Revista Exame

O Brasil começa a andar na linha

O fortalecimento da economia e o aperto dos fiscos têm possibilitado - e forçado - a crescente formalização dos negócios no país. Mais que indicadores econômicos, o fenômeno afeta a vida de pessoas de carne e osso - do empresário rico a um modesto pintor

O pintor Vicente: ingresso no mercado formal (Paulo Miguel/EXAME.com)

O pintor Vicente: ingresso no mercado formal (Paulo Miguel/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h38.

Desde a morte do pai, há pouco mais de dois anos, o empresário Carlos (que pediu que não fossem publicados seu nome e o de sua empresa) passou a viver um tormento. A indústria fundada pelo pai há 40 anos, com vendas de 100 milhões de reais em 2009 - e que proporcionou uma vida de conforto e oportunidades a toda a família -, revelou-se um poço de problemas. Atualmente, a dívida com os fiscos equivale a mais de um ano de faturamento. Os problemas começaram a ser descobertos quando Carlos assumiu a companhia e decidiu auditá-la. Convencido de que o setor passaria por uma forte consolidação, ele pretendia captar dinheiro abrindo o capital na bolsa de valores, com o objetivo de adquirir a musculatura necessária à competição com grandes empresas. Antes mesmo de a auditoria ser concluída, apareceu um grupo interessado em comprar a companhia. Ao final da avaliação, em vez de proposta, veio o choque. "Ele descobriu que tudo o que o pai havia construído durante quatro décadas de trabalho não valia nada. Ninguém compraria um negócio com passivos tão altos", afirma Luiz, um funcionário da área financeira autorizado a falar com EXAME.

Atualmente, Carlos vive uma corrida contra o tempo. Precisa crescer rapidamente - hoje seus principais concorrentes são empresas chinesas -, mas não consegue dinheiro a juros baixos. "Jamais passaríamos numa auditoria do BNDES", diz Luiz. Para completar, os órgãos arrecadadores vêm fechando o cerco. "Não há alternativa senão arrumar tudo o mais rápido possível. É o que estamos fazendo nos últimos 18 meses", diz Carlos. Na frente trabalhista, ainda que todos os 400 funcionários tivessem registro em carteira, muitos recebiam parte do salário "por fora". O objetivo, claro, era reduzir os recolhimentos trabalhistas e previdenciários, o que é ilegal. Há pouco mais de um ano, a prática foi abolida. Na frente fiscal, o trabalho é bem mais complicado. O hábito de emitir notas fiscais com metade ou até um terço do valor real fazia com que, até um ano atrás, a empresa recolhesse impostos sobre apenas 50% do faturamento. Hoje, a situação ainda é crítica, mas melhorou: 60% do faturamento é declarado. Nesse aspecto, a regularização é mais lenta, pois depende da negociação com os clientes, já acostumados a pagar menos por causa da sonegação.

Não é fácil deixar para trás décadas de práticas ilegais. A boa notícia é que Carlos não está sozinho nessa empreitada. Atualmente, milhares de negócios e milhões de pessoas trilham o caminho da formalização. É impossível avaliar com precisão o grau de informalidade das economias, mas o conjunto de indicadores reunidos nesta reportagem indica que o nível de formalização dos negócios no Brasil vem aumentando rapidamente. Um estudo inédito do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial e da FGV mostra queda na economia subterrânea, definida como toda produção de bens e serviços não declarada ao governo. A estimativa é que a economia das sombras tenha recuado do equivalente a 21% do PIB, em 2003, para 18,4%, no ano passado. Em 2009, portanto, a economia informal foi calculada em cerca de 580 bilhões de reais. As fórmulas utilizadas pela FGV consideram variáveis como volume de moeda em circulação, renda, taxa básica de juros, mas não conseguem captar a sonegação de impostos. Já um estudo do economista Bernard Appy, diretor de pesquisas da BM&F Bovespa, revela que, entre 2004 e 2008, houve um aumento de quase 40% na arrecadação de impostos que incidem sobre a renda e o lucro das empresas, já descontada a parte decorrente do crescimento econômico - um indício consistente de queda de sonegação sobre as receitas.


Há também um movimento forte de formalização no mercado de trabalho. A parcela de trabalhadores com carteira assinada cresceu mais rápido na última década: de 38%, em 2000, para 47%, em 2010. Nas seis maiores regiões metropolitanas do país, a parcela de trabalhadores formais finalmente ultrapassou a dos informais em janeiro. A expectativa é que, neste ano, o país gere 2 milhões de postos de trabalho formais, um recorde histórico. No universo das micro e pequenas empresas, no qual a informalidade sempre reinou de forma absoluta, o avanço foi expressivo: recuou de 98% em 2003 para 84% no ano passado, segundo um estudo feito a pedido de EXAME pela consultoria LCA. Ainda é uma enormidade, mas é a primeira vez em que há um movimento consistente de legalização de pequenos negócios. Em alguns setores específicos, houve uma completa inversão no mercado. Em 2005, 62% do total de PCs vendidos no país eram ilegais. Em 2009, o mercado informal caiu para 30% - ainda é muito, mas a melhora é significativa.

Por que as empresas estão escondendo menos seus ganhos e registrando mais empregados se isso as obriga a pagar mais impostos? Porque estão sendo forçadas, por um lado, e estimuladas, por outro. A melhora nas perspectivas econômicas do país é, por si só, um grande estímulo à formalização. "Os empreendedores estão mais confiantes, mais dispostos a crescer", afirma Paulo Silvestri, diretor de private equity da gestora de recursos Rio Bravo. "Essa perspectiva otimista entra fatalmente em rota de colisão com a informalidade. Não dá para captar recursos em boas condições sendo informal." Nesse contexto, o mercado de capitais tem funcionado como um catalisador da formalização. Tome como exemplo o próprio setor de private equity: na última década, o estoque de investimentos desse tipo no país passou de 5 bilhões de dólares para 34 bilhões. A possibilidade de conseguir capital e assessoria estratégica e de gestão (que, geralmente, compõe o pacote de private equity) faz com que muitas empresas brasileiras - sobretudo as médias - acelerem a modernização do negócio. Isso porque só o risco de futuros passivos fiscais ou trabalhistas é suficiente para que um investimento seja abortado. Em dez anos, dos mais de 1 000 negócios avaliados pela Rio Bravo, apenas 30 conseguiram investimento. Muitos dos que ficaram pelo caminho nem tinham passivos declarados, mas sua conduta passada dava margem a dúvidas que poderiam gerar autuações. "Trabalhamos com dinheiro de investidores institucionais, como fundos de pensão, e sabemos que passivos trabalhistas ou fiscais podem levar negócios muito promissores para o buraco", diz Silvestri.

Investidores estrangeiros, cada vez mais interessados no Brasil, também vêm atuando como aceleradores da formalização. O aporte de 7,5 milhões de reais de um fazendeiro americano foi responsável pela recuperação dos negócios de Zair Jorge Assad Filho, fazendeiro paranaense de 60 anos que migrou para Rio Verde, em Goiás, há mais de quatro décadas. Em 2004, Assad estava decidido a abandonar sua fazenda, de 3 000 hectares, até então ocupada com soja e milho. "Estava numa situação financeira muito ruim e não tinha como diversificar a produção", diz. A sociedade com o americano provocou várias mudanças na maneira de Assad administrar sua propriedade. A primeira providência foi abrir uma empresa de fato. "Deixei de ser produtor rural para ser empresário rural", afirma o hoje orgulhoso Assad. Atualmente, a ZJ Agrícola é lucrativa e produz 4 800 toneladas de soja e 200 000 toneladas de cana por ano. Outra mudança exigida ocorreu na forma de contratar empregados. Antes, as contratações temporárias eram feitas por terceiros. Agora, um funcionário próprio fiscaliza cada contratação ou dispensa, sempre com os devidos registros em carteira. "Uma das principais preocupações de um estrangeiro, como o meu sócio, é estar em dia com a Justiça."


A vitalidade da bolsa de valores reforçou o impacto do mercado de capitais como indutor de formalização no Brasil. Nesse caso, as companhias de capital aberto - que geralmente obedecem de longa data a padrões elevados de governança - obrigam seus fornecedores, mesmo os pequenos, a melhorar as práticas de gestão. "Se não estivesse totalmente regular, não poderia fornecer a alguns de meus melhores clientes, como a Natura e várias multinacionais", diz um empresário do interior de São Paulo, cujo faturamento é de 18 milhões de reais ao ano. "A auditoria deles é ainda mais rigorosa que a do governo." O empresário revela que nem sempre andou na linha com o Fisco - e, por isso, pede para não ser identificado. O recolhimento de impostos sobre o faturamento só passou a ser integral nos últimos quatro anos. (Vale lembrar que os débitos com a Receita são fiscalizados por até cinco anos e, portanto, ele ainda está na zona de risco.) "Por muito tempo achei que só sobreviveria se sonegasse. Nos últimos anos, descobri que não sobreviveria se não deixasse a empresa 100% formal, mesmo sem concordar com muitas regras."

Entre as regras das quais o empresário discorda está a carga de impostos pagos todos os meses, cerca de 30% do faturamento. Ele conta que um dos momentos mais difíceis de sua vida ocorreu no segundo ano de operação da empresa, quando foi multado por evasão de ICMS. "Foi uma das poucas vezes em que chorei na frente de outra pessoa, o fiscal. Não foi uma tentativa de convencê- lo a não me multar, mas uma reação à sensação de impotência que senti." Na época, o empresário tinha vendido um carro e a própria casa para manter a empresa viva. Meses antes, o Plano Collor havia retido todo o dinheiro que excedesse 50 000 cruzados novos (o equivalente a cerca de 4 700 reais atuais) na conta em que estavam os recursos para construir uma nova fábrica - naquele momento no alicerce. A decisão de regularizar toda a operação ocorreu há cerca de seis anos. "Eu queria crescer, exportar e, claro, parar de viver com medo da fiscalização."

Eis um dos elementos que mais vêm contribuindo para o movimento de formalização no Brasil: a fiscalização. Historicamente, os órgãos arrecadadores são, de longe, os mais eficientes do setor público. Nos últimos anos, a tecnologia da informação aumentou ainda mais o poder do Fisco. A Receita Federal passou anos construindo o Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), uma espécie de banco de dados gigante com potencial de se tornar o Big Brother das empresas brasileiras. Desde abril do ano passado, 181 000 empresas e suas filiais estão trabalhando com a nota fiscal eletrônica, o coração do Sped. Todas as vendas dessas companhias são informadas ao Fisco antes mesmo de os produtos serem embarcados. "Um pequeno supermercado não conseguirá mais esconder suas vendas, porque seus fornecedores revelarão ao governo tudo o que venderam a ele", diz Carlos Cuevas, sócio do Grupo Prolink, especializado em assessoria contábil e auditoria fiscal. Hoje, o Sped vem cruzando informações de um pequeno grupo de empresas. "No futuro próximo, cadeias produtivas inteiras serão monitoradas", diz Cuevas.


Alguns dos melhores exemplos de ataque à informalidade vieram de países que simplificaram o sistema de impostos. Nos últimos cinco anos, mais de 60 países reformaram o aparato tributário para tornar mais moderno o ambiente de negócios. Lamentavelmente, o Brasil continua com uma das mais complicadas legislações tributárias do mundo. Mas mesmo aqui há experiências confirmando a noção de que a simplificação melhora a vida de todos - até dos governantes. O Simples Nacional foi uma espécie de reforma tributária para as micro e pequenas empresas, que faturam até 2,4 milhões de reais ao ano. Ao unificar o recolhimento de oito tributos federais, estaduais e municipais em um único documento - e reduzir a carga de impostos entre 13% e 67%, dependendo do setor -, o Simples atraiu para a formalidade inúmeros negócios que funcionavam na economia subterrânea. Desde julho de 2007, quando o Simples adquiriu abrangência nacional, o número de empresas inscritas nesse regime passou de 1,3 milhão para 3,7 milhões.

Muito provavelmente, a imensa maioria desses negócios já existia, mas só agora se dispôs a sair das sombras. É o caso da paulistana Fernanda Furtado, de 29 anos, que vendia roupas como sacoleira. Em novembro, Fernanda abriu uma loja de roupas em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Até então, ela enchia o portamalas do carro e saía vendendo roupas para amigas e amigas de amigas. O problema eram os calotes, que praticamente acabavam com o lucro. Durante um curso do Sebrae, Fernanda decidiu que passaria a trabalhar somente com cartão de crédito. A formalização, nesse caso, veio da exigência das administradoras de cartão, que só operam com empresas legalmente constituídas. Em um mês sua empresa estava aberta.

A racionalização da burocracia arrecadatória também foi aplicada ao Microempreendedor Individual (MEI), uma modalidade de pessoa jurídica para profissionais que faturam até 36 000 reais por ano - ou seja, que não se qualificam para o Simples. A iniciativa, lançada há seis meses, já incluiu mais de 400 000 brasileiros no mundo formal. São cabeleireiros, pedreiros, pintores, enfim, pessoas que não pagavam tributos nem possuíam cobertura previdenciária. Estimase que haja pelo menos 10 milhões de brasileiros nessas condições. O pintor de paredes Benedito Vicente, de 50 anos, morador de Presidente Bernardes, no interior de São Paulo, era um deles. No ano passado, após 30 anos de profissão, Vicente abriu a BMG Pinturas (iniciais de seu nome e dos dois filhos, Marcos e Giovani). A operação foi feita num escritório do Sebrae, pela internet, em 40 minutos e sem custo algum. Atualmente, Vicente paga 61 reais de impostos por mês, a maior parte para a Previdência. "Já consegui ganhar licitações para pintar duas sedes de prefeitura e uma igreja", diz Vicente. "Antes, nem poderia concorrer, pois não tinha como dar nota fiscal."


O custo da informalidade

É inegável que cada uma dessas histórias tem enorme importância do ponto de vista individual. Em alguns casos, são verdadeiras revoluções na qualidade de vida e na perspectiva de futuro de famílias inteiras. Mas que não se perca de vista o potencial transformador, para o país, da soma de todas elas. A informalidade é incompatível com o crescimento econômico de qualidade. "Empresas informais são tipicamente pequenas e, por serem ilegais, não conseguem crédito de qualidade. A consequência disso é que investem menos em inovação e capacitação de pessoal e, assim, não conseguem crescer", afirma o economista Luis Antonio Catão, do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Na verdade, as empresas informais roubam a energia de quem anda na linha. Por um lado, praticam uma concorrência desleal em relação ao lado mais dinâmico da economia. Por outro, aumentam o ônus de quem paga as contas em dia - em seu afã arrecadatório, o governo acaba sempre recorrendo às empresas formais.

Práticas ilegais também ferem um dos aspectos vitais para o desenvolvimento - a previsibilidade sobre o futuro. O empresário sem acesso a crédito de baixo custo não consegue investir ou treinar seu pessoal. Raciocínio semelhante aplicase aos trabalhadores sem carteira, que têm muito menos segurança para assumir dívidas e consumir. Do ponto de vista econômico, a previsibilidade pode ser traduzida como confiança na renda futura e no crédito regular. Esse ativo, apesar de intangível, ajuda a determinar o ritmo de crescimento das economias. Por isso, o tempo de um ataque à informalidade é agora. "Estamos diante de uma oportunidade de ouro, que o próximo presidente não deveria desperdiçar em hipótese alguma", diz Appy, da BM&F Bovespa.

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