Revista Exame

Nas faculdades mais arrojadas, nasce a nova engenharia

Com as mudanças tecnológicas, as escolas de engenharia também estão mudando para formar profissionais com perfis adaptados às novas demandas do mercado

Laboratório de engenharia do Insper: curso concebido em um novo formato (Germano Lüders/Exame)

Laboratório de engenharia do Insper: curso concebido em um novo formato (Germano Lüders/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 13 de setembro de 2018 às 05h01.

Última atualização em 13 de setembro de 2018 às 05h01.

Provas difíceis, horas e horas em sala de aula, cálculo, cálculo e um pouco mais de cálculo. Para muitos profissionais de engenharia, as principais lembranças da graduação giram em torno desses temas — bastante teóricos, pouco práticos e, muitas vezes, em desacordo com as necessidades do mercado de trabalho, que mudam num ritmo mais acelerado do que o ensino. Concebidos numa época em que a indústria e o setor de construção tinham demandas diferentes, até poucos anos atrás a maioria dos cursos de engenharia lembrava linhas de produção. O material básico e teórico era apresentado nos primeiros anos, e só depois de alguns semestres é que o aluno tinha contato com áreas mais especializadas.

A estrutura engessada, presente ainda em muitas instituições, se soma no caso brasileiro a um problema amplo, que atrasa o desenvolvimento: o número de engenheiros ainda é baixo para um país que tem este tamanho e um grande déficit de investimentos. Além disso, muitos dos cursos no Brasil são de qualidade insuficiente e há uma alta evasão de alunos. De cada dez estudantes que se matriculam no 1o ano de um curso de engenharia, apenas cinco completam a graduação.

A área de engenharia enfrenta um problema comum também a muitas outras profissões: entender as mudanças nas demandas dos consumidores e se adaptar a novas tecnologias. Para Arthur Levine, presidente da Woodrow Wilson Foundation, uma das maiores organizações dos Estados Unidos que oferecem bolsas de estudo para o ensino superior, temos hoje uma educação que mede o sucesso com base no tempo de exposição a aulas. “Precisamos repensar como as pessoas são ensinadas, entender que deveríamos nos importar com os resultados. A educação será cada vez mais individualizada e adaptada”, diz Levine, reconhecido crítico das escolas de pedagogia nos Estados Unidos.

Sua postura ecoa também no Brasil, onde já há iniciativas da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI) e da Associação Brasileira de Educação em Engenharia para estabelecer novas diretrizes curriculares para o ensino da engenharia. Para Zil Miranda, coordenadora do grupo de trabalho de modernização das engenharias da CNI e da MEI, o Brasil precisa de uma estratégia para acelerar a melhoria, direcionando o aprendizado para aspectos práticos e interdisciplinares.

Foram essas ideias que ajudaram a organizar uma proposta de novas diretrizes levadas recentemente ao Conselho Nacional de Educação e que estão em consulta pública. “Não se trata apenas de aproximar os cursos de engenharia da indústria, mas do mercado e da sociedade. Com essas propostas, queremos preparar os alunos para empreender, inovar e ser líderes num mundo conectado”, diz Miranda.

A falta dessas características em nossos profissionais se reflete nas estatísticas. De acordo com o Índice Global de Inovação, elaborado pela Universidade Cornell, dos Estados Unidos, o Brasil caiu 22 posições de 2011 a 2017, ficando em 69o entre 128 países. O desempenho ruim é resultado, entre outros fatores, da baixa pontuação obtida no indicador de formação de engenheiros.

Para realizar essa transformação, é preciso investir em laboratórios, na contratação de professores com postura empreendedora e em boas relações com empresas. É recomendável que o setor privado esteja presente nas universidades para que os docentes saibam quais são as principais demandas atuais. As empresas têm participado das conversas sobre a reforma no currículo de engenharia. Um exemplo é o da Festo, empresa alemã especializada em controle e automação, que tem a tradição de investir na formação de técnicos e engenheiros.

Quando a empresa surgiu, em 1925, a automação industrial ainda era um fenômeno novo e a companhia teve de formar os profissionais ela mesma. Presente no Brasil há 40 anos, ela criou a Festo Didactic, o maior projeto de capacitação técnica promovido por uma empresa no Brasil. “Na discussão sobre a reforma curricular, sugerimos mudanças que já havíamos implementado em nossos cursos, como o aumento da carga horária em laboratórios, o ensino com base em projetos e o aprendizado das chamadas soft-skills, que são as habilidades de comunicação, trabalho em grupo e inteligência social”, diz Victor Teles, diretor executivo da Festo Didactic.

Se por um lado os profissionais da indústria já têm um diagnóstico da necessidade de mudança, por outro lado sobra para a outra ponta — as instituições de ensino — correr atrás da solução. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, vinculado ao Ministério da Educação, dos mais de 1 500 cursos de engenharia avaliados em 2014 no Brasil, 60% atingiram apenas a nota mínima satisfatória. Outros 15% não chegaram nem a isso. Apesar do retrato ruim, algumas universidades já começaram a se mexer para atualizar seus quadros, mudar as dinâmicas de ensino e avaliação.

No Insper, escola conhecida pelos cursos de economia e administração em São Paulo, algumas das novas diretrizes propostas pela CNI estão presentes desde a fundação da Faculdade de Engenharia, em 2015. Segundo Vinicius Licks, professor e coordenador do curso de mecatrônica, o Insper fez uma pesquisa com entidades de classe, empresas e órgãos internacionais para saber qual era o perfil do profissional em demanda no mercado e focou na formação de estudantes nessa linha. Desde a concepção, a Faculdade de Engenharia do Insper não divide os cursos por departamento, algo semelhante ao que ocorre na Universidade Harvard (leia entrevista abaixo). Isso permite maior integração entre os diferentes ramos da engenharia.

Para isso, o Insper baseou o currículo em projetos, com a adoção de semestres temáticos — como processos automáticos ou mecatrônica — em que os alunos desenvolvem, em grupos, soluções para problemas reais, apontados por empresas parceiras. “Isso tange a formação técnica e a capacidade de atuar em equipe. E conseguimos estimular competências, como comunicação oral e escrita”, diz Licks. No final do curso, os alunos das três graduações (mecânica, mecatrônica e computação) desenvolvem um projeto para uma das empresas parceiras, que envia um engenheiro tutor para participar da elaboração da solução.

Além do Insper, outras faculdades contam com iniciativas parecidas, como o Instituto Mauá de Tecnologia, a Universidade de São Paulo e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica. No Centro Universitário FEI, de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, a ideia foi dar ao aluno um tipo de educação que estimule o aprendizado constante, mesmo depois da conclusão do curso. “Não se trata apenas de apresentar conteúdo, mas ensinar competências para que o aluno tenha subsídio para ser um empreendedor”, diz Marcelo Antônio Pavanello, vice-reitor de ensino e pesquisa do Centro Universitário FEI.

Para ele, os cursos de engenharia enxergam o aluno como um generalista, e ensinam conteúdos no início da vida acadêmica que só serão usados anos depois, criando um distanciamento entre a universidade e o mercado. “Isso foi uma grande mudança que fizemos. Aproximamos o conteúdo da prática”, afirma Pavanello. Para Jorge Freire, diretor executivo da consultoria Accenture, responsável pelo relacionamento com universidades, os novos alunos são consumidores mais exigentes e as escolas que não mudarem o modelo vão perder terreno para as que se transformarem. “O modelo atual é atrasado e precisa ser reinventado”, diz Freire.

As mudanças tecnológicas vêm para todos, inclusive para aqueles que, por tanto tempo, sempre estiveram na vanguarda da ciência, como no ensino em engenharia. E, se o Brasil não fizer as mudanças para ter uma formação de engenheiros adequada, corre o risco de continuar atrás.


Como transformar o saber em tecnologia

Conhecida por expandir as fronteiras do conhecimento, a Universidade Harvard se adapta às necessidades modernas | Thiago Lavado

Doyle, de Harvard: foco em várias disciplinas para solucionar problemas | Divulgação

A Universidade Harvard, nos Estados Unidos, sempre foi mais conhecida por formar pensadores do que técnicos industriais. Mas, segundo Frank Doyle, diretor da Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas, a universidade vem fazendo mudanças. Contratou professores e investiu na formação em engenharia conectada com problemas reais e com as novas tecnologias para se adequar às demandas modernas.

Como está estruturada a Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas em Harvard?

Essa é uma das nossas maiores forças e segredos. Começamos como um programa pequeno, bem menor do que outras universidades famosas em termos de engenharia americanas, como MIT, Stanford e Berkeley. Há 30 anos, éramos um único departamento bastante coeso, com cursos em ciências da computação e matemática aplicada. Crescemos e adicionamos engenharia elétrica e mecânica e, mais recentemente, bioengenharia e ciências ambientais. Mas, durante esse processo, nós mantivemos o corpo docente em um só departamento, responsável por questões como ensino e mentoria de alunos. Dessa forma, o estudante que faz um programa de doutorado conosco pode aprender com pessoas e professores das áreas de física aplicada, bioengenharia, ciência da computação etc. Em universidades tradicionais, se um aluno é admitido no departamento de engenharia mecânica, ele só pode exercer atividades dentro daquele departamento.

Como unir campos do conhecimento tão diferentes e que nem sempre se conversam?

Quando falamos de computação quântica, esse é um campo que requer grandes conhecimentos de engenharia aplicada, de física, de química, de conceitos de engenharia elétrica e de ciência dos materiais. O que queremos fazer é entender a real natureza da computação quântica e traduzir esse conhecimento em tecnologias reais e complexas. Isso requer muitas disciplinas e nós estamos organizados de uma maneira que já nos permite tirar o melhor proveito disso. Esse é um exemplo de que precisamos ir além da engenharia, de que precisamos de ciência e, às vezes, até de múltiplas parcerias. Os problemas do nosso tempo e da nossa sociedade não serão solucionados por uma única disciplina.

Qual é o papel de um pesquisador no desenvolvimento dessas soluções, de forma a garantir que elas sejam incorporadas na sociedade?

O departamento de engenharia em Harvard sempre foi muito mais focado em expandir fronteiras do conhecimento, por meio da pesquisa básica. Foi nos últimos cinco anos que contratamos mais docentes com um perfil empreendedor, que estão interessados em solucionar problemas práticos do mundo, que querem fundar empresas, registrar patentes etc. Essa é uma tradição relativamente recente para nós, embora outras escolas já façam isso há algum tempo. Estamos procurando o ponto de equilíbrio. Hoje, um terço do corpo docente ainda está mais interessado em expandir os limites do conhecimento — e eles são a fundação da nossa escola. Não poderíamos seguir em frente sem eles. Mas outro terço dos professores tem um perfil mais prático, com conhecimento de negócios. O terço restante está no meio do caminho, entre a geração de conhecimento e a aplicação dele no cotidiano.


A ambição de Nova York

Com a universidade Cornell Tech, a cidade quer deixar de ser “apenas” o centro financeiro do mundo e se tornar um polo de engenharia e tecnologia | Letícia Toledo, de Nova York

Cornell Tech, em Nova York: na universidade que abriu as portas há um ano, alunos criam soluções úteis para empresas reais | Divulgação

A estreita Ilha de Roosevelt já abrigou asilos, um hospício, uma prisão e até um hospital de varíola e ficou conhecida pelas condições degradantes de seus residentes. Mas, desde o ano passado, a ilha, localizada no East River, entre Manhattan e o -Queens, em Nova York,  vem mudando sua fama com o objetivo de se tornar — e tornar toda a cidade de Nova York — um polo de engenharia e tecnologia. Há um ano teve início o primeiro período letivo no campus da Cornell Tech, a universidade que ocupará quase 10% do território da ilha de 590 000 metros quadrados, construída com o ambicioso objetivo de revitalizar a economia da cidade. Hoje, a instituição tem 526 alunos — a capacidade máxima prevista é de 2 000.

Idealizada pelo então prefeito de Nova York Michael Bloomberg, pouco depois da crise de 2008, a Cornell Tech é uma parceria entre a centenária Universidade Cornell, uma das mais tradicionais do país, com sede na cidade de Ithaca, no estado de Nova York, e o Technion, instituto israelense focado em engenharia e ciências exatas. A dupla venceu uma competição promovida pela cidade em 2010 e recebeu 100 milhões de dólares, além do terreno onde o campus agora está instalado. “O objetivo é usar a instituição para atrair talentos que não viriam para Nova York e com isso revitalizar a economia e criar novas empresas”, afirma Dan Huttenlocher, reitor da Cornell Tech. “É um projeto inovador em muitas áreas e também foi um dos primeiros que desenvolvemos fora de Israel”, diz Boaz Golany, vice-presidente de relações internacionais do Technion.

A primeira fase do campus foi inaugurada em setembro do ano passado e o projeto só será concluído em 2043. Até lá, a expectativa é que a instituição gere 23 bilhões de dólares em atividade econômica. Atualmente, a Cornell Tech oferece pós-graduação em engenharia elétrica, engenharia de computação e engenharia da informação. Todos os cursos incluem uma parte de ensino mais tradicional, com aulas técnicas acadêmicas voltadas para softwares e sistemas. Em outra parte do curso, os estudantes trabalham em grupos para criar startups e desenvolver soluções úteis para empresas reais. “Isso ajuda os alunos a desenvolver habilidades de negócios e de comunicação”, afirma Huttenlocher.

Os três edifícios já construídos da Cornell Tech se impõem na pacata ilha, que tem 14 000 habitantes e poucos carros circulando pelas ruas. O Bloomberg Center é um deles, e é o local onde acontecem as aulas no modelo mais tradicional. Por dentro, o edifício é repleto de espaços abertos divididos por alunos e professores (não há uma sala voltada apenas para os mestres). Alguns cubículos à prova de som, que mais parecem cabines telefônicas, podem ser utilizados para maior concentração. Uma pequena área com salas de reuniões é dominada por grandes instalações de arte. Com dezenas de painéis solares no teto, o objetivo é que o prédio gere toda a eletricidade de que precisa.

De frente para o Bloomberg Center está o prédio com design mais imponente. O Tata Innovation Center. Com sua estrutura toda de vidro, é o local destinado a facilitar as interações entre estudantes e empresas. O nome é uma homenagem à gigante indiana do setor de tecnologia, que doou 50 milhões de dólares para o projeto. A Cornell Tech tem cerca de 30% do prédio. O restante é alugado para empresas que querem estar perto dos alunos. Atualmente, o banco Citi, o fundo de investimentos Two Sigma e a marca de chocolates Ferrero são algumas das empresas no local. “O Tata Innovation Center é a concretização de uma das nossas principais missões, que é fazer uma ponte entre a academia e a indústria”, diz Huttenlocher.

Embora a influência tecnológica e de startups da cidade tenha crescido muito ao longo dos anos, Nova York ainda não gerou nenhum Google ou Facebook. Todos acreditam que a Cornell Tech resolverá esse problema. “Talvez ainda demore entre dez e 20 anos para Nova York alcançar o padrão de cidades como Boston. Leva tempo, mas a cidade está no caminho”, afirma Golany, do Instituto Technion. Quem sabe o novo Vale do Silício americano esteja nascendo numa ilha onde no passado remoto viviam loucos e doentes.

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