma das razões das vendas fracas é a faixa de preço, quase duas vezes superior à de líderes do segmento. Outra foi a timidez da companhia no lançamento. “Esse foi o primeiro passo da montadora para entender melhor esse mercado”, diz Milad Kalume Neto, especialista da consultoria Jato Dynamics.

A escolha do Renegade, lançado mundialmente em 2014 e já à venda nos Estados Unidos e na Europa, segue uma lógica global. A principal delas é seu potencial em mercados em que esse segmento, sobretudo em versões compactas, como o Renegade, cresce rapidamente, como China e Brasil.

Estima-se que a demanda por jipinhos no mercado chinês, no qual o modelo será lançado em 2016, possa chegar a 6 milhões de carro por ano — de 2009 a 2013, o segmento cresceu 49% no país asiático. Diferentemente do que aconteceu na época do lançamento do Freemont, os olhos da cúpula mundial estão voltados para o Brasil neste momento.

Isso acontece desde a linha de produção, sob o cuidado direto do vice-presidente global de manufatura da companhia, o alemão Stefan Ketter, que se mudou para Pernambuco em 2013. Também é possível ver o dedo da matriz na campanha de lançamento, arquitetada pelo francês Olivier François.

Vice-presidente global da companhia, ele produziu comerciais famosos da Chrysler nos Estados Unidos, como o vídeo com apelo ufanista exibido no Superbowl, a final do futebol americano, em 2011, que marcou a recuperação das vendas da marca nos Estados Unidos após a crise. Sem revelar detalhes da campanha, a companhia diz apenas que — a exemplo das concorrentes — pretende associar o modelo ao estilo de vida aventureiro.

Aprender a vender carros mais caros tem exigido uma reformulação da estrutura da subsidiária. O primeiro passo nessa direção foi dado há oito meses. Com a ajuda da consultoria McKinsey, a companhia vem estudando sua rede de distribuição. “A típica concessionária Fiat não sabe vender produto de luxo”, diz o alemão Stephan Keese, da consultoria Roland Berger.

E, para atingir o volume pretendido logo na estreia, não seria viável contar apenas com as 43 concessionárias Chrysler em operação no país. Inicialmente, a equipe mapeou 145 cidades em todos os estados do país com demanda potencial para os modelos da Jeep.

Em seguida, analisou as concessionárias Fiat com bons resultados nas vendas de carros mais caros. Chegou a 60 grupos, que deverão abrir 140 lojas exclusivas Jeep no Brasil até dezembro. “Ter uma rede grande de concessionárias economizou um tempo precioso para a expansão nacional da marca ­Jeep”, diz Sérgio Ferreira, diretor responsável pela marca Chrysler, que desde meados de 2014 se reporta a Belini.

A montadora quer chegar ao fim do ano com 200 pontos de venda de seus carros mais caros — a rede Fiat tem 600 lojas. É uma vantagem e tanto para a montadora, que terá de enfrentar a artilharia da concorrência neste ano. A japonesa Honda promete seu primeiro SUV, o HR-V, para o primeiro trimestre de 2015, e a Peugeot, outra estreante no segmento, deverá lançar o modelo 2008 em junho.

O esforço para ampliar o portfólio de veículos mais sofisticados não vai parar no Renegade. Segundo o presidente mundial Sergio Marchionne, a empresa pretende produzir outros dois veículos em Pernambuco, que deverão ser anunciados até o começo de 2016.

Especialistas dão como certo que um deles será o Fiat 500X, uma versão mais robusta do compacto 500 que usa a mesma plataforma do Renegade e também foi lançado na Europa em 2014. Será o primeiro 500 produzido no país.

Toda a família, inclusive o recém-chegado 500 Abarth,­ uma versão com linhas esportivas, vem do México. No segundo semestre, a empresa deverá lançar um SUV de entrada que usará a plataforma do Uno. Para tanto, a empresa já prepara uma reforma na fábrica da cidade mineira de Betim, que deverá consumir 8 bilhões de reais.

Outra oportunidade de aumentar o volume de vendas no país é uma espécie de efeito colateral desejável da abertura de capital da empresa na bolsa de Nova York, em outubro. Com a união formal das operações Chrysler e Fiat, a cota de importação dos modelos da Chrysler no Brasil — calculada com base em quanto a companhia produz localmente — praticamente dobrou.

Desde 2012, a Chrysler podia trazer no máximo 4 600 carros por ano para o país. Depois da união com a Fiat, a cota passou para 9 600. Dessa maneira, a empresa ganhará mais liberdade para importar modelos como o SUV Dodge Journey, vindo do México a um preço inicial de 113 000 reais.

O sucesso dessa transição será fundamental para que a subsidiária brasileira, a segunda maior da Fiat Chrysler no mundo, não estrague os planos globais. Na estreia na bolsa, Marchionne prometeu aos investidores um crescimento de 60% nas vendas globais até 2018.

Se depender da tendência local, os negócios não são animadores. Depois de três anos em queda, a expectativa é que a venda de carros no Brasil se mantenha estável em 2015. Será um duplo obstáculo para Marchionne e seus executivos no Brasil, que terão de testar não apenas a convivência entre duas marcas tão diferentes como também desafiar o mau humor do mercado.

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