Teleférico de Medellín: inaugurado em 2004, o projeto colombiano inspirou o teleférico do Complexo do Alemão, no Rio | Javier Larrea/Getty Images /
Da Redação
Publicado em 5 de outubro de 2017 às 06h00.
Última atualização em 5 de outubro de 2017 às 06h00.
Medellín - É quase 1 da tarde de uma terça-feira de agosto, quando o professor Marlín Aguirre chega carregando um saco com 40 garrafas PET. Ele aproveita o horário de almoço para depositá-las numa máquina de reciclagem da prefeitura de Medellín, na Colômbia. Professor de biologia e química, Aguirre faz isso porque sabe da importância de sua ação para o ambiente. Mas ele está lá também por outros motivos: conseguir bilhetes de metrô, ingressos de cinema e descontos para academia de ginástica, restaurantes e outros estabelecimentos.
Para cada garrafa entregue, Aguirre e outros moradores de Medellín recebem pontos, registrados num aplicativo, que depois podem ser usados em serviços na cidade. Em cinco meses, o programa chamado de Kaptar já tem a adesão de mais de 5.000 pessoas, que depositaram 89.000 garrafas e latas na recicladora da prefeitura. A meta é espalhar 38 dessas máquinas em shoppings, parques e universidades até o fim do ano.
O programa é o exemplo mais recente de uma série de iniciativas que a cidade colombiana de 2,5 milhões de habitantes (a segunda maior do país, depois da capital, Bogotá) vem adotando nas últimas décadas, num esforço para empregar a tecnologia na solução de seus problemas de segurança pública, transporte, geração de renda e meio ambiente. É um esforço que transformou a vida da população e também a reputação internacional da cidade.
Na década de 90, Medellín era associada ao cartel de drogas que levava seu nome, dirigido pelo traficante Pablo Escobar. Hoje é reconhecida como uma cidade-modelo que está vencendo o crime. Em 2013, Medellín foi eleita a Cidade do Ano em um concurso realizado pelo The Wall Street Journal e pelo banco Citibank, em parceria com o Urban Land Institute, dos Estados Unidos. Não foi um resultado isolado. Medellín vem se destacando regularmente nos rankings internacionais de inovação — e na frente das grandes capitais brasileiras.
O caso de Medellín deixa claro como uma cidade só tem a ganhar quando a redução da violência se torna o foco das políticas de Estado. Nos anos 90, a taxa de homicídios chegou a um pico de 380 por 100 000 habitantes ao ano em Medellín. Isso lhe rendeu o título de cidade mais violenta do mundo (hoje, o posto é ocupado por Caracas, na Venezuela, com 130 mortes por 100.000 pessoas ao ano).
Por trás do número havia uma realidade selvagem, comum no Brasil: moradores com medo de sair à rua, bairros controlados por gangues, extorsões, sequestros e quadrilhas de todos os tamanhos e especialidades. De lá para cá, a incidência de homicídios caiu vertiginosamente, chegando a 21 em 2016 — a menor em 40 anos. É mais baixa que a taxa do Rio de Janeiro, que registrou 30 mortes violentas por 100.000 habitantes no ano passado. No Brasil, a média nacional é de 26. Em Florianópolis, 13. Nos países desenvolvidos, costuma ficar abaixo de cinco.
Com a redução da violência, os indicadores econômicos de Medellín deram uma virada. Desde 2010, o produto interno bruto da região vem crescendo acima de 3% ao ano. No mesmo período, o número de empresas grandes e médias registradas em Medellín subiu de 1 800 para mais de 3 000. O movimento nos aeroportos passou de 2,1 milhões para mais de 4,2 milhões de passageiros por ano. E o desemprego caiu de 12,8% para 9,6%. Os indicadores sociais e o bem-estar também melhoraram. A desigualdade caiu em ritmo maior que o do país, e a taxa de pessoas abaixo da linha de pobreza saiu de 25%, em 2008, para 14%, uma das menores entre as grandes cidades colombianas. Mas o maior ganho é visto na expectativa de vida — de 2001 a 2016, subiu de 71,4 anos para 77,8. Entre os homens — as maiores vítimas de homicídios — aumentou ainda mais: de 68,2 anos para 76,4.
A explicação para o sucesso de Medellín na segurança pública está numa combinação de coisas que não costumam andar juntas. De um lado, houve uma intensa repressão policial e a aplicação de leis severas. De outro, programas sociais que oferecem uma porta de saída do mundo do crime, com capacitação profissional, renda garantida por tempo determinado e apoio psicológico e social — além da presença tanto do Estado quanto de organizações não governamentais.
Um ponto de inflexão foi a eleição do presidente Álvaro Uribe em 2002. Nascido em Medellín, Uribe foi prefeito da cidade e governador de Antioquia, estado do qual Medellín é capital. A Colômbia é um país centralizado e tem coisas que só um presidente pode fazer. A polícia, por exemplo, é nacional, e as ações estão concentradas nos ministérios em Bogotá.
Uribe partiu para uma guerra total contra a guerrilha e o crime organizado. A polícia foi capacitada e passou a contar com mais inteligência do que com presença ostensiva. Ao mesmo tempo, a eleição de Sergio Fajardo para a prefeitura, em 2004, complementou a iniciativa federal. O município investiu na coleta e na sistematização de dados sobre o crime e a situação social nas favelas, identificando parceiros e inimigos.
Um marco foi a inauguração do teleférico ligando o metrô às favelas Andalucía, Popular e Santo Domingo em 2004. Com o transporte, veio o Estado. No ano seguinte, foi instalado na favela Popular o primeiro posto do Centro de Desenvolvimento Empresarial Zonal (Cedezo), que oferece capacitação para pequenos negócios, agência de empregos e microcrédito. Diana Avendaño, coordenadora do Cedezo na favela Popular, conta que o posto atende de quatro a cinco pessoas por dia e oferece oficinas para ensinar contabilidade, plano de negócios e marketing digital.
Os moradores atendidos são tatuadores, donos de mercearia, de bar, de barraquinha de lanches, de salão de beleza, e assim por diante. “A vida melhorou muito aqui”, diz o eletricista Héctor Duque Arango, de 61 anos, que vive na favela há 30 anos. O Brasil tentou fazer algo parecido. O projeto de Medellín inspirou o teleférico do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, inaugurado em 2011. O sistema melhorou o transporte por um tempo, mas hoje está desligado. A operação foi interrompida em setembro de 2016 para a troca dos cabos e até hoje não foi retomada por falta de pagamento do governo estadual ao consórcio responsável.
UM PACTO PÚBLICO-PRIVADO
Em Medellín, as transformações também só foram possíveis graças à boa relação entre os setores público e privado. Isso começou a ser construído em 2002, com a criação de um comitê universidade-empresa-Estado. Acadêmicos, empresários e políticos passaram a se reunir para buscar soluções conjuntas para os problemas. Todos saem das reuniões com tarefas e compromissos.
Sucessivos prefeitos — a maioria sem partido — deram continuidade aos planos das administrações anteriores porque as políticas públicas são construídas em consenso com a ajuda do comitê e não sofrem com as disputas partidárias. “Se não há um acordo, dificilmente é possível concretizar planos de médio prazo. Essa é a diferença em relação a outros municípios”, diz Elkin Echeverri, gerente da Corporación Ruta N, agência da prefeitura que coordena os programas de inovação e tecnologia.
A própria localização da sede da Ruta N demonstra o esforço de integrar as ações. O prédio está encravado numa das áreas mais pobres da cidade, mas fica próximo da Universidade de Antioquia, de duas estações de metrô, de três terminais de corredores de ônibus e de quatro das principais avenidas de Medellín. A instalação da Ruta N atraiu empresas de alta tecnologia para o bairro — muitas delas com escritórios no próprio prédio da entidade. Ao lado do edifício funcionam um laboratório de criação de protótipos, oficinas de empreendedorismo e o escritório de um programa de crédito, fornecido pela agência.
Nos dois primeiros meses de funcionamento, entre junho e agosto, o programa atendeu 80 empreendedores, com as mais diversas ideias de produtos e serviços. Um exemplo são os sócios Juan Camilo Díaz e Álvaro López, engenheiros mecânico e industrial, ambos de 26 anos, que criaram um salgadinho de batata-doce, mandioca-roxa e mandioquinha. Desde março, eles estão na Creame (“Acredite em mim”), incubadora da prefeitura.
Obviamente, ainda há muito o que fazer. A violência continua um problema grave nos bairros pobres, e a cidade convive com os obstáculos típicos de um país emergente: desigualdade social, economia informal e corrupção. Em julho, o então secretário de Segurança de Medellín, Gustavo Villegas, foi preso, acusado de fazer acordos com criminosos e alertá-los sobre operações policiais. Mas, mesmo nesse caso, é possível ver o copo meio cheio. Afinal, Villegas agora está atrás das grades. Um retrocesso é tudo o que a população de Medellín não quer. O mundo está de olho.
NO RIO, A CRISE JÁ DURA 30 ANOS
A batalha na Rocinha evidencia o colapso das políticas de segurança pública que tinham reduzido a violência na cidade
FILIPE SERRANO
Se ainda existia alguma dúvida de que as políticas de segurança entraram em colapso no Rio de Janeiro, a recente batalha entre traficantes na favela da Rocinha deixou claro como o governo tem falhado, crise atrás de crise, no combate à violência na cidade. Os tiroteios na favela só foram interrompidos depois que 950 militares das Forças Armadas foram enviados para fazer a segurança. Foi uma medida de emergência.
Acabar com o crime organizado na Rocinha e em outros bairros não é algo possível da noite para o dia. Hoje, das 1.025 favelas cariocas, 850 são controladas por traficantes ou milícias. “O que houve no Rio é que a crise nos órgãos de segurança pública foi acompanhada de uma retomada do controle de território por grupos armados”, diz Silvia Ramos, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes.
A violência é um problema de todos os grandes municípios brasileiros. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 19 estão no Brasil. No Rio de Janeiro, a crise da segurança já dura mais de três décadas e deixou uma população traumatizada. Em 20 anos, de 1997 a 2016, foram mortas de forma violenta 52 128 pessoas apenas na capital. O número supera o de mortos em guerras. Sucessivos governos falharam em encontrar uma solução. Mas chama a atenção que as taxas de homicídio vinham caindo até 2015. De lá para cá, voltaram a crescer.
A escalada tem uma série de motivos. Por um lado, a grave crise fiscal do estado do Rio afetou os gastos com segurança pública, e o aumento do desemprego levou mais pessoas para o crime. Por outro, o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que começou em 2009 no governo de Sérgio Cabral, não conseguiu reduzir o poder dos grupos armados nas favelas. Para os especialistas, o progresso das UPPs não se sustentou porque faltou integração entre as unidades e os setores de inteligência. Além disso, não houve ações coordenadas do estado e do município para oferecer alternativas aos jovens que entram para o crime — faltou uma presença do poder público que não fosse apenas a policial.
O curioso é que, no fim dos anos 2000, o Rio de Janeiro adotou medidas parecidas com as que foram tomadas em Medellín, na Colômbia. A Secretaria de Segurança do estado do Rio abraçou a política de policiamento comunitário, criou o Instituto de Segurança Pública, órgão dedicado a produzir e analisar os dados de criminalidade, e também lançou um programa de metas periódicas de redução de crimes, conhecido como SIM, que paga prêmios aos policiais das regiões com melhor desempenho.
Ao mesmo tempo, foram feitos investimentos para melhorar a infraestrutura nas favelas e instalar serviços públicos nas comunidades. Eram políticas corretas, mas não tiveram continuidade ou foram enfraquecidas com as trocas de governo. Essa é a maior diferença em relação a Medellín.
Enquanto o crime organizado ganha poder, a violência vai prejudicando a vida de milhões de pessoas no Rio. Famílias de todas as faixas de renda evitam sair à noite nas ruas, deixam de circular por certos bairros, mudam de casa ou trocam os filhos de escola. No primeiro semestre, 129.000 alunos da rede municipal foram prejudicados pelo fechamento das escolas por causa de tiroteios. Dos 107 dias letivos, as escolas só funcionaram normalmente em oito. Para o setor privado, há prejuízos, porque funcionários faltam ao trabalho para cuidar dos filhos. Os comerciantes e os empresários sofrem com a queda no movimento.
De janeiro a julho, bares e restaurantes tiveram uma redução de 40% no faturamento em relação ao ano passado, segundo o sindicato que representa o setor. O crime também prejudica a indústria. Os roubos de cargas dispararam: de 2.600 ocorrências, em 2010, para 9 800, no ano passado. “Nunca tivemos uma situação tão grave”, diz Sérgio Duarte, vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro. No total, a indústria brasileira gasta 22,5 bilhões de reais por ano com segurança privada e seguros, elevando os custos.
Todos esses problemas, que, de forma direta ou indireta, prejudicam a produtividade e a competitividade das empresas, afetam a economia local e a do país. Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento estima que o custo do crime corresponde a 3,14% do PIB brasileiro. “É um custo de oportunidade, porque o governo e as empresas deixam de investir em infraestrutura, na compra de máquinas, em educação ou saúde”, diz Laura Jaitman, economista do BID e coordenadora das pesquisas sobre segurança.
Para o pesquisador Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que estuda há 20 anos o impacto da criminalidade, as soluções são as velhas conhecidas: investir num policiamento regular, orientado por uma equipe de inteligência bem equipada. “O objetivo não pode ser prender ladrões de galinha. Tem de ser retirar armas e munições da rua, prender os homicidas contumazes e desarticular os grupos criminosos dentro da polícia”, diz. Enquanto isso não ocorrer, mais episódios como o da Rocinha só tendem a se repetir.