Revista Exame

Está difícil conviver com Cristina Kirchner

A economia argentina entra numa espiral de problemas provocados por políticas arcaicas e populistas comandadas por Cristina Kirchner. Sofrem argentinos, sofrem brasileiros que fazem negócios com o país vizinho

Cristina Kirchner: sua obsessão intervencionista está levando o país para a beira do abismo (Handout/Getty Images)

Cristina Kirchner: sua obsessão intervencionista está levando o país para a beira do abismo (Handout/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 17 de abril de 2013 às 11h05.

Buenos Aires - É preciso ter coragem para fazer o que o aposentado argentino Vicenzo Milano (que usou um pseudônimo para não ser identificado) fez há um mês. Acompanhado de um amigo, Milano dirigiu 1 800 quilômetros, de sua casa, em Buenos Aires, a Itapema, em Santa Catarina, levando 150 000 dólares em dinheiro vivo.

Após 35 horas de viagem, ele fechou a compra de um imóvel no Brasil e respirou aliviado. Suas economias, de mais de três décadas de trabalho, estavam finalmente protegidas.

O risco de ser assaltado na estrada pesou menos que o medo de manter a poupança da vida inteira em casa (o temor de uma desvalorização do peso e até um de um confisco faz com que hoje nenhum argentino deposite dólares no banco).

O rumo da economia sob o comando da presidente Cristina Kirchner está provocando um clima de salve-se quem puder. No Brasil, o impacto da deterioração no vizinho do sul também é sentido de maneira severa.

Além de ser o terceiro destino das exportações brasileiras (reduzidas 20% em 2012), a Argentina concentra duas centenas de filiais de empresas com matriz no Brasil. Quase todas tiveram planos de negócios frustrados em razão da inflação galopante e das medidas intervencionistas de Buenos Aires.

No início de abril, a subsidiária da brasileira Deca, a Deca Piazza, fabricante de louças e metais sanitários, fechou as portas, demitindo os 140 funcionários que lhe restavam.

Em março, a mineradora Vale suspendeu um investimento bilionário de extração de potássio na província de Mendoza, que seria a maior injeção de capital estrangeiro no país. A empresa de alimentos JBS reduziu sua operação de cinco para um só frigorífico. Já a operadora logística ALL, concessionária de duas ferrovias no país desde 1999, tenta vender ambas as concessões há mais de um ano.

Hoje, a inflação, que roda perto dos 30% ao ano, é o ponto nevrálgico da economia argentina. Em três anos, a escalada de preços transformou em 11 bilhões de dólares o projeto de extração de potássio da Vale, quase o dobro do valor orçado originalmente.

“O pior é que o modo como a inflação foi tratada não só alimentou a alta dos preços como também criou uma armadilha dificílima de desarmar”, afirma Juan Barboza, economista do banco de investimento Itaú BBA em Buenos Aires.

O populismo norteou a maneira de Cristina Kirchner lidar com o tema. “Ela preferiu quebrar o termômetro em vez de medir a febre e tomar os remédios certos para curar a infecção”, afirma Alberto Alzueta, presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira. “Ou seja, em vez de elevar juros e segurar gastos públicos, interveio no órgão de estatística para negar a alta de preços.” 

Para completar, cresceu a interferência nos negócios. Medidas para segurar a inflação e evitar o desabastecimento de carne no país atingiram em cheio o JBS. O governo determinou que, a cada 2,5 quilos de carne exportada, os frigorí­fi­cos vendam 1 quilo ao mercado domés­ti­co a preço tabelado e abaixo do custo.

Em vigor até hoje, a regra demoliu os pla­nos do JBS, que entrou na Argentina em 2005 com a compra da Swift. 

O objetivo era tornar a operação de lá grande fornecedora de carne fresca para a Eu­ropa. Mas, para compensar as vendas fracas no mercado interno, o JBS teve de aumentar o preço da carne exportada a um valor que tornou inviáveis as ven­das externas. Resultado: quatro de seus cinco frigoríficos foram desativados.

O único ainda em atividade produz alimentos industrializados de baixo valor agregado, como hambúrgueres. Nos últimos meses, o governo apelou para o congelamento geral de preços. A medida, que deveria terminar em março, já foi estendida até o fim de junho e tem grande chance de durar até outubro, quando haverá eleições legislativas.


Outro problema enfrentado de maneira estapafúrdia é a saída de dinheiro. As empresas não conseguem enviar dividendos a suas matrizes. “A restrição não está escrita no papel, mas empresas como a Alpargatas não podem fazer remessas porque não conseguem converter pesos em dólares”, disse o sócio de uma gestora de recursos que pediu para não se identificar.

A proibição da ven­da de dólares em bancos e casas de câm­bio provocou queda brusca na construção civil — qualquer compra de moeda estrangeira tem de ser autorizada pelo governo.

Como a venda de imóveis na Argentina só é feita em dólares, quase ninguém consegue comprar casa ou apartamento. Com isso, os investidores não constroem e as cimenteiras não vendem cimento, o que afetou diretamente a Loma Negra, controlada pela Camargo Corrêa e maior do ramo no país. 

No início do ano passado, em razão da fuga de 20 bilhões de dólares ocorrida em 2011, o governo decidiu que importações teriam de ser compensadas com exportação ou produção local.

Produtos das marcas brasileiras Bauducco e Tramontina, apreciados pelos argentinos, desapareceram das prateleiras. O próprio ministro do Comércio, Guillermo Moreno, e seus principais assessores ligaram para avisar as empresas de que a regra passava a ser essa.

Por um período, os executivos responsáveis pelas empresas, geralmente os presidentes, foram obrigados a ir pessoalmente à Receita Federal argentina  para  assinar cada pedido de importação — uma forma de intimidação.

Montadoras como Porsche, Hyundai e Suzuki exportam vinho, milho e couro para obter autorização de importar autopeças. O grau de intervencionismo remete a obscuros tempos ditatoriais. Sinal disso é que nenhuma das 18 empresas procuradas por EXAME aceitou dar entrevista. A resposta para tal comportamento é o medo de represálias, particularmente do órgão equivalente à Receita Federal brasileira.

Cada um por si 

O grau de intervencionismo é tal que a ALL, por exemplo, não pode demitir de­­vido a uma imposição do governo. O ca­­so da Vale chama a atenção pelo desrespeito aos princípios do Mercosul. Ape­sar de a mineradora declarar que con­­trataria localmente 71% dos bens e ser­viços para seu complexo de mina, fer­rovia e porto, o governo argentino decidiu elevar tarifas de importação dos equipamentos que seriam comprados no Brasil.

Desde março de 2012, executi­vos da Vale negociavam com o ministro do Planejamento argentino, Julio de Vido. Mais tarde, a conversa foi assumida pelo jovem vice-ministro da Economia, Axel Kicillof, uma das figuras de maior influência sobre Cristina Kirchner.

A Vale apresentou opções, como um investimento adicional no país de 1,5 bilhão de dólares em projetos de desenvolvimento econômico e social que nada têm a ver com mineração. O governo ar­gentino, entretanto, nunca respondeu à mineradora, apesar de seus executivos terem feito mais de uma dezena de reuniões com autoridades.

A resposta, de que não haveria nenhuma concessão à em­presa, foi dada via jornal, numa entrevista do governador de Mendoza. No Brasil, o sentimento é de desânimo. No Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o comentário é que o ministro Fernando Pimentel, que participou de pelo menos uma tentativa de conciliação na Argentina, jogou a toalha.

Agora, o lema de nosso go­verno é deixar que as empresas façam o que julgarem melhor. O horizonte é cada vez mais sombrio. Que a penúria do vizinho nos sirva ao menos de alerta.

Acompanhe tudo sobre:América LatinaArgentinaCrise econômicaCristina KirchnerEdição 1039PolíticaPolíticos

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025