Carlos Ghosn: prisão sem direito a relógio nem visitas, e interrogatórios diários | Eric Piermont/AFP / (Eric Piermont/AFP)
David Cohen
Publicado em 14 de fevereiro de 2019 às 05h38.
Última atualização em 14 de fevereiro de 2019 às 05h38.
Pode chamar de “maldição do vice”, se quiser. O executivo franco-líbano-brasileiro Carlos Ghosn, que até pouco tempo atrás comandava duas das maiores empresas do mundo, as montadoras de carros Renault e Nissan, está preso desde o dia 19 de novembro, no Japão, devido à colaboração com as autoridades de seu homem de confiança e sucessor na liderança da Nissan, o japonês Hiroto Saikawa. Mas o pano de fundo para o caso é a luta contra o que o chanceler brasileiro Ernesto Araújo chama de “globalismo” — um suposto esforço consciente de destruição de valores nacionais em prol de uma ideologia abstrata, universal.
Ghosn pode servir como um exemplo acabado de “globalista”. Nasceu no Brasil, entrou na escola no Líbano, terminou de educar-se na França, ganhou notoriedade comandando uma empresa no Japão e dois de seus quatro filhos são americanos. Ele tem três passaportes, fala quatro línguas, tem casas em cinco cidades e era, até este ano, habitué do evento mais chique do mundo dos negócios globalizado, o Fórum Econômico de Davos, na Suíça. Chegou a acumular mais de 150.000 milhas em viagens de avião em um ano.
Mais importante que tudo isso, Ghosn é um símbolo do capitalismo sem fronteiras. Ele acredita que as grandes corporações podem suplantar as diferenças nacionais. Foi assim que ele salvou não uma, mas duas companhias gigantescas. Em 1999, quando a japonesa Nissan estava às portas da falência, a francesa Renault também não estava lá essas coisas. Vinha do trauma de uma tentativa de fusão com a sueca Volvo e seus resultados eram pífios. Mas a Nissan com a corda no pescoço representava uma pechincha, e a Renault comprou pouco mais de um terço de suas ações.
Na época, o negócio foi descrito como a ideia de amarrar duas pedras para fazê-las flutuar. Ghosn conseguiu a façanha. Ele já era então conhecido como Le Cost Killer (“O cortador de custos”, em inglês afrancesado). Ganhara o apelido em 1996, quando chegou à Renault, vindo da empresa de pneus Michelin, e eliminou custos de modo eficiente. Na Nissan, adotou o mesmo método, com a adição de um “twist carpado”. Do lado dos cortes, Ghosn demitiu 14% da força de trabalho, cerca de 21 000 pessoas, ao fechar cinco fábricas no Japão. O lado da pirueta foi colocar de pé uma aliança entre as duas montadoras, para que dividissem custos de desenvolvimento de modelos e negociassem juntas a compra de componentes. A essa aliança, com base na Holanda, juntaram-se depois a Mitsubishi e empresas menores da China e da Rússia.
A união de esforços e a busca de sinergias parecem uma solução óbvia. O duro é fazer isso funcionar. Ghosn conseguiu porque comprou uma briga com a antiga cultura da Nissan. Para começar, jogou para escanteio a tradição japonesa de premiar a senioridade e instituiu um sistema de promoções por desempenho, incluindo bônus a gerentes de nível médio. Também desafiou o poder dos grupos de fornecedores que tinham preferência pelas vendas de peças. Para implantar seus métodos, ele se apoiava num pequeno grupo de executivos, conhecidos internamente como “os garotos de Ghosn”. Um deles era Saikawa. No início de 2017, quando Ghosn deixou o comando da Nissan para se concentrar na Renault e na aliança, indicou Saikawa para seu lugar.
Parecia que Ghosn havia imposto a estratégia à cultura. Até que veio a vingança. Como dizia o guru da gestão Peter Drucker, a cultura come a estratégia no café da manhã. Há muito se sabe que o choque de culturas é um dos principais fatores para o fracasso de uma fusão. Normalmente, porém, ele só acontece depois da união — quando modos completamente diversos de trabalhar, medir o sucesso e enxergar a vida precisam entrar em sintonia. No caso da Renault-Nissan, o choque cultural contribuiu para impedir uma fusão. Nessa conta de dividir, Ghosn foi o resto.
Que o casamento era complicado, o noivado já vinha demonstrando. Considerada em conjunto, a aliança entre Nissan, Renault, Mitsubishi e as outras pequenas marcas produz mais carros do que qualquer outro fabricante: foram 10,76 milhões no ano passado. Mas é uma aliança fragmentada, incapaz de fazer frente aos gigantes globais Toyota e Volkswagen. Daí o ímpeto do “globalismo”: Ghosn queria que todas as partes agissem como um único corpo. Sofreu uma oposição constante. Os japoneses não aceitavam, por exemplo, montar seus carros nas fábricas da Renault na França. Um sinal esclarecedor da desunião é o fato de que os carros elétricos que ambas desenvolvem — o Leaf, da Nissan, e o Zoe, da Renault — não compartilham nenhum grande componente.
De certa forma, Ghosn testemunhava algo semelhante ao que aconteceu no Líbano durante sua infância. Quando deixou de ser colônia da França, o governo do país era dividido entre as diversas religiões e etnias: o presidente era cristão maronita, o primeiro-ministro era muçulmano sunita, o porta-voz do Parlamento era muçulmano xiita. Porém, uma leva de refugiados palestinos e a diferença de taxas de natalidade fizeram a população muçulmana se tornar maioria e reivindicar mais poder. Acabou em guerra civil (a essa altura, Ghosn vivia em Paris).
O paralelo com a Nissan, além da colonização francesa, é que no início a montadora japonesa era a parte fraca da aliança, porém a situação atualmente é inversa. Mais da metade dos 5,2 bilhões de dólares de lucro da Renault no ano passado veio da parcela de ações que ela tem da Nissan (hoje 43%, enquanto a Nissan tem 15% da Renault). No promissor mercado da China, a Nissan vende 16 vezes mais carros do que a Renault. Daí cresceu o sentimento de que a aliança é uma espécie de ocupação. Quando Ghosn aventou a fusão completa das duas, o governo francês, principal acionista da Renault, com 15% de participação, adorou, mas a recepção na Nissan foi de ojeriza. Saikawa declarou-se publicamente contrário à fusão, e isso teria irritado Ghosn.
A essa altura, a distância entre os dois já era imensa. Não à toa. Logo que assumiu a presidência, Saikawa teve de lidar com um escândalo de falhas de inspeção que levou a um recall de mais de 1 milhão de veículos. Como é praxe no Japão, Saikawa humilhou-se no pedido formal de desculpas e propôs um corte no próprio salário — embora as falhas se referissem muito mais ao período de comando de Ghosn do que ao seu. Ghosn nunca pediu desculpas.
Também não ajudou muito o fato de que Ghosn podia ser um astro do corte de custos, mas não de seus custos. Na cultura japonesa de salários mais comedidos, Ghosn era uma chamativa exceção. Em 2017, ele ganhou quatro vezes mais do que o presidente da Toyota. Ganhou de várias fontes: 6,5 milhões de dólares da Nissan, 8,4 milhões da Renault, 2 milhões da Mitsubishi e 8,9 milhões de dólares da joint-venture entre Nissan e Mitsubishi. Ele frisava, porém, que ganhava menos do que seus pares da General Motors e da Ford. De qualquer forma, era muito para os padrões japoneses e europeus — o governo francês o forçou a aceitar um corte de salário em 2016, e novamente em 2018. Além do dinheiro, havia os benefícios. A Nissan lhe pagava casas em cinco cidades: Tóquio, Paris, Amsterdã, Beirute e Rio de Janeiro (onde morava uma irmã, que recebia salário como representante da empresa).
Desse conflito financeiro vêm as acusações contra ele. A primeira é que Ghosn aceitou transferir parte de sua remuneração para o pacote de aposentadoria. Ocorre que, no Japão, o executivo tem de pagar o imposto no momento em que se define a recompensa, não quando ela é paga. Essa tecnicalidade pode lhe render vários anos de cadeia. A outra acusação é que, em 2008, no auge da crise mundial, Ghosn ficou sem liquidez e a Nissan honrou um compromisso pessoal dele com um banco. Ghosn resgatou a dívida com uma carta de crédito de um empresário saudita — cuja família mais tarde recebeu 14,7 milhões de dólares do fundo de reserva a que o CEO da Nissan tinha acesso. A defesa de Ghosn diz que o pagamento foi por promover a distribuição da Nissan na Arábia Saudita, não pelo favor prestado.
Esses problemas foram descobertos quando o homem de confiança de Ghosn, o americano Greg Kelly, então um dos diretores, deixou a Nissan no final de 2015. Seu substituto estranhou algumas operações com as casas de Ghosn e começou a colaborar em uma investigação oficial. Saikawa diz que não sabia das investigações, mas depois colaborou nas prisões simultâneas de Ghosn e Kelly, organizando a agenda da empresa para facilitá-las. E se apressou em dizer que a Nissan tem de livrar-se da herança do antigo tutor.
Ghosn está preso em condições duríssimas: sem relógio, sem visitas, só com meia hora de sol por dia, sob interrogatórios diários sem a presença dos advogados. O sistema japonês é desenhado para produzir confissões. A prisão temporária é de mais de 20 dias e, quando o prazo está para terminar, é usual apresentar-se outra acusação (foi o que ocorreu com Ghosn). Tem-se apontado que a taxa de condenação pela Justiça japonesa é de 99,9%, mas o cálculo carrega um tanto de ilusão. Apenas uma minoria dos presos vai a julgamento. Em 2015, foram 8%. É que os promotores não gostam de levar um caso a julgamento se não tiverem certeza de sucesso. A maior chance de Ghosn, portanto, é não ser processado. A novela pode durar vários meses. Em sua única entrevista até agora, Ghosn afirmou que a vida é assim mesmo, com altos e baixos. No seu caso, o alto foi duradouro, o baixo poderá ser demorado. Ele já perdeu todos os seus cargos.
Quanto à aliança entre Renault e Nissan, Saikawa afirmou, surpreendentemente, que não ficará muito tempo mais no comando da Nissan, e a Renault já tratou de apontar um presidente substituto para tentar salvar o que puder da aliança. Seu nome é Jean Dominique Senard. Assim como Ghosn, ele veio da Michelin. Mas dificilmente conseguirá guiar as companhias da mesma forma.