Embarque em Changi: viajantes em meio a buganvílias, imbés e selaginelas | Getty Images /
Leo Branco
Publicado em 2 de agosto de 2018 às 05h01.
Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 05h02.
Concedido anualmente pela consultoria britânica em aviação Skytrax, o prêmio Airport Awards é uma espécie de Oscar dos aeroportos. Criado em 2012, o prêmio entrevista especialistas e viajantes frequentes para avaliar o grau de conforto da jornada entre origem e destino de um passageiro. Contam pontos itens como a gama de transportes conectando uma cidade ao aeroporto, a existência de mimos como Wi-Fi gratuito nos terminais, a rapidez para despachar ou resgatar malas. Em seis edições do Airport Awards, só um aeroporto conquistou o título de melhor do mundo: Changi, em Singapura, gerido pelo governo da cidade-estado do Sudeste Asiático. É um feito e tanto num setor em que praticamente tudo mudou nos últimos anos. A começar pelo jeito de comprar uma passagem aérea, processo hoje feito pela internet.
A facilidade, aliada à expansão de uma classe média com poder de compra para andar de avião em países como Brasil, China e Índia, fez a demanda por esse meio de transporte decolar a níveis inéditos. Em 2017, quase 4 bilhões de passageiros transitaram por aeroportos no mundo, 90% mais do que há dez anos, segundo dados da Iata, federação internacional da aviação civil. Nesse período, cidades do Oriente Médio, como Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, Doha, no vizinho Catar, e Istambul, na Turquia, investiram fortunas em estruturas aeroportuárias de última geração na tentativa de virar destinos globais. Nada disso ofuscou Changi, que oferece lições importantes a aeroportos mundo afora, inclusive aos brasileiros — os quais, diga-se de passagem, nunca figuraram na lista dos 100 melhores do Airport Awards.
A receita de Changi para ser o melhor aeroporto do mundo começa pelo conforto de viajar por ali. “O desenho de Changi tem um foco claro na experiência do passageiro, e isso pode ser visto claramente no design do aeroporto e em sua operação”, diz Dany Oliveira, presidente no Brasil da Iata. O conforto começa no acesso até ali: um metrô que cruza Singapura inteira, de leste a oeste, passa dentro de um dos quatro terminais do aeroporto. Pela linha, e a um custo de 1,75 dólar local (cerca de 5 reais), é possível chegar ao centro financeiro da cidade de 5,7 milhões de habitantes em 1 hora — atrasos, embora ocorram, são raros.
A reportagem de EXAME comprovou que, uma vez em Changi, o trajeto entre o saguão e a aeronave envolve muita tecnologia para evitar o estresse comum aos viajantes nessas horas. Em voos partindo dali para outros países desenvolvidos, o passageiro pode fazer o check-in e passar pela imigração sem ter contato com um funcionário. Todos os processos são resolvidos em computadores munidos de sensores de reconhecimento facial. As máquinas leem os dados do passaporte e fazem a validação com a biometria do passageiro tirada ali, na hora, para ter certeza de que a pessoa que está viajando é, de fato, a dona do documento. Dado o OK, elas se encarregam de emitir bilhetes e comprovantes de bagagem. Esta é levada do saguão à aeronave em esteiras controladas por robôs. A etapa de raio X do passageiro, e da bagagem de mão, é feita em máquinas que lembram tomógrafos para exames de ressonância magnética e que reproduzem imagens em 3D, e não em 2D, como é habitual nos aeroportos. O motivo? Acabar com a chatice que é tirar o laptop da bagagem de mão antes da inspeção por raio X — a imagem em 2D das máquinas convencionais não diferencia notebooks de objetos potencialmente perigosos, como armas.
O resultado de tanta inovação em Changi é uma operação mais eficiente do que a média mundial. Um exemplo: num aeroporto convencional, é uma missão impossível estimar o tempo necessário para o percurso entre os guichês de companhias aéreas e o portão de embarque. O processo pode levar desde poucos minutos até algumas horas, dependendo do volume de pessoas em trânsito no terminal. Em Changi, de acordo com a publicidade dos administradores do aeroporto, o passageiro que optar pelo check-in automatizado terá a certeza de cruzar as etapas de raio X e imigração em 15 minutos, um processo que pode demorar um pouco mais caso o viajante precise de ajuda humana. Mas não é raro o passageiro levar mais tempo por se distrair com a vasta oferta de entretenimento. Entre outras opções, há piscinas a céu aberto, cinemas gratuitos, spas que funcionam 24 horas e jardins naturais.
O repórter de EXAME gastou minutos admirando algumas das 500 espécies vegetais típicas de florestas tropicais que adornam a sala de embarque, como buganvílias, imbés e selaginelas. Para evitar atrasos, funcionários de Changi com tablets na mão abordam passageiros no saguão e indicam o caminho até a aeronave (no caso deste repórter, uma distância percorrida em confortáveis 5 minutos a pé). A consequência é um aeroporto em que o tempo parece render mais do que o normal. O limite para fazer o check-in em voos internacionais em Changi é de 45 minutos antes do embarque. São 15 minutos menos em comparação com outros aeroportos, como o de Guarulhos, em São Paulo, o mais movimentado do Brasil, e Heathrow, nos arredores de Londres, o principal da Europa.
A conectividade e a qualidade do serviço fizeram com que Changi virasse um destino turístico em si. Hoje, há quem visite o aeroporto apenas para apreciar sua beleza. É comum ver casais utilizando os jardins como cenário para o álbum de casamento. Os restaurantes de Changi atraem turistas que vão lá somente para comer pratos típicos da culinária de rua local, como os espetinhos de frutos do mar e o laksa, um ensopado com noodles, camarão, frango e muita pimenta. Por causa desse tipo de turista interno, no ano que vem Changi deverá abrir a maior cachoeira artificial do mundo, com queda de 40 metros, acompanhada de um espetáculo de luzes que promete atrair mais casais em busca de closes.
O aeroporto serve ainda de chamariz para o turismo de negócios, responsável por quase um terço dos 17 milhões de visitantes que Singapura recebeu em 2017. Boa parte desse contingente ficou em hotéis ou centros de convenção a poucos quilômetros de Changi. Além de servir para o transporte, o aeroporto virou uma âncora para os negócios. “Os negócios diretos e indiretos gerados por causa de Changi contribuem com 30 bilhões de dólares ao ano para a economia de Singapura [10% do produto interno bruto]”, diz o economista americano John Kasarda, autor de Aerotrópole, best-seller sobre o uso de aeroportos como eixo de planejamento urbano. Os números deverão crescer em 2030, prazo previsto para a abertura de um quinto terminal, maior do que os quatro atuais. A expansão vai elevar a capacidade de Changi para 150 milhões de viajantes.
O sucesso de Changi oferece uma lição aos aeroportos brasileiros. Embora a entrada da iniciativa privada tenha melhorado a eficiência da operação em terminais como Guarulhos e Galeão, ainda estamos longe do padrão de Singapura. A falta de previsibilidade nos contratos é um ponto que compromete a modernização e a eficiência dos aeroportos brasileiros. Veja o caso da concessionária BH Airport, formada pela empresa de concessões CCR, pelo operador suíço Zurich Airport e pela estatal Infraero. Em 2013, o grupo ganhou a concorrência para operar o Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Minas Gerais, conhecido como Confins. Passados quatro anos, o governo federal decidiu que o Aeroporto da Pampulha, na mesma cidade, poderia voltar a operar voos nacionais, gerando uma concorrência para o terminal concedido. “Esse movimento pode tirar 20% do fluxo de Confins, que está em 10 milhões de passageiros por ano”, diz Stefan Conrad, presidente da Zurich Airport Latin America. “As mudanças nas regras são como um veneno para os negócios. Continuamos a lutar contra a reativação do outro aeroporto.”
Além disso, o acesso a aeroportos por transporte público continua sendo um gargalo. Essa realidade vem mudando, mas numa velocidade ainda lenta e com percalços. No Rio de Janeiro, a estrutura do Santos Dumont está a poucos metros de uma estação do VLT, trem leve de superfície que funciona desde 2016. Neste ano, o transporte sobre trilhos chegou aos aeroportos de Guarulhos e Salvador, mas não do jeito que os usuários estavam esperando. Em Salvador, a estação fica a 1 quilômetro do aeroporto. O passageiro deve descer do vagão e, com malas, vencer o trajeto até o saguão em ônibus da concessionária CCR, que administra o metrô local.
É o mesmo aperto de quem vai a Guarulhos de trem. O passageiro que sai da região central de São Paulo tem de fazer pelo menos uma baldeação. E, ao descer na estação Aeroporto Guarulhos, precisa pegar um ônibus da concessionária GRU Airport para chegar aos terminais. “É um serviço muito aquém do normal nos melhores aeroportos”, diz Thiago Nykiel, sócio da Infraway, consultoria em engenharia aeroportuária. O governo paulista promete para agosto o início das operações de trens diretos ao aeroporto, saindo da estação da Luz, num percurso de 35 minutos e ao custo de 8 -reais, o dobro da tarifa comum. Conectados de fato à rede metroviária estão apenas aeroportos de duas capitais, Porto Alegre e Recife, em obras que remontam ao início desta década. Olhar o exemplo de Singapura pode ajudar a melhorar nossos serviços.
Com reportagem de Flávia Furlan
Para o americano John Kasarda, autor do conceito de aeroporto-cidade, a aerotrópole, o Brasil está só no início do processo de modernização desse setor
O economista americano John Kasarda virou especialista num tema em que todo mundo adora dar um pitaco: o conforto de um aeroporto. Em 2011, Kasarda lançou Aerotrópole, livro em que aborda como a infraestrutura de apoio à aviação comercial, crescente mundo afora, pode ser um eixo de desenvolvimento das metrópoles, cujos negócios e moradores viveriam ao redor de seus aeroportos. Desde então, Kasarda correu o mundo dando consultorias sobre a ideia — no Brasil, esteve em Belo Horizonte para assessorar técnicos do governo mineiro no planejamento urbano em torno do aeroporto de Confins. Atualmente, Kasarda dirige o Aerotropolis Institute China, centro de estudos por trás de uma zona de livre-comércio ligada ao aeroporto de Zhengzhou, na região central do país. Na entrevista a seguir, Kasarda explica como Singapura está se consolidando como uma aerotrópole e o que os aeroportos brasileiros têm a aprender com a experiência do país asiático.
A demanda por aeroportos está aumentando no mundo. Por quê?
O século 21 será conhecido como o da aviação. A conectividade global será essencial ao sucesso de empresas e cidades. Atualmente, 35% do comércio mundial já viaja por aviões. Em serviços empresariais e turismo, essa fatia é ainda maior. No caso de produtos de maior valor agregado, desde componentes aeroespaciais até espécies vegetais raras, cada vez mais tudo vai passar pelos aeroportos.
A digitalização crescente nas empresas pode ameaçar essa expansão?
Ao contrário. Cada vez mais as companhias aéreas vão operar como uma “internet física”, movendo produtos e pessoas rapidamente mundo afora, da mesma maneira que a internet propriamente dita move dados numa velocidade surpreendente. Os data centers dessa “rede mundial da aviação” serão os aeroportos centrais, onde o fluxo global de bens e pessoas se encontra com os deslocamentos locais. Essa interface global-local está fazendo dos aeroportos grandes ímãs para empresas e catalisadores do desenvolvimento. Nesse processo, uma nova sub-região econômica urbana de empresas orientadas para a aviação está se formando em torno e para fora dos aeroportos. É o que chamo de aerotrópole e que vem crescendo em todo o mundo.
Por quê?
Há vários motivos, que incluem: novos modelos de aeronaves capazes de fazer voos em distâncias cada vez maiores, o advento de cadeias globais de produção e de processos logísticos que pressupõem o transporte de componentes à medida que são utilizados pela indústria [o chamado just in time, no jargão do setor logístico] e um aumento expressivo do turismo internacional por causa da expansão da classe média em países emergentes, como China e Índia. Por fim, a expansão do comércio eletrônico deve também colaborar para as aerotrópoles. A mentalidade humana de querer tudo para ontem vai fazer com que cada vez mais empresas tenham condomínios logísticos próximos a aeroportos para enviar produtos a clientes espalhados pelo planeta.
Quais aeroportos hoje se enquadram mais no conceito de aerotrópole?
Changi, em Singapura, é um bom exemplo. Além de estar frequentemente no topo dos rankings globais de qualidade, o aeroporto está sendo usado como eixo de desenvolvimento da cidade. Seus terminais são o que há de mais moderno em eficiência operacional. Além disso, tem lojas de classe mundial, hotéis e restaurantes que são bons de fato, e negócios que não têm muito a ver com um aeroporto, como clínicas médicas, cinemas e piscinas públicas. Esses recursos tornaram Changi, que era um aeroporto conectado a uma cidade, uma cidade aeroportuária. Muitos singapurianos vão a Changi para compras, refeições e atividades de lazer, mesmo que não estejam embarcando num voo. Aeroportos no mundo inteiro querem copiar esse modelo bem-sucedido.
Quão longe dessa realidade estão os principais aeroportos que temos no Brasil?
Os aeroportos brasileiros ficaram muito tempo sem receber os devidos investimentos. Por isso, a infraestrutura deles, infelizmente, ainda está desatualizada, levando em consideração os melhores padrões internacionais. Os luxos que os terminais brasileiros oferecem são mínimos. Ainda há processos lentos de imigração, longas filas para check-in e demora com as bagagens. A privatização dos maiores aeroportos brasileiros começou a resolver parte desses problemas, mas ainda há um longo caminho pela frente até chegar à relevância que hoje tem Changi, seja no tamanho da malha de voos internacionais, seja na satisfação dos viajantes. Os brasileiros deveriam prestar atenção no que deu certo em Singapura na hora de melhorar seus aeroportos.