Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, em Davos: "O ataque à globalização é um risco como o terrorismo e as mudanças climáticas" (Valeriano di Domenico / World Economic Forum/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 1 de fevereiro de 2018 às 05h02.
Última atualização em 3 de agosto de 2018 às 09h04.
Nas ruas de Davos, a pequena cidade suíça que se converte uma vez por ano em capital mundial do capitalismo, a neve se amontoava em quantidades excepcionais — as estradas que dão acesso ao lugar estavam ladeadas por uma parede branca de até 1,5 metro. Nas salas de conferências do Fórum Econômico Mundial, que ocorreu de 23 a 26 de janeiro, o clima, porém, era acalorado. No discurso que abriu o evento, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, entregou a mensagem que boa parte da plateia queria ouvir. “As forças do protecionismo estão levantando a cabeça contra a globalização”, disse Modi, segundo líder indiano a ir a Davos nos 46 anos do evento.
“Muitos países estão cada vez mais focados em seus mercados internos, e a globalização está encolhendo. Essas tendências não podem ser consideradas um risco menor do que o terrorismo ou as mudanças climáticas.” Em resposta a essas palavras, a audiência aplaudiu Modi por alguns minutos, numa espécie de reedição do que ocorreu há um ano, quando Davos aclamou a defesa do livre comércio feita pelo presidente chinês, Xi Jinping.
Muitos entenderam que a mensagem de Modi tinha um alvo: o presidente americano, Donald Trump, também aguardado em Davos. Aos que esperavam um Trump isolacionista e centrado no slogan “America First”, foi uma surpresa, no final do evento, ouvir o presidente americano cogitar uma volta à negociação com os países da Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), acordo que ele se apressou em chutar nos primeiros dias de sua administração. “Podemos negociar bilateralmente ou em grupo, mas temos de rever as regras”, disse. Os aplausos para o presidente americano não foram tão efusivos quanto os dirigidos ao líder indiano. O clima era de alívio.
O encontro de Davos tornou mais evidente uma inversão histórica. Antigos defensores irrestritos do livre comércio, os países ricos agora se ressentem dos efeitos colaterais que a globalização trouxe para suas economias. Em posição oposta estão as nações emergentes, que eram refratárias à globalização, defendiam o protecionismo e criticavam o livre mercado. O fato de líderes de países em desenvolvimento, como o indiano Modi e o presidente Michel Temer (que estava ali mais para pregar que seu governo ainda é capaz de entregar reformas), subirem ao palco principal de Davos para prezar maior abertura comercial foi considerado por muitos observadores como a confirmação de que as economias emergentes estão entre os verdadeiros ganhadores do avanço do comércio internacional — embora alguns, como Brasil e Índia, ainda tenham muito o que fazer para participar mais da globalização.
Menos miseráveis
Os indicadores das últimas décadas comprovam: a globalização fez bem ao mundo. O sinal mais claro é a redução da miséria. Em 1990, vivia na pobreza extrema 1,9 bilhão de pessoas. Em 2015, eram 700 milhões, sendo que a população mundial cresceu 40% no período. Também a economia global multiplicou de tamanho. Em menos de 40 anos, ela passou de 11 trilhões de dólares para 76 trilhões em 2016. Parte dessa riqueza foi gerada pelo avanço do comércio exterior e dos investimentos estrangeiros — ou seja, pura globalização. As trocas de bens e serviços já respondem por 56% do PIB global e o volume de investimento direto no mundo subiu de 50 bilhões de dólares, em 1980, para 2,3 trilhões, em 2016.
À luz da teoria econômica, não chega a ser uma surpresa. Os economistas suecos Eli Heckscher e Bertil Ohlin formularam a chamada “teoria do comércio internacional” nos anos 30, apontando ganhos mútuos entre paí-ses que se empenhassem na abertura comercial. A ideia era simples: os paí-ses tendem a se especializar na fabricação dos produtos em que têm vantagens comparativas. Não se trata, porém, de apenas vender mais, mas também de fazer melhor. Um estudo recente da OCDE, o clube dos países ricos, mostra que há espaço para aumentos de produtividade e ganhos reais dos salários com mais integração das economias.
De acordo com a OCDE, a média anual de elevação da produtividade nos países-membros do clube, que foi de 0,5% de 2008 a 2015, poderia chegar a 0,8% em 2025 — taxa similar à do período 1998-2007, antes da grande crise financeira. Parte da solução está na remoção dos obstáculos ao comércio internacional.
A globalização também intensificou a difusão tecnológica entre as nações. No passado recente, o desenvolvimento da inovação local era peça importante para ter uma indústria competitiva — o que acabava ocorrendo somente nos países desenvolvidos. Com a crescente globalização, o esforço local tornou-se menos importante. Uma pesquisa da Universidade Xavier, em Ohio, nos Estados Unidos, mostra que hoje a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico feitos no exterior respondem, em média, por 55% dos ganhos de produtividade doméstica nos países mais inovadores do mundo. O índice chega a 90% quando se trata de emergentes. Ou seja, a parcela de tecnologia estrangeira embarcada nos produtos e serviços faz com que os países sejam mais ou menos eficientes.
Por muito tempo também, a globalização foi vista como uma batalha que definia países ganhadores e perdedores. Mais recentemente, foi adicionado à discussão um novo elemento, e que não tem nada a ver com a globalização. O desemprego tecnológico e seus reveses deram novos argumentos aos movimentos antiglobalização. Mais uma vez os dados mostram uma história diferente. As evidências são de que, em vez de acabar com os empregos de gente capacitada, a globalização tem valorizado esses profissionais. De 1995 a 2010, a demanda por profissionais das ocupações chamadas “abstratas”, altamente especializados, cresceu, em média, 20% nos países da União Europeia, segundo dados da -OCDE. Para quem cumpre tarefas repetitivas, o efeito foi inverso: houve queda de 20% nos empregos.
É verdade também que os efeitos negativos da globalização nunca haviam reverberado de forma tão eloquente em Davos, considerado o templo do liberalismo, neste ano com um recorde de 3.000 participantes da elite política e econômica — entre eles 70 chefes de Estado e centenas de presidentes de grandes empresas, como Sundai Pichai, do Google. Anos atrás, ali seriam ignorados relatórios como os da britânica Oxfam, ONG que no primeiro dia divulgou seu balanço anual de desigualdade, segundo o qual 82% da riqueza mundial gerada de setembro de 2016 a setembro de 2017 ficara nas mãos do 1% mais rico da população.
É verdade que o tema geral do evento — “Criando um Futuro Compartilhado em um Mundo Fraturado” — dava pistas de que os donos do dinheiro partiriam para uma espécie de mea-culpa. Ao apresentar os dados de crescimento global, cuja estimativa é de um avanço de 3,9% em 2018 e 2019, a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, foi enfática: “Saudamos esses dados positivos, mas devemos evitar o erro da complacência. Não podemos estar satisfeitos, pois há ainda muitas pessoas que ficaram fora desse crescimento e as desigualdades aumentaram”.
Os dados, nesse sentido, são inequívocos. O próprio Fórum Econômico Mundial mostra que, de 2012 a 2016, quase metade dos 103 países analisados tiveram aumento da desigualdade entre ricos e pobres. Países como China e Índia, que tiraram milhões de pessoas da pobreza, tornaram-se sociedades mais desiguais nas últimas décadas (o Brasil, embora seja um dos campeões da desigualdade, foi um dos que conseguiram reduzir a concentração de renda).
O fato de haver hoje mais chineses e indianos bilionários é parte da explicação. E isso é resultado de uma participação maior dos emergentes em cadeias globais que antes eram exploradas pelas nações ricas. Mas os números mostram também que a evolução de renda dos bilionários foi, em média, de 13% ao ano de 2006 a 2015, ante a expansão de 2% da renda dos trabalhadores. Numa das discussões de Davos, com o sugestivo nome de “Salvando a Globalização Econômica dela Mesma”, o moderador lançou a pergunta: “Quem acha a globalização algo positivo para as economias nacionais?” Entre os palestrantes, todos concordaram, menos a australiana Sharan Burrow, secretária-geral da Confederação Internacional dos Sindicatos. “Não sou contra a globalização, mas o modelo corrente se mostrou falho para os trabalhadores. O mundo é três vezes mais rico do que há 30 anos. Isso é bom. Mas essa riqueza não foi compartilhada.”
O problema é que a resposta aos efeitos adversos da globalização tem sido mais protecionismo e isolacionismo. Um estudo do Fundo Monetário Internacional mostra que, quando a desigualdade aumenta num país, cresce o risco de um partido nacionalista, que apoie medidas contra imigração e globalização, ser eleito para assumir o governo. “Quando se olha para as democracias capitalistas, é evidente que as desigualdades sociais estão levando ao populismo. Essa situação está fazendo muita gente se perguntar se o modelo de mercado que os Estados Unidos e o Ocidente criaram após a Segunda Guerra Mundial ainda está valendo. Um modelo no qual eles são o centro comercial do mundo, mas os empregos podem ser criados em qualquer lugar do planeta”, disse Andrew Liveris, presidente da americana Dow, do setor químico.
Ele contou como parecia evidente já em 2015 que Donald Trump, na época o postulante extravagante à vaga dos Republicanos na corrida presidencial, tinha chance real de vitória, após uma reunião com funcionários e diretores na sede da empresa, em Midland, no Michigan. Todos, sem exceção, declararam apoio ao republicano.
Pelo menos até agora, porém, o discurso isolacionista de Trump, ainda concentrado na retórica, não se traduziu em menos comércio global. Ninguém sabe dizer se o presidente americano vai mesmo se lançar numa cruzada protecionista. Em janeiro, Trump anunciou a criação de uma tarifa de 30% sobre a importação de painéis solares e máquinas de lavar roupa. A iniciativa, mirando produtos chineses, atende o eleitorado que perdeu emprego na indústria e foi trabalhar ganhando menos no setor de serviços. A associação americana da indústria de energia solar, no entanto, diz que a medida deve varrer 23.000 dos 260.000 empregos no setor.
Outra ironia recai sobre Trump: sua decisão de tirar os Estados Unidos de acordos comerciais, como a Parceria Transpacífico, pode machucar a economia americana. Na mesma data que a saída dos Estados Unidos do acordo completou um ano, os demais 11 países do tratado concordaram em fazer um novo pacto sem os americanos. A previsão é que ele seja assinado no dia 8 de março no Chile. No final, 20 itens do acordo original, que tinham sido incluídos por pressão dos Estados Unidos, foram excluídos. Segundo as estimativas do Peterson Institute of International Economics, um centro de pesquisas de Washington, os Estados Unidos poderiam ter um ganho anual de 0,5 ponto percentual no PIB (ou 131 bilhões de dólares) com a participação na Parceria Transpacífico. Ficando de fora, o país- perde 2 bilhões de dólares por ano, porque as empresas americanas ficarão em desvantagem.
No Brasil, a globalização produziu menos ganhos do que poderia simplesmente porque somos fechados demais. Isso é óbvio no comércio internacional. O fluxo de comércio exterior do país equivale a 25% do PIB — a média global é de 56%. Se o Brasil estivesse na média mundial, nosso volume de comércio exterior seria de 1,1 trilhão de dólares anuais — em 2017, foi de 368 bilhões. Cerca de 30% do PIB vem de 15 cadeias produtivas, como automotiva, óleo e gás, energia e telecomunicações, em que o governo brasileiro colocou medidas protecionistas nesta década, segundo estudo do Peterson Institute. Nenhum outro país tentou de tantas formas favorecer artificialmente suas empresas.
Mas não é só isso. O Brasil que socorre suas indústrias é o mesmo que não facilita o acesso a imigrantes. A participação de estrangeiros na população brasileira é de 0,3%, em comparação com os 15% dos Estados Unidos. Os benefícios de imigrantes nas economias são amplamente estudados no mundo, com efeitos positivos na inovação e no empreendedorismo. Nossa própria história prova isso: um estudo da Fundação Getulio Vargas mostra que as cidades brasileiras com população majoritariamente descendente de levas imigratórias têm PIB per capita 15% superior ao de localidades que não receberam estrangeiros.
O que fazer, então? A questão da globalização se assemelha à da democracia. O sistema é imperfeito, precisa ser aprimorado, mas é melhor com ele do que sem ele. Ou alguém prefere viver num mundo mais restrito na circulação de bens, serviços, tecnologias e pessoas? Em Davos, emergiu a ideia de que a única solução é “governar a globalização”. Controlar seus excessos e levar adiante reformas estruturais que garantam um crescimento de longo prazo robusto, inclusivo e sustentável. “Precisamos mudar o contrato social no mundo. E não se muda o contrato social dando mais dinheiro aos bilionários à custa da classe média, como fez Donald Trump com sua recente reforma tributária. Nem atacando os outros países ou fechando as fronteiras”, disse a EXAME o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz.
Uma das saídas apontadas é mais cooperação internacional. Ou seja, mais globalização. E, se os países desejam agir localmente contra os reveses que colocam suas economias em risco, a melhor aposta é em educação e treinamento da mão de obra para as competências que serão exigidas no futuro. “A proficiência digital está aumentando a diferença entre as pessoas que têm sucesso e as que são deixadas para trás. O mundo não precisa de 2 bilhões de engenheiros da computação, mas de profissionais mais criativos e inovadores”, diz Devin Wening, presidente do site de comércio eletrônico eBay. Eis uma trilha mais promissora para a prosperidade do que um recrudescimento de velhas políticas.