Da Redação
Publicado em 24 de junho de 2012 às 15h18.
É sempre meio estranho resenhar um clássico como Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith. Não há propriamente uma novidade a apresentar. Afinal, um clássico, independentemente de há quanto tempo tenha sido escrito, é, por definição, uma obra original cujos principais valores já foram incorporados por uma determinada tradição cultural - no caso, a nossa.
É assim que os versos da Odisséia, por exemplo, parecerão estranhamente familiares mesmo a quem nunca tenha ouvido falar em Homero. A astúcia de Ulisses que triunfa sobre as mais diversas dificuldades já faz parte do nosso modo de conceber uma história.
Teoria dos Sentimentos Morais, publicado em 1759, é uma descrição dos supostos princípios universais da natureza humana sobre os quais se assentam as instituições sociais. Pode-se dizer que é a base psicológica sobre a qual se fundará A Riqueza das Nações, a obra capital de Smith editada 17 anos mais tarde. O conflito entre o interesse próprio do indivíduo e a capacidade de formar juízos morais, incluindo juízos sobre seu próprio comportamento, dá a tônica do livro. É aí que surge a figura do espectador interno imparcial, que julga as nossas ações e as dos outros.
Os juízos desse espectador estão calcados na simpatia ou repulsa que somos naturalmente capazes de sentir em relação a outros seres humanos. Não se trata, porém, de uma moral de foro íntimo como a de Jean-Jacques Rousseau. É, antes, como em David Hume (de quem, aliás, Smith foi grande amigo): uma moral do sentimento, comum a todos os seres humanos e que desempenha um papel eminentemente prático. Diferentemente do que ocorre com Hume, contudo, as páginas de Smith transbordam um finalismo que estava apenas latente no autor do Tratado da Natureza Humana.
Uma passagem de Teoria dos Sentimentos Morais é exemplar: "Cada pessoa, como diziam os estóicos, deve ser primeira e principalmente deixada a seu próprio cuidado. Cada uma delas é certamente, sob todos os pontos de vista, mais apta e capaz de cuidar de si do que qualquer outra pessoa". A garantia para a afirmação de Smith é justamente o espectador imparcial. Ele faz com que os homens, mesmo visando a seu próprio interesse, ajam de acordo com sua consciência (os juízos desse espectador). Com isso, os indivíduos acabam "se acertando" na vida em sociedade.
A ação do espectador imparcial nos indivíduos é análoga à da "mão invisível" na economia política: sem intencionalidade, mas provendo sempre o melhor com base no exercício espontâneo do egoísmo. É o testemunho da providência divina.
A idéia do espectador imparcial parecerá menos ingênua ao leitor moderno se se evocar o papel desempenhado pelo superego psicanalítico na socialização. Mais uma vez, manifesta-se a vocação clássica do texto de Smith.
Teoria dos Sentimentos Morais é uma obra agradável de ler. Um exemplo, quando o autor menciona o medo da morte: "Pensamos que é uma desgraça ser privado da luz do sol; ser afastado da vida e do convívio; jazer numa fria sepultura, presa da corrupção e dos répteis da terra". A passagem, como se vê, não traz nenhum vocabulário técnico especial, é forte e tem movimento. Beira o poético. Nada parecido com outros escritos filosóficos, como os de Emmanuel Kant ou Friedrich Hegel, cuja aridez e tecnicalidade afastam boa parte dos leitores.
Essa aparente simplicidade, porém, como ocorre com muitos filósofos da tradição anglo-saxônica, pode ser enganosa, pois os conceitos trabalhados são bastante complexos e o diálogo com outros autores, embora presente, nem sempre é explícito. A prosa sedutora de Smith esconde armadilhas. Basta lembrar que boa parte dos problemas que serão mais tarde trabalhados por Kant na Crítica da Razão Prática já estão colocados.
Por fim, uma palavra sobre a bem-cuidada edição da Martins Fontes. A tradução traz a grife de Lya Luft. As notas colocadas pela tradutora são úteis e precisas. O volume traz ainda uma curiosa biografia de Adam Smith, feita por seu amigo Dugald Stewart, e um outro texto do autor, a Dissertação sobre a Origem das Línguas.