Fábrica da WEG, em Santa Catarina: empresa foi uma das que receberam crédito dentro de programas da nova política industrial (Leandro Fonseca/Exame)
Publicado em 21 de novembro de 2024 às 06h00.
Última atualização em 21 de novembro de 2024 às 08h48.
Recentemente, um dado chamou a atenção de economistas e agentes de inovação no Brasil. De janeiro a setembro, a concessão de crédito para projetos industriais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) superou os créditos do banco de fomento para o agronegócio. Foram 154 bilhões de reais em financiamentos — 9 bilhões de reais para projetos de inovação, maior volume já registrado.
É a primeira vez que isso acontece em oito anos, em uma reviravolta que causa entusiasmo em alguns e levanta sobrancelhas de outros, pois está no bojo do programa Nova Indústria Brasil (NIB), a recente tentativa de política industrial no país. E que se tornou uma das bandeiras defendidas com maior fervor pelo governo.
“Não tenho dúvida. Vários instrumentos nessa política retomaram o protagonismo da indústria para o crescimento econômico”, diz o secretário de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços, Uallace Moreira. “As empresas estão voltando a investir porque o nível de utilidade e de capacidade instalada no Brasil está em 84%, a taxa de investimento como proporção do PIB está batendo 18%. Estávamos em torno de 16%.”
A NIB foi lançada em janeiro sob a promessa de recuperar o setor, marcado por uma trajetória de queda. “Bem-vindos à neoindustrialização brasileira”, anunciava o off da propaganda ilustrada por uma criança empinando uma pipa em meio a um parque eólico. A aposta é reativar o setor que já representou 50% do PIB nos anos 1970, mas vem ladeira abaixo nas últimas décadas como uma das indústrias que mais apresentaram recuo no mundo em quase 50 anos.
Justiça seja feita, o fenômeno foi global: a economia caminhou para o setor de serviços em detrimento das fábricas que dominaram o século 20. E há quem questione, até mesmo, a maneira de medir esse PIB. “Essa é uma taxonomia do início do século passado. A indústria, hoje, é servitizada”, diz Rafael Lucchesi, presidente do conselho do BNDES e diretor de inovação industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
“A PDI [política de desenvolvimento industrial] está em serviço. Faz parte da cadeia de valor. Um exemplo é um smartphone: 90% dele é serviço, só que o fabricante tem 100% da cadeia, porque a engenharia e o produto são dele.”
Nesse processo histórico, houve o fator China. De 1995 a 2020, a participação do país saltou de 3% para mais de 20% do total da manufatura global. O país asiático abocanhou uma fatia enorme da fabricação de produtos, inicialmente focando as mercadorias de baixo valor agregado, e hoje é líder em diversos segmentos de ponta.
Desde a pandemia, cresceu a percepção de que as cadeias globais eram dependentes dos chineses. E teve início um processo gradual de encurtamento de cadeias que ganhou vários nomes: nearshoring, friendshoring... Quando somado o desafio da transição energética diante das mudanças climáticas, outras alcunhas vieram, como o powershoring.
Fato é que o mundo, em especial os países desenvolvidos, quer turbinar suas indústrias. Em 2023, mais de 2.500 intervenções de política industrial ocorreram globalmente, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Quase metade delas ocorreu na China, União Europeia e nos Estados Unidos.
Diferentemente desses países, o Brasil busca fortalecer sua indústria num cenário de declínio acelerado após o auge do setor, de 1930 a 1980. Os países avançados experienciaram uma desindustrialização positiva, que permitiu focar o desenvolvimento de altas tecnologias, avaliam especialistas.
Mas aqui houve perdas de competências produtivas e tecnológicas, em um cenário de incompletude, na avaliação de Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). “De lá para cá, solucionamos alguns problemas, como a hiperinflação dos anos 1980. Mas não chegamos a desenvolver competências produtivas e tecnológicas em áreas de mais dinamismo inovativo e mais próximas da fronteira de inovação”, diz.
Nessa nova tentativa, o Brasil tem uma carta na manga. Com uma matriz energética 88% limpa e com a necessidade de o mundo se descarbonizar até 2050, o país desponta como uma potência para as energias verdes.
Dados da consultoria BCG revelam que 3 trilhões de dólares podem ser aportados até 2050 na esteira da descarbonização — 2 trilhões de dólares para áreas como agro, manufatura, infraestrutura, transportes, biocombustíveis e energia renovável. Somente para o setor de biocombustíveis, o BCG avalia haver um potencial de 200 bilhões de dólares em investimentos.
Outra área que pode despontar é a de hidrogênio verde. Segundo o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, o Brasil tem mais de 200 bilhões de reais em projetos de hidrogênio verde anunciados dentro do Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), do governo federal.
“Se a gente quiser manter ou recuperar a posição que já tivemos décadas atrás, precisamos avançar na direção em que o mundo está avançando, ou seja, da descarbonização, da digitalização e do aumento de produtividade, mas a uma velocidade compatível. As potencialidades de energia no Brasil fazem com que a festa seja nossa”, afirma Cagnin. “Não podemos chegar atrasados para nossa própria festa.”
A NIB é estruturada em seis missões, das quais três tiveram metas anunciadas (veja o quadro no final da reportagem). Alguns economistas a consideram uma “carta de intenções”, com erros conhecidos e baixo impacto. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a pedir que as missões fossem aprimoradas, ainda em janeiro.
A revisão pelo Conselho Nacional de Política Industrial (CNPI) levou a mudanças de todas as metas, com exceção da missão voltada para a saúde. Os conselheiros também introduziram um objetivo intermediário, para 2026, e de longo prazo, visando 2033, com três cadeias produtivas para cada uma das seis missões. Das metas ajustadas, três foram anunciadas nos últimos dez meses.
Elas tratam de setores como saúde, mobilidade sustentável, moradia, infraestrutura, saneamento básico e transformação digital. Até o final do ano, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, as metas das outras missões, que tratam de agroindústria, transformação ecológica e soberania nacional, serão lançadas.
Para o governo, o desempenho da indústria neste ano se deve à nova política. Em setembro, a produção industrial aumentou 1,1% em relação a agosto, com destaque de 4,2% no setor de bens de capital, mostra o IBGE. A combinação da alta do consumo das famílias com o investimento levará o PIB industrial a crescer para 3,2%, alta de 1,6 ponto percentual em relação a 2023, segundo informe conjuntural da CNI.
Dados do Caged apontam ainda uma alta de 75% nas oportunidades de trabalho na indústria nos primeiros sete meses. “Este é o primeiro grande desafio: retomar o crescimento industrial, mantê-lo e manter o investimento para transformar tecnologicamente a estrutura produtiva brasileira”, diz Uallace Moreira. “Isso significa dizer que não depende só do governo, mas também de uma taxa de juros racional.”
Economistas divergem da avaliação do governo e atribuem o resultado positivo da indústria a um dinamismo conjuntural da atividade. Nesse caso, marcado por um mercado de trabalho aquecido, expansão do crédito e projeção de crescimento de 3% do PIB — curiosamente, essas são as condições para modernizar a estrutura industrial.
Paulo Morceiro, especialista em desenvolvimento industrial, acredita que o Brasil prioriza setores já privilegiados, como a agricultura. O Plano Safra, de crédito para o agro, chegará a quase 450 bilhões de reais de 2024 a 2025, valor superior ao orçamento da NIB para os próximos anos, observa.
Anualmente, é como se a NIB tivesse cerca de 17,5 bilhões de dólares (considerando o câmbio a 5,70 reais) por ano, o que é inferior ao que gasta em política industrial a empresa sul-coreana Samsung, que investe 20 bilhões de dólares. “Uma empresa gasta por ano mais do que toda a nova política industrial brasileira”, diz.
Sem o mesmo nível de recursos, o ideal para Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, era que o país concentrasse investimentos. Em sua avaliação, a nova iniciativa reprisa a política industrial dos anos 1970, marcada por uma atuação em várias frentes.
“Os EUA estão focando energia verde e semicondutores, e o resto é o setor privado que vai atrás”, diz Vale, que defende um papel do Estado como facilitador para a entrada de insumos e financiador da exportação. “E, para isso acontecer, é preciso também acelerar o processo de integração comercial com os outros países, como o acordo do Mercosul com a União Europeia.”
Uma das maneiras de garantir competitividade à indústria é corrigir questões estruturais que aumentam os custos de produção no Brasil. Nesse aspecto, a reforma tributária, em debate no Congresso, pode ser benéfica para as manufaturas. A expectativa é que a correção minimize a alta carga de impostos paga hoje pelo setor — estima-se que a carga tributária saia de 42% para 28%.
Mas o custo Brasil, estimado em 1,7 trilhão de reais, e a competição ilegal pelo crime organizado, de 500 bilhões de reais, ainda punem a atividade, segundo Lucchesi, do BNDES e da CNI.
Em meio a esses desafios, o governo tenta avançar com o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), de estímulo à descarbonização da frota automotiva brasileira. E em programas como o Brasil Mais Produtivo, que visa elevar a produtividade de até 200.000 empresas de depreciação acelerada, que subsidia parte do custo para novos equipamentos, e com o apoio do BNDES à exportação.
Globalmente, a recuperação do setor industrial está por trás do crescimento de algumas economias emergentes, como a Índia.
Em maio, o país registrou um aumento de 7,7% do PIB puxado pelo setor, que recebe subsídios generosos, principalmente para a produção de semicondutores. O processo é favorecido pelo interesse dos EUA em terceirizar ações de suporte.
Algo semelhante ao que acontece no Vietnã, visto como a melhor alternativa à China para a terceirização de sua fabricação.
Não bastassem esses desafios, o republicano Donald Trump se elegeu presidente dos EUA neste mês. A agenda de Trump prevê desregulamentar e desburocratizar a atividade econômica, associando isso a um corte de impostos e a tarifas de importação mais altas.
Se funcionar, atividades de nearshoring ou friendshoring que estavam indo para Índia, México e Vietnã podem voltar para os EUA, segundo o economista Marcos Troyjo, ex-presidente do New Development Bank, o banco de desenvolvimento do Brics. “Isso vai potencialmente diminuir a atratividade de outros países que também estão buscando sua revitalização industrial, como é o caso do Brasil”, diz Troyjo.
Tudo isso posto, o cenário é ambíguo: se os erros do passado ainda rondam, o futuro parece promissor, especialmente pela vocação verde nacional. “O Brasil pode ser para a energia verde o que a Arábia Saudita foi para a energia fóssil”, diz Lucchesi, do BNDES e da CNI. “Mas há um ponto importante nisso: teremos de fazer um projeto de país mais coerente.”
A Nova Indústria Brasil (NIB), do governo federal, está fundamentada em seis missões. São metas aspiracionais que visam, entre outros objetivos, nortear o trabalho e impulsionar o desenvolvimento do setor
Meta: ter pelo menos 3% dos veículos eletrificados brasileiros circulando com baterias nacionais até 2026, e 33% até 2033. Entregar 6,9 milhões de moradias do MCMV até 2033 (1,4 milhão equipadas com painéis solares)
Meta: produzir 70% das necessidades nacionais de medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, materiais e outros insumos e tecnologias em saúde até 2033
Meta: transformar digitalmente 50% das empresas industriais brasileiras até 2033, com meta intermediária de 25% em 2026. Hoje, o percentual é de 18,9%
1. Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras
2. Tecnologias de interesse para soberania e defesa nacionais
3. Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para segurança alimentar, nutricional e energética