Revista Exame

Competição de games deixou de ser apenas uma brincadeira

Prestes a atingir uma receita global de 1 bilhão de dólares ao ano, as competições de games recebem investimentos de nomes de peso

Arena na Califórnia: competição eletrônica com público ao vivo (Blizzard Entertainment/Divulgação)

Arena na Califórnia: competição eletrônica com público ao vivo (Blizzard Entertainment/Divulgação)

TL

Thiago Lavado

Publicado em 26 de abril de 2018 às 05h00.

Última atualização em 26 de abril de 2018 às 05h00.

Em uma quarta-feira à noite em Los Angeles, dois times locais, o Valiant e os Gladiators, enfrentavam-se num jogo apertado. O Valiant fez 2 a 1 em cima dos Gladiators, que empataram no final, levando o jogo para o tie-break. A torcida que lotava o ginásio foi à loucura, enquanto os narradores da partida se impressionavam com o empate. Essa cena poderia ser a descrição de uma disputa nos esportes tradicionais, como vôlei e hóquei, mas trata-se da Overwatch League, um dos exemplos mais recentes do crescente — e lucrativo — mercado de competições de jogos eletrônicos, conhecido como e-sports.

Organizado pela produtora americana Blizzard, o torneio, que começou em janeiro, é especializado em Overwatch, um jogo eletrônico de tiro lançado em 2016. O que parece brincadeira é na verdade um negócio. “A estrutura da liga, que mistura o funcionamento dos esportes tradicionais com um histórico de e-sports, foi pensada para ser uma oportunidade de negócios sustentável. Focamos a construção do esporte para gerar valor a acionistas, donos de times e parceiros”, disse Nate Nanzer, comissário da Overwatch League, a EXAME. “Investimos na construção de uma arena em Los Angeles e no engajamento dos fãs.”

Essa é a primeira competição de e-sports com times baseados em cidades espalhadas pelo mundo. Para tornar o e-sports ainda mais profissional, o torneio reúne 12 times representando metrópoles como Xangai, Londres, Seul, Nova York e Los Angeles. As equipes enfrentam-se em partidas transmitidas de quarta-feira a sábado no canal da liga na rede de vídeos Twitch, um braço da gigante de varejo digital Amazon. Todos os jogos em Los Angeles contam com a presença de público, que paga para ver três partidas por noite. No futuro, segundo Nanzer, o intuito é tornar o campeonato cada vez mais profissional, com times jogando em arenas em suas respectivas cidades. “Planejamos uma expansão global em 2019 com ênfase na Europa e na Ásia”, afirma.

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Os times da liga foram licenciados para grandes nomes da indústria de entretenimento, que podem vender merchandising e construir um público cativo. Na primeira etapa, cada franquia custou cerca de 20 milhões de dólares aos donos dos times, sem nenhum tipo de participação no faturamento da liga antes de 2021. Os contratos de salário dos jogadores são, no mínimo, de 50 000 dólares por ano. A Blizzard negou-se a comentar valores.

O time Los Angeles Gladiators, por exemplo, foi licenciado para a Kroenke Sports & Entertainment, empresa que é dona do clube inglês de futebol Arsenal e da equipe de futebol americano Los Angeles Rams. “A Kroenke acreditava no desenvolvimento dos videogames como um esporte no longo prazo, e a Blizzard tinha um plano de construir a Overwatch League como uma competição substancial, com recursos e comprometimento”, afirma Rob Moore, presidente do Los Angeles Gladiators, único time da liga com um brasileiro, João Pedro Goes Telles. “Nossa atenção agora está em conseguir patrocínio e gerar receita, construindo uma base de fãs e melhorando nosso desempenho como equipe.”

Outros times da liga também são comandados por veteranos do entretenimento e do esporte. O Boston Uprising é de propriedade de Robert Kraft, dono do time de futebol americano New England Patriots, cinco vezes campeão da NFL. O São Francisco Shock é da empresa de e-sports NRG, que tem como sócios a cantora Jennifer Lopez, o jogador de futebol americano Marshawn Lynch e o ex-jogador de basquete Shaquille O’Neal. O Nova York Excelsior é de Jeff Wilpon, diretor de operações do time de beisebol Mets; e o Filadelfia Fusion é da Comcast Spectacor, companhia de esportes que detém o time de hóquei no gelo Flyers.

A chegada desses nomes ao setor faz sentido quando se olham os números. De acordo com dados da consultoria especializada em e-sports Newzoo, esse mercado deverá atingir 906 milhões de dólares ainda neste ano, entre investimento de patrocinadores, venda de ingressos e direitos de transmissão, uma alta de 38% em relação a 2017. Para 2021, a estimativa é que o faturamento do setor alcance 1,6 bilhão de dólares.

A Newzoo também classifica a Overwatch League como uma das promessas nesse cenário. Para a consultoria, um sucesso da liga alimenta a expansão do segmento de jogos em geral. O apelo tem crescido tanto que, numa entrevista recente à agência de notícias AFP, Tony Estanguet, presidente do comitê organizador da Olimpíada de Paris 2024, afirmou que está disposto a discutir a inclusão de e-sports nos jogos. Seria uma forma de atrair o público jovem, que tem deixado de acompanhar a Olimpíada — segundo a consultoria Nielsen, os Jogos do Rio tiveram queda de 18% na audiência em relação a Londres 2012, e o público jovem, na cerimônia de encerramento, caiu pela metade.

Jennifer Lopez: a cantora é uma das investidoras de um time de e-sports | Kevin Winter/Getty Images

Para a professora Emma Witkowski, especialista em desenho e estudos de jogos da Universidade Instituto de Tecnologia Real de Melbourne, na Austrália, os investimentos em e-sports decorrem da queda na audiência e na venda de ingressos nos esportes tradicionais. Segundo ela, isso fica claro na própria postura do Comitê Olímpico Internacional. “Os espectadores geralmente são esportistas também e acompanham as competições para aprender, fazer parte de uma comunidade”, diz Emma. “Há alegria em ver alguém ser excelente em algo que você faz. Ficamos fascinados quando um time faz o impossível, seja numa quadra de basquete, seja num jogo de tiro.”

Um pilar fundamental do desenvolvimento dessa indústria é a transmissão ao vivo das partidas. Apenas em direitos dos jogos, a Blizzard negociou com a Twitch um contrato de transmissão exclusiva, avaliado em pelo menos 90 milhões de dólares. Isso seria o maior acordo de direitos de exibição já firmado em e-sports — pouco ainda se comparado aos 2,4 bilhões em direitos de transmissão que a Fifa ganhou com a Copa do Mundo de futebol de 2014. No Brasil, canais de TV a cabo, como ESPN e SporTV, também realizam a transmissão de jogos e já contam com programas específicos para outros games, como CS: GO e League of Legends (LoL). “Esse é um campo muito fértil para o crescimento da transmissão esportiva. É uma audiência que já rivaliza com transmissões tradicionais, como surfe e tênis”, diz João Palomino, vice-presidente de jornalismo e produção do canal ESPN Brasil.

Segundo dados da Newzoo, os e-sports deverão ter uma audiência de 557 milhões de espectadores em 2021, uma alta de 66% em relação a 2017. Para ter uma ideia da grandeza desses eventos, a final do Campeonato Mundial de LoL do ano passado foi transmitida para quase 60 milhões de pessoas, além das outras 40 000 que assistiram à partida no Ninho do Pássaro, um estádio construído em Pequim para a Olimpíada de 2008.

E, com grande audiência, vêm grandes prêmios. No ano passado, no campeonato de outro jogo, o Dota 2, realizado durante cinco dias num dos maiores ginásios de Seattle, com capacidade para 17.000 espectadores, o total dos prêmios superou 24 milhões de dólares. No Brasil, os números são mais modestos. No final de 2017, o estádio Mineirinho, em Belo Horizonte, recebeu 8.000 fãs de LoL para a final do campeonato brasileiro. A partida foi transmitida pelo canal pago SporTV e pelas plataformas no YouTube e no Twitch da Riot Games, produtora do jogo e um braço do conglomerado chinês -Tencent. A audiência total foi de 2,6 milhões de espectadores — o time vencedor recebeu um prêmio de 70.000 reais.

Para além dos gramados: Ronaldo Fenômeno premia a equipe vencedora em campeonato | Divulgação/Riot Games

Com a capacidade de atrair público e ainda faturar com as transmissões, clubes tradicionais brasileiros, como Flamengo, Corinthians e Avaí, também começaram a participar do campeonato de LoL. Para Roberto Iervolino, diretor da Riot Games no Brasil, a transmissão dos jogos em canais de TV teve um efeito de legitimação dos e-sports no Brasil. “É importante esclarecer que os e-sports são uma ótima estratégia de marketing e engajamento, mas o produto principal da Riot ainda é o jogo em si”, afirma Iervolino.

Problemas à frente

Embora o setor de e-sports desponte como uma prática de futuro, problemas do passado ainda persistem: o cenário ainda é muito difícil para as mulheres em praticamente todos os jogos. Apesar de o jogo CS: GO ser um dos títulos com o maior número de mulheres, as categorias seguem divididas — sem razões físicas para isso. As jogadoras também já relataram dificuldade em encontrar equipes para treinar. Na badalada Overwatch League, há apenas uma jogadora, a coreana Kim Se-Yeon. Segundo a professora Emma Witkowski, esse é um dos grandes desafios à frente dos e-sports. “Associações, clubes e outros times podem fazer a diferença, permitindo o acesso igual de homens e mulheres”, afirma.

Outro desafio citado pelos especialistas ouvidos por EXAME é que a profissionalização dos jogos eletrônicos pode acabar por expulsar times menores, com recursos financeiros mais limitados. É  um movimento similar ao que ocorreu no passado com outros esportes, como o futebol. Os times amadores dos jogos eletrônicos teriam de desenvolver campeonatos paralelos, como são os torneios de várzea espalhados pelo país.

Tudo aponta para um futuro glorioso, mas ainda longe de substituir o futebol como o esporte preferido dos brasileiros. Mas é simbólico que o Neymar Jr., atacante da seleção brasileira, divirta-se com seus amigos em jogos como CS: GO e outros  enquanto se recupera de uma fissura no metatarso do pé direito — de preferência, antes da Copa do Mundo na Rússia. 

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