Revista Exame

Jirau mostra falta de planejamento do PAC

A violência que parou a usina de Jirau foi gerada pelo choque entre o progresso e as piores mazelas sociais

Terror e paralisação: as obras na usina de Jirau, em Rondônia, foram suspensas. Um grupo de 50 homens encapuzados causou os incêndios que destruíram dezenas de ônibus, carros e os alojamentos dos funcionários (Cristiano Mariz/EXAME.com)

Terror e paralisação: as obras na usina de Jirau, em Rondônia, foram suspensas. Um grupo de 50 homens encapuzados causou os incêndios que destruíram dezenas de ônibus, carros e os alojamentos dos funcionários (Cristiano Mariz/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 11 de maio de 2011 às 16h54.

O programa de aceleração do crescimento foi abalado nas últimas duas semanas por cenas de faroeste em uma de suas principais obras. Em contraste com o discurso oficial que enaltece o desenvolvimento, a violência na hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, mostra a distância entre o Brasil imaginado em Brasília e o país real.

No primeiro, grandes obras espalhadas pelo país inauguram uma nova era de progresso para milhões de brasileiros. O quebra-quebra com dezenas de ônibus incendiados, destruição dos alojamentos que abrigavam 17 000 operários e roubo de postos bancários, porém, mostrou a realidade nua e crua de um pedaço do Brasil marcado pelo mais profundo subdesenvolvimento.

A Amazônia das grandes obras é também a terra de ninguém, de onde o Estado se ausenta e onde a desordem impera.

Uma visita às obras da usina de Jirau evidencia a convivência dessas duas realidades distintas. O canteiro de obras lá instalado não é nenhum hotel cinco estrelas. Os alojamentos que abrigavam, cada um, oito homens ou quatro mulheres eram modestos, mas contavam com um mínimo de higiene e com aparelhos de ar condicionado.

A rotina dos operários incluía a formação de filas para quase tudo — mas havia comida e transporte para todos. O salário médio dos operários é de 1 500 reais. Fora do canteiro de obra, em povoados encravados na floresta, a situação é outra. Saneamento, saúde, educação e segurança são precários, quando não inexistentes. Prostituição, criminalidade e tráfico de drogas proliferam nos arredores, estimulados por um fluxo inédito de trabalhadores e novos habitantes.

As causas por trás do tumulto em Jirau ainda são obscuras. Segundo os representantes da Camargo Corrêa, empresa responsável pela obra, a onda de destruição teria começado com uma briga entre motoristas de ônibus e trabalhadores.

A imprensa local sugeriu tratar-se de uma revolta por melhores condições de trabalho, embora nenhuma pauta de reivindicações tivesse sido entregue pelos empregados ou por seus sindicatos antes ou depois do quebra-quebra. Com o passar dos dias, crescem as suspeitas de que seu estopim tenha sido puro banditismo.


Operários disseram à reportagem de EXAME que a destruição dos alojamentos e o incêndio de ônibus teriam sido praticados por 50 homens encapuzados. Durante a confusão, dois caixas eletrônicos foram cortados ao meio com o auxílio de maçaricos, e o dinheiro, roubado.

“Ninguém entendeu o que estava acontecendo”, afirma Marcos Maílton, de 18 anos, auxiliar de topografia contratado da construtora Camargo Corrêa. “Só deu tempo de pegar os documentos e correr.” O clima de tensão logo chegou à usina Santo Antônio, obra da Odebrecht, a 100 quilômetros dali.

Temendo uma “contaminação”, os executivos da empreiteira suspenderam os trabalhos. Dias depois, os trabalhadores de Santo Antônio, liderados pela Central Única dos Trabalhadores, cruzaram os braços. Aí, sim, com uma pauta de reivindicações preliminar que incluía melhoria na alimentação, reajuste de 30% nos salários e dez dias de folga a cada três meses trabalhados, com direito a passagem aérea para voltar para casa. As obras nas duas usinas seguiam paradas até o fechamento desta edição, em 28 de março.

Também para a Polícia Civil de Rondônia, responsável pelas investigações, os atos de vandalismo em Jirau podem não ter relação com questões trabalhistas, que teriam surgido após os tumultos. Os investigadores trabalham com a hipótese de a baderna ter sido causada por bandidos infiltrados entre os funcionários da Camargo Corrêa. 

Eles teriam iniciado a quebradeira e aproveitado a confusão para assaltar os terminais bancários. Neste ano, já haviam sido registrados dois assaltos a bancos na região — o último deles em fevereiro, dentro de Jirau. A segurança no local era frágil, feita apenas por empresas de proteção patrimonial, que contam com homens desarmados e sem poder de polícia.

De acordo com Pedro Alexandre Assis Moreira, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de Rondônia, até 18% dos trabalhadores de Jirau podem ser foragidos da Justiça em outros estados. Entre os 20 homens detidos no tumulto em Jirau, dois eram procurados. “A empresa precisava de muita gente.


Foi contratando quem aparecesse pela frente”, afirma Assis Moreira, da OAB. Segundo os executivos da Camargo Corrêa, as contratações para as obras de Jirau são feitas por meio do Sistema Nacional de Empregos do governo federal e por empresas especializadas.

A reportagem de EXAME chegou a Jirau na quinta-feira 24 de março. Na ocasião, apenas 650 funcionários da Enesa, empresa contratada para a montagem das comportas, estavam trabalhando. Quase 10 000 empregados da Camargo Corrêa haviam voltado para casa, em diversos estados, onde devem permanecer em licença até que os alojamentos queimados sejam reconstruídos.

Nesse período, seus empregos serão mantidos, e os salários, pagos. “Não vamos atrasar a obra por causa desse episódio”, diz Victor Paranhos, presidente do consórcio Energia Sustentável do Brasil, responsável por Jirau e formado por GDF Suez, Camargo Corrêa, Eletrosul e Chesf. “Mas vai haver uma redução na antecipação da entrega.”

O consórcio esperava começar a gerar energia na hidrelétrica em maio de 2012, oito meses antes do prazo acertado com o governo, e faturar até 1,5 bilhão de reais com a venda no mercado livre.

O episódio em Jirau comprometeu a imagem das empresas envolvidas na obra (que estão tendo de explicar-se), do governo de Rondônia (que vê expostos ao mundo gravíssimos problemas sociais) e sobretudo do PAC, o principal projeto de infraestrutura do atual governo, com 1 trilhão de reais de investimentos previstos até 2014.

Aos 38 000 homens que pararam em Jirau e Santo Antônio somaram-se 60 000 trabalhadores de braços cruzados em obras do programa instaladas nos estados de Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Ceará, Sergipe e São Paulo. A onda de greve no PAC é um alerta — e uma ameaça. Com o avanço das obras de infraestrutura, o mercado da construção civil deverá ficar ainda mais aquecido daqui para a frente, o que pode gerar mais tensões entre empregados e empregadores.

“Os trabalhadores sabem a força que têm no momento”, diz Luiz Carlos José de Queiroz, secretário de Políticas Sociais da CUT. “O recado deles será claro: ‘se não derem o que a gente quer, o PAC não vai andar’”, diz um executivo do setor que prefere não se identificar. Para tentar obter um acordo entre as partes e retomar as obras, estava prevista uma reunião para a terça-feira 29, entre o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, o Ministério Público e representantes da CUT, da Força Sindical e de concessionárias responsáveis pelas obras.


Passada a tormenta, a única certeza até agora é que a briga entre motoristas de ônibus e operários apenas trouxe à luz uma tensão que já existia. Trabalhadores ouvidos pela reportagem de EXAME dizem que os alojamentos em Jirau eram decentes, a comida era boa e existia uma área de lazer com sala de jogos e cinema. Mas as longas filas no refeitório e as condições de trabalho duras da Amazônia incomodavam. O calor escaldante na obra, as longas jornadas e a distância da família causavam estresse.

Segundo esses funcionários, que ainda permanecem na região da obra, uma greve estava sendo programada para as próximas semanas. Entre as principais reivindicações estariam a volta da “classificação”, uma espécie de plano de carreira em que o empregado é promovido a cada três meses, e o aumento no limite de horas extras, restrito pela legislação trabalhista a 40 horas mensais.

“O trabalhador que vem de outro estado e está longe da família quer trabalhar e ganhar o máximo de dinheiro possível”, afirma o soldador João Carlos da Silva, do Piauí, atraído a Rondônia pela promessa de um emprego formal e de ganhos que poderiam chegar a mais de 2 000 reais mensais.

Independentemente do que tenha motivado os ataques a Jirau, fica patente a falta de planejamento e de recursos no Brasil para pôr de pé grandes obras de infraestrutura. Graças à construção de duas grandes hidrelétricas — Jirau e Santo Antônio —, o estado de Rondônia deve receber investimentos de 28 bilhões de reais.

Com o dinheiro e com os novos negócios que ele pode gerar, chega uma população flutuante que precisa de saúde, educação e segurança. Essa infraestrutura não foi construída. Desde a chegada dos trabalhadores aos canteiros de obras das usinas, os índices de criminalidade na capital Porto Velho dobraram.

Em Jaci-Paraná, distrito distante 20 quilômetros do canteiro de Jirau, o número de assaltos a residências duplicou e o de lesões corporais foi multiplicado por 8 em 2010. Os traficantes de drogas — sobretudo cocaína e crack — estão por todos os lados, a postos para vender sua mercadoria aos recém-chegados. Não há policiais suficientes para combatê-los.

Em Porto Velho, faltam vagas nas escolas, os hospitais estão lotados e o trânsito é caótico. Atualmente, 410 000 pessoas vivem na cidade, 40 000 a mais que há três anos. O número de carros em circulação já chega a 150 000, o que colaborou para que o número de acidentes de trânsito dobrasse desde 2007.

O número de estupros cresceu 77% nos últimos dois anos. “Não estávamos preparados para tanto crescimento”, diz o governador Confúcio Moura. A violência e os prejuízos em Jirau mostram que progresso vai muito além de obras colossais — uma lição que vale para todo o país.

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