Revista Exame

Startup coloca mais uma revolução tecnológica a caminho do campo

Uma nova técnica de edição do DNA, chamada de Crispr, chegou ao agronegócio para acelerar e baratear pesquisas

Mais produtividade: uma levedura editada geneticamente permite obter 3% mais etanol com a mesma quantidade de cana | Alex Tauber/PULSAR IMAGENS /

Mais produtividade: uma levedura editada geneticamente permite obter 3% mais etanol com a mesma quantidade de cana | Alex Tauber/PULSAR IMAGENS /

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Flávia Furlan

Publicado em 27 de setembro de 2018 às 05h47.

Última atualização em 27 de setembro de 2018 às 05h47.

startup de biotecnologia belgo-brasileira globalyeast acaba de se tornar uma pioneira no agronegócio nacional. À frente de grandalhonas do setor, foi a primeira empresa a ter autorização para vender um produto criado com uma técnica de edição de genes, chamada Crispr, em junho deste ano. O feito da GlobalYeast foi alcançado com uma estrutura enxuta — são cinco funcionários num escritório no Rio de Janeiro e oito num laboratório na Bélgica — e com investimentos comedidos, da ordem de 30 milhões de reais, de três fundos belgas e um brasileiro, o Performa.

No laboratório, os pesquisadores da empresa ativaram o gene de uma levedura — fungos normalmente usados para a fermentação natural — para que ela fosse capaz de transformar mais açúcar em etanol. Os cientistas sabiam qual gene ativar porque haviam estudado o código de outra levedura, usada para a produção do saquê, bebida alcoólica japonesa, e que apresentava um bom desempenho na fermentação. Eles, então, replicaram em laboratório o que havia ocorrido na natureza com a evolução da espécie. Pois não deu outra: após a ativação do gene, a levedura da GlobalYeast permitiu que fossem feitos 3% a mais de álcool com a mesma quantidade de açúcar da cana. Isso pode parecer pouco, mas representaria um ganho milionário para as usinas do país. O Brasil produz 30 bilhões de litros de etanol por ano, e um incremento de 3% corresponderia a 900 milhões de litros a mais. “O Brasil tem uma demanda enorme por etanol e a meta de ampliar o uso do combustível”, diz Marcelo do Amaral, presidente executivo da GlobalYeast. “Com a edição genética, geramos mais produto a partir da fermentação, e sem desmatar mais áreas para plantio da cana. É, assim, algo bastante sustentável.”

A edição genética é usada nas pesquisas do agronegócio há 40 anos. Mas as inovações mais recentes permitem que os experimentos sejam mais baratos e rápidos, causando um novo salto tecnológico no setor. Para ter uma ideia, em 1985, um cientista gastava cerca de 50 000 euros para editar um gene. Hoje são 10 euros. Sem contar que, no passado, eram necessários meses para o experimento ficar pronto, enquanto agora bastam alguns dias. O melhor dos benefícios, porém, é a qualidade do trabalho, principalmente o alcançado com a Crispr, criada em 2011, e que funciona como um “copia e cola”.

Com a técnica, uma molécula identifica a parte do código genético que precisa ser cortada, e uma proteína é usada como canivete para fazer o serviço. Os cientistas jogam na célula o trecho do código que desejam inserir no local. As extremidades do próprio DNA captam esse trecho e encaixam onde falta, num processo regenerativo. “A edição de gene permite alterar com precisão a sequência genética para modificar os traços daquele organismo na direção desejada”, diz o doutor em genética Peter Kearns, diretor da área de Ambiente, Saúde e Segurança da OCDE, grupo que reúne os países mais ricos.

Esses estudos genéticos fazem parte de um esforço do agronegócio para encontrar as melhores espécies vegetais para plantar e as de animais para criar. O objetivo vai desde reduzir a incidência de doenças até aumentar a resistência ao clima para, enfim, elevar a produtividade. A corrida pela eficiência não ocorre à toa: estima-se que a produção de alimentos tenha de crescer 70% para dar conta de 10 bilhões de pessoas no mundo em 2050, segundo a Organização das Nações Unidas. Com os programas de melhoramento genético convencionais, os processos de seleção dos melhores grãos ou embriões eram feitos com o cruzamento dos exemplares de melhor desempenho — e os pesquisadores ficavam na torcida para ter os resultados desejados. Com a manipulação em laboratório, isso ficou bem mais fácil e rápido. Um programa de melhoramento convencional demora de sete a 25 anos para ser desenvolvido, enquanto os novos levam de dois a três anos.

A pesquisadora Luciana Relly Bertolini, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, investiga como desativar um gene do código das ovelhas da raça merino australiano, uma boa fornecedora de lã, mas ruim na produção de carne. Com o desligamento, os animais conseguirão apresentar um aumento da massa muscular. Dessa forma, será criada uma ovelha com dupla aptidão: produtora de lã, para a indústria têxtil, e de carne, para a alimentícia. “O cruzamento com outra raça, boa para a produção de carne, pode demorar 12 gerações para alcançar o resultado desejado. Com a edição genética, reduzimos para apenas uma geração”, diz a pesquisadora Luciana.

Com tantos benefícios, a quantidade de pesquisas que usam a técnica mais moderna de edição genética estourou no mundo nos últimos sete anos: os pedidos de patentes de produtos oriundos da Crispr passaram de 130, em 2012, para perto de 3 300, em 2016, considerando não só a agricultura, mas outras áreas de conhecimento, como a saúde humana. A disparada fez com que os países corressem para regular o uso da tecnologia no agronegócio — mas não sem uma boa dose de polêmica. Países como Brasil, Estados Unidos e Argentina decidiram que vão avaliar cada produto criado com base na edição genética para decidir se foi mantido o DNA original da planta ou do animal. Se assim for, o produto deverá ser lançado sob as mesmas regras dos obtidos por meio do melhoramento genético convencional. Caso o produto tenha um gene de outro ser vivo, será considerado transgênico. “O Brasil criou um arcabouço bem moderno e seguro para investir nessa tecnologia nova”, diz Cristiane Bothona, diretora da área regulatória para sementes da Syngenta, empresa suíça recentemente adquirida pela ChemChina.

Nem todos os países seguem a mesma lógica. Em julho, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que alimentos geneticamente editados serão regulados da mesma forma que os transgênicos, o mesmo entendimento dos reguladores da Nova Zelândia. Com receio de que isso ocorresse, grandes multinacionais do setor já estavam instalando seus centros de pesquisa na China, onde se dá quase metade das pesquisas com edição genética na agricultura, e nos Estados Unidos, que ficam com outros 25% do total dos experimentos. A medida europeia, no entanto, revoltou parte da comunidade de pesquisadores. “A decisão não tem base científica e é muito ruim para pesquisadores e criadores, que podem ter seus campos vandalizados”, diz Agnès Ricroch, professora na universidade AgroParisTech e membro da Associação Francesa de Agricultura. Não existe ainda uma diretriz para harmonizar a legislação dos países da União Europeia sobre o tema, mas os cientistas acreditam que, quando isso ocorrer, o conteúdo deverá seguir a decisão da Corte de Justiça.

Protesto: a resistência ao transgênico fez sua regulamentação ficar mais complexa | Konrad K./SIPA/Glow Images

O problema de ser considerado transgênico é que o processo de lançamento do produto no mercado fica mais demorado. Como existe muita desconfiança em relação aos efeitos dos transgênicos na saúde e no meio ambiente por parte dos consumidores e de organizações não governamentais, a regulamentação é mais complexa. No caso do Brasil, o processo para liberar um transgênico implica entrar numa fila de 400 processos em análise na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, cada um com mais de 1 000 páginas — há um esforço para reduzir isso pela administração atual. E é preciso realizar uma série de testes em campo para verificar o impacto do transgênico no meio ambiente, na vida animal e na vegetal, algo que pode levar quatro anos. “No caso dos produtos com edição genética, sem material de outra espécie, o processo demora alguns meses”, diz Maria Sueli Soares Felipe, presidente da comissão. Além de demorada, a liberação de um transgênico é cara: em média, 150 milhões de dólares desde o início da pesquisa até a chegada ao mercado. É por isso que a tecnologia ficou concentrada em grandes multinacionais. No caso das sementes, três delas dominam 80% do mercado mundial.

A edição genética, portanto, tem sido vista como uma forma de democratizar o setor de pesquisa no agronegócio, além de ampliá-lo. Segundo o banco de investimento alemão Berenberg, o mercado global de biotecnologia em sementes poderá dobrar em uma década, para 30 bilhões de dólares. Estatais e startups têm espaço para entrar no jogo. A Embrapa, estatal agropecuária que não conseguiu até hoje lançar um transgênico, abriu um edital para aprovar projetos de pesquisa com a edição de genes. “Em minha equipe, decidimos desenvolver estudos com essa tecnologia em vez do transgênico, não porque ele é perigoso ou ineficiente, mas porque é mais difícil que chegue ao mercado”, diz Alexandre Nepomuceno, pesquisador da Embrapa Soja.

Uma das startups de destaque nesse mercado é a americana Pairwise, que tem entre os fundadores o chinês Feng Zhang, do Instituto de Pesquisas Broad, ligado à Universidade Harvard e ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Ele entrou com o pedido de patente para a tecnologia Crispr em 2012, mas, num processo que corre nos tribunais americanos, disputa a propriedade intelectual com as pesquisadoras Emmanuelle Charpentier, do Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano, da Alemanha, e com a bioquímica Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia. O caso ainda está em análise. Enquanto isso, a Pairwise só cresce. “Temos 30 funcionários, mas devemos alcançar 80 nos próximos meses. E nossos produtos devem chegar ao mercado em cerca de cinco anos”, diz Tom Adams, presidente da empresa. Com um recente aporte de 25 milhões de dólares de fundos de investimento, a Pairwise está criando frutas e verduras melhores para os consumidores. A empresa ganhou tanto destaque que recebeu mais 100 milhões de dólares da americana Monsanto, que foi comprada pela alemã Bayer, para pesquisas em grandes culturas, como soja e milho. “A parceria vai nos ajudar a ter acesso aos melhores cientistas dessa área no mundo”, diz Scott Knight, líder de estratégia de edição de genoma da Bayer.

A corrida para avançar nesse tipo de tecnologia tem sido frenética. A Syngenta, que tem um centro de pesquisas em Pequim, na China, totalmente dedicado à tecnologia de edição genética desde 2015, espera lançar a partir de 2020 um tomate com sabor mais acentuado, um trigo com menor teor de glúten e uma maçã que não escurece depois de fatiada. A Corteva, divisão agrícola da DowDuPont, começou a pesquisar em 2015 o desligamento de um gene relacionado à produção de um amido do milho indesejado pela indústria alimentícia. “Ele deve ser plantado pela primeira vez nos Estados Unidos em 2019, após os resultados finais da pesquisa, dos testes em campo e da revisão para o atendi-mento à regulamentação”, diz Neal Gutterson, chefe de tecnologia da Corteva.  Vale ressaltar que a edição de genes não vai salvar o agronegócio de todos os seus problemas. Embora precisa, a técnica não consegue alterar uma grande fatia do DNA. E, antes de entrar em laboratório, ainda é preciso muito estudo dos códigos de plantas e animais para entender a função de cada gene. Por isso, o melhoramento convencional e os transgênicos ainda estarão por aí por muito tempo. Mas mais uma revolução no campo já começou.  n

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