EXAME.com (EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 7 de março de 2011 às 12h54.
Pedro Arantes corre pela direita, cisca pela esquerda, dribla um, dribla dois... Dito assim, parece um jogador de futebol em ação. Trata-se, no entanto, do presidente interino do Fluminense Futebol Clube procurando dinheiro para pagar os salários do time, atrasados há três meses, e tentando desvencilhar-se dos credores. Não é um caso isolado. Os clubes de futebol no Brasil estão em situação de penúria, com dívidas que ultrapassam os 80 milhões de reais.</p>
Isso até os gandulas sabem? O.k., é verdade. O que empresta ao assunto ares de mistério é que, em meio a essa paisagem miserável, os salários dos jogadores não param de crescer. Qual o nexo de clubes quebrados pagarem salários na casa de 1 milhão de reais por ano? Como negócio, hoje, o futebol tetracampeão do mundo não faz sentido. Ao menos para os clubes. "Para funcionar bem, muita coisa tem de ser mudada", diz Kléber Leite, presidente do Flamengo, dono de uma das maiores torcidas do país e de uma dívida de 22 milhões de reais.
Os atletas dos times de ponta ganham em média 20 000 mensais, mais os bichos pelas vitórias e direitos de transmissão das partidas pela televisão. Esses extras acrescentam mais uns 20% ao fixo do jogador. Técnicos e supervisores também entram nessa roda da fortuna. Exemplos? Um funcionário de médio escalão da comissão técnica do Botafogo ganha 22 000 reais. (Isso motivou um executivo da Pepsi, empresa que patrocina o Botafogo, a dizer para o presidente do clube, Carlos Augusto Montenegro, que queria trocar de lugar com o tal funcionário.)
O treinador do Flamengo, Joel Santana, fatura 90 000 reais. São salários maiores que os de diretores de grande empresa no Brasil. A remuneração de artilheiros como Romário, do Flamengo (120 000 reais por mês), ou Túlio, do Botafogo (100 000 reais), enfrenta de igual para igual, por exemplo, os rendimentos de presidentes de corporações americanas com faturamento acima de 1 bilhão de dólares.
Nos Estados Unidos, segundo uma pesquisa da consultoria Towers Perrin, os chefões das grandes empresas recebem em média 928 000 dólares por ano, incluindo o bônus pelos resultados. "Nenhum executivo tem 1 milhão de dólares fixos no Brasil", afirma Aloísio Ferreira, gerente-geral da Towers Perrin. Aqui, segundo esse mesmo levantamento, o executivo número 1 das empresas leva para casa uma remuneração média de 572 000 dólares anuais.
"O salário do jogador não está condicionado ao sucesso dos clubes", diz Ferreira. "No caso do executivo, há um bônus variável pelo desempenho da empresa." Ou seja, não há risco para os jogadores, só para o clube. E o bônus dos jogadores (o bicho) é pago nas vitórias, mesmo que o time amargue a última colocação do torneio. Contra-senso como esse, provocou a seguinte frase do jornalista Fran Netto, antigo cronista esportivo de São Paulo: "Na verdade, jogador de futebol recebe o salário para perder, pois até quando empata o time é obrigado a pagar-lhe o bicho".
Não se está aqui querendo dizer que determinados jogadores estão ganhando mais do que merecem. Eventualmente, mereceriam até mais. Acrescente-se ainda que é uma carreira curta, normalmente de uns quinze anos. A questão é outra: há um evidente descompasso entre o que os futebolistas botam no bolso e o que os seus clubes conseguem amealhar em seus caixas a cada fim de mês. Michael Jordan, gigante do basquete americano, põe em sua conta bancária 3,9 milhões de dólares por ano de salário. (Outros 40 milhões de dólares entram, mas vêm da publicidade.) A diferença é que o Chicago Bulls, seu time, segue próspero.
O croata Prosinescki, o salário mais alto do futebol espanhol, ganha 250 000 dólares mensais, mas o Barcelona não está quebrado. "Pagamos salários de Primeiro Mundo e temos receitas de Terceiro", diz Edgar Soares, vice-presidente de marketing do Corinthians. "Além disso, a conquista da Copa em 1994 valorizou ainda mais os jogadores brasileiros."
Há também o descalabro administrativo, que não consegue compatibilizar minimamente receitas e despesas. Um exemplo é o que o encalacrado Fluminense fez no ano passado. O então técnico Joel Santana e o ídolo Renato Gaúcho iniciaram 1995 ganhando 22 000 e 25 000 reais mensais, respectivamente. No segundo semestre, o treinador já estava com um salário de 80 000 e o atacante, de 34 anos, recebia 130 000. Isso mesmo: 130 000 reais por mês para um jogador que, embora ídolo da torcida, estava em fim de carreira e fora da seleção.
DINHEIRO DOS OUTROS - O resultado é que o clube chegou ao final do ano devendo 1,6 milhão de reais ao elenco, mesmo adiantando todas as receitas que pôde. A montadora coreana Hyundai, patrocinadora do clube, deveria dar mensalmente 145 000 reais ao clube. Como antecipou boa parte desse dinheiro em setembro do ano passado, o clube só vem recebendo 60 000 a cada mês. Suas contas só fechariam caso o time fosse campeão brasileiro de 1995.
Como o Fluminense foi apenas até a semifinal, as dívidas se acumularam. Fazer um planejamento financeiro que inclua obrigatoriamente a ida do time às finais de um campeonato é uma das loucuras consagradas no futebol brasileiro. "Aqui não se administra uma empresa, mas uma paixão", diz Arantes, 53 anos de idade e 42 de Fluminense. "E em meio à vaidade do cargo perde-se a noção dos valores." Luiz Antonio de Almeida Braga, presidente do Banco Icatu e ex-vice- presidente de futebol do Fluminense em 1989, tem uma definição para esse tipo de descalabro: "É vaidade com dinheiro dos outros", diz o banqueiro.
Para não sucumbir à dívida de 21 milhões de reais - metade dela de curto prazo -, a diretoria que tomou posse em janeiro no Fluminense tentou agir como numa empresa. Enfim, cortou despesas. A folha salarial dos atletas e da comissão técnica passou de 600 000 reais mensais para 400 000. Mais: vendeu jogadores, deixou o treinador transferir-se para o Flamengo e fez um contrato de risco com Renato. Seu salário caiu para 30 000 reais fixos e ele recebe mais um percentual pelo uso de sua imagem em publicidade.
Mesmo assim, tem um futebol deficitário: luta para pagar os salários de janeiro e não sabe mais de onde tirar dinheiro. "Aos bancos não pedimos mais nada, mesmo porque não temos mais crédito", diz Arantes. Há também outro motivo, pouco nobre, revelado no ano passado pelo ex-vice-presidente do Fluminense Juber de Carvalho: "Dever para jogador é muito melhor do que dever para banco. Jogador não cobra juros".
No caso dos grandes craques, há hoje uma parceria clube-empresa que divide as despesas relativas aos salários. O de Túlio é metade desembolsado pelo Botafogo, metade pela Seven Up (Pepsi-Cola), patrocinador oficial do time. Marcelinho Carioca ganha 40 000 reais do Corinthians e mais 30 000 da Suvinil. A TAM paga 5 000 dos 30 000 que o goleiro Zetti recebe do São Paulo.
O Flamengo paga 35 000 reais ao artilheiro Romário - o restante é dividido pelo Banco Real, Multiplan, Brahma e Umbro. Enfim, mesmo dividindo as responsabilidades, a parte que cabe aos clubes é alta. Para alguns alta demais. O Flamengo torrou no ano passado os 6,6 milhões de dólares que o grupo Multiplan adiantou pela construção de um shopping center no terreno onde hoje está localizado o campo de futebol do clube. Motivo: quitar os salários do elenco. A folha salarial do clube era de 1,3 milhão de reais mensais em 1995 e o buraco de 570 000.
"Enquanto os clubes não tentarem implementar uma política de faixas salariais, os jogadores continuarão a exigir contratos irreais", afirma Soares, do Corinthians. O dirigente não explica exatamente como seria essa fórmula. Mas o clube, que possui a segunda maior torcida do país e uma folha de pagamento de 900 000 reais mensais, ao menos avançou um pouco nesse campo: estipulou em 40 000 reais o teto salarial no clube. O que passar disso tem de ser pago pelos patrocinadores.
A decisão de um clube de enxugar a folha salarial é controversa. "Se você não investe em jogadores, não tem título; sem título, não tem torcida, não consegue patrocínio e não tem receita", diz Alberto Dualib, presidente do Corinthians. "O resultado é que o clube fecha." Há lógica na proposição, claro. Mas talvez uma lógica que liquide os clubes a longo prazo, se a conseqüência dos altos salários for o empobrecimento dos times.
OLHÔMETRO - O planejamento financeiro dos times é o mais precário possível. "Simplesmente não existe algo que mereça esse nome", afirma Montenegro, presidente do Botafogo. "Choveu, tem de jogar tudo fora." Montenegro, 41 anos, é também presidente do Ibope. Sabe, portanto, como funciona uma empresa. "O planejamento é feito no olhômetro, com a tabela na mão", diz o economista aposentado da Petrobrás Pedro Arantes, do Fluminense.
Do jeito em que está estruturado o futebol brasileiro, o planejamento dos clubes (ou algo parecido com isso) pode ir mesmo por água abaixo por causa de uma chuva que esvazie a renda de um jogo importante. As rendas, aliás, representam cada vez menos para a receita dos clubes: nos grandes estádios, apenas cerca de 20% do total das rendas vão para os seus cofres. "Se o clube vivesse apenas da renda, quebrava", afirma Seraphim Del Grande, vice-presidente do Palmeiras.
Por que, afinal, é tão difícil planejar? Aí se misturam a incompetência dos clubes para angariar novas fontes de renda e a desorganização estrutural do futebol no Brasil - o que por si só já praticamente inviabilizaria um negócio rentável. O calendário esportivo é o primeiro sinal de amadorismo. Pegue-se a tabela do Campeonato Carioca de Futebol de 1996. Dos 132 jogos programados, 120 são deficitários. Só dão dinheiro para os clubes os chamados clássicos, isto é, os jogos entre os grandes clubes.
A mudança na estrutura dos campeonatos poderia encher os estádios por dois motivos. O primeiro é óbvio: o interesse cresceria em torneios mais competitivos. E depois poderia ser a oportunidade de tentar introduzir no país o season ticket, ou seja, a venda antecipada dos ingressos no início das temporadas. No futebol italiano e no basquete americano, por exemplo, essa modalidade representa uma considerável fonte de receita adiantada.
Até o modesto futebol nos Estados Unidos, ou soccer como chamam o esporte por lá, tem um sentido empresarial mais acurado: no campeonato da liga americana, iniciado no último dia 7, foram arrecadados 75 milhões de dólares antecipadamente para os dez clubes que o disputam. O dinheiro veio dos direitos de televisionamento e da venda antecipada de ingressos, que garantirá uma média de 12 000 pagantes. Enquanto isso, no país do futebol, o Campeonato Brasileiro de 1995 teve uma média de 10 303 pagantes. "O futebol aqui é como se fosse um negócio em que o sujeito abre as portas no início do ano já sabendo que vai perder dinheiro no final", afirma Luiz Augusto Velloso, ex-presidente do Flamengo.
O que impede os clubes de naufragarem são os patrocínios, as cotas de televisionamento das partidas e o licenciamento dos produtos. A questão é que essa mina de ouro ainda é explorada de maneira muito incipiente. Há um flagrante descasamento entre o interesse que o futebol desperta em todas as camadas da população brasileira e o retorno auferido pelos clubes. "Os clubes beneficiam-se muito pouco disso", afirma o consultor Harry Simonsen, da Simonsen Associados, autor de um estudo sobre o tema.
"Os times da liga de basquete americana podem pagar uma fortuna aos seus jogadores por causa dos licenciamentos." O Corinthians, por exemplo, fatura 7 milhões de reais por ano com patrocínios e licenciamento dos produtos que levam a sua marca. Pela transmissão dos jogos do Campeonato Paulista, recebe 1,8 milhão de reais (a mesma quantia do Santos, Palmeiras e São Paulo). Dualib garante que o Corinthians não está no vermelho. "Se empatar, está bom", diz ele.
Entre os grandes clubes, chama a atenção a estrutura montada pelo Palmeiras, terceira torcida de São Paulo. Seu consórcio com a Parmalat rendeu-lhe quatro campeonatos (dois Brasileiros e dois Paulistas) e um time regularíssimo desde 1992. O acordo de co-gestão inclui, além de uma complementação salarial para alguns jogadores, a compra e a cessão de jogadores pela Parmalat.
Em caso de venda dos jogadores, o Palmeiras fica com 10% do negócio. São repassados ao clube 1,1 milhão de reais por mês para as despesas com o futebol - só para efeito de comparação: a Suvinil paga 210 000 reais e a Penalty 100 000 ao Corinthians. Uma parceria, portanto, muito mais sólida, a do Palmeiras. Apesar disso, em meados do ano passado, segundo o vice Del Grande, o Palmeiras fechou o ano no vermelho - embora o clube se recuse a dar números.