Após bonança, Uber vive momento inesperado no Brasil
O aumento da concorrência, com o investimento recebido pela 99 e a chegada da Cabify, acirrou o mercado e colocou obstáculos para a empresa no país
Gian Kojikovski
Publicado em 16 de setembro de 2017 às 07h15.
Última atualização em 16 de setembro de 2017 às 15h31.
Em janeiro, pouco depois de anunciar o investimento de 100 milhões de dólares da chinesa Didi Chuxing, a 99 (ex-99táxis) montou uma barraquinha em uma das esquinas da avenida Antarctica, na Zona Oeste de São Paulo .
A intenção era abordar motoristas que estivessem chegando ao centro operacional da concorrente, o Uber , próximo dali, e tentar convencê-los a trabalhar também para a 99. O movimento exemplifica um momento pelo qual o Uber nunca imaginou que fosse passar no Brasil: a concorrência existe, tem o bolso fundo, e tornou-se tão agressiva quanto ele próprio.
Logo que entrou no país, pouco antes da Copa do Mundo de 2014, o Uber encontrou o que convencionou-se chamar no mundo dos negócios de “oceano azul”.
Embora existissem outros aplicativos para transporte, como a própria 99 e a Easy, eles focavam em táxis, enquanto o Uber trabalhava com carros particulares e oferecia um preço mais camarada.
Isso fez com que a startup chegasse a ter uma fatia de mais de 80% no mercado de transporte de passageiros por aplicativo. Hoje, o Brasil é o segundo maior mercado do Uber, atrás apenas dos Estados Unidos.
No mês passado, o Uber anunciou que São Paulo é a cidade que mais realiza corridas por meio do aplicativo no mundo e que 15 milhões de pessoas utilizam os serviços ao menos uma vez por mês no país.
EXAME apurou que o Rio de Janeiro também está entre as cinco cidades com mais corridas no mundo. O valor transacionado ao ano fica na casa da dezena de bilhões de reais – e o Uber fica com até 25% do valor das corridas.
O aumento da concorrência, com o investimento recebido pela 99 (que depois do aporte da Didi anunciou mais 100 milhões de dólares vindos do banco japonês Softbank, para completar uma rodada de 200 milhões) e a chegada da espanhola Cabify, que adquiriu a operação da Easy em junho em uma transação estimada em cerca de 500 milhões de reais, acirraram o mercado e colocaram obstáculos inéditos para o Uber no Brasil.
De acordo com dados da consultoria comScore, entre janeiro e fevereiro, quando os investimentos dos concorrentes chegaram ao auge, o Uber viu seu número de usuários únicos cair em 12%.
A 99, aproveitando o dinheiro vindo da Ásia e oferecendo diversas promoções para atrair novos clientes, praticamente dobrou o número de usuários no mesmo período, chegando a ter um terço do tamanho do Uber.
Desde fevereiro, a empresa americana recuperou boa parte dos usuários perdidos, assim como os concorrentes perderam conforme as promoções diminuíram. Isso, no entanto, mostra como a liderança, por maior que seja, pode ser frágil.
“O Uber nunca esperou que a operação no Brasil crescesse tanto e se tornasse tão rentável. Foi uma surpresa positiva para a sede. Ao mesmo tempo, também não esperava que a concorrência um dia chegasse. Mas chegou”, diz um ex-funcionário.
“Claro que a empresa ainda é muito maior que as concorrentes, mas está cometendo erros devido a essa mudança de cenário”, diz um executivo do setor.
Durante dois meses, EXAME ouviu mais de duas dezenas de executivos, ex-executivos, investidores, funcionários, banqueiros, concorrentes e especialistas no mercado de transportes e de tecnologia, além de uma série de motoristas, para mostrar o momento mais desafiador para o Uber desde que chegou ao país. O Uber não deu entrevista.
Na operação brasileira, assim como a da matriz, no Vale do Silício, é adotada a máxima de que o fim justifica os meios. Para chegar aonde se quer, passa-se por cima de quem precisar – governo, associações ou mesmo juízes. No caminho, sobram polêmicas, disputas internas por poder e pressões sobre funcionários
O Uber pode ser usado em mais de 70 municípios brasileiros – uma enorme vantagem sobre a concorrência, que atua com carros particulares em uma dezena de municípios.
De acordo com uma pesquisa da empresa de pesquisas Ibope Conectas, 54% dos usuários de internet do país usam o app, enquanto apenas 12% utilizam o 99, 5%, o Easy, e 4%, o Cabify – 43% não utilizam nenhum. Entre os clientes dos aplicativos, apenas 3% não usam o Uber.
O desempenho por aqui foi melhor que o esperado por uma série de fatores. Alguns externos, como a demora dos concorrentes em mudar seu modelo de negócios para carros particulares; a combinação de preços altos e serviço ruim dos táxis; e a crise econômica, que empurrou dezenas de milhares de pessoas para o desemprego.
Outros fatores são internos, como o lançamento do UberX, serviço mais barato do que táxis, e, mais tarde, começar a aceitar dinheiro como método de pagamento. “Isso fez com que a empresa passasse a ter acesso a uma massa de pessoas enorme que jamais usaria o serviço porque não tem cartão de crédito”, diz um executivo de um banco de investimentos.
O preço da juventude
Quando Guilherme Telles, aos 29 anos, foi escolhido para ser o responsável pela operação brasileira, no início de 2014, ninguém esperava que o país teria tamanho destaque dentro da companhia. Telles estava terminando um MBA em Stanford quando enviou uma apresentação ousada para a empresa, mostrando o potencial de uma operação no Brasil. Depois de um processo em que foi entrevistado por 16 pessoas, acabou escolhido para tocar o negócio por aqui. Criado em 2009, o Uber já havia aberto escritórios em 37 países.
A maioria dos profissionais escolhidos para implantar o Uber por aqui tinha o perfil de jovens com sucesso na carreira e bastante ambição.
A ousadia deles fez com que a empresa se tornasse uma surpresa positiva, mas a “falta de cabelos brancos” também traz problemas, segundo EXAME apurou. No primeiro ano de operação, por exemplo, os executivos sequer sabiam que era obrigatório o pagamento de dissídio aos funcionários.
A falta de experiência na gestão aliada à cultura agressiva trazida de fora também são um problema nas relações internas. De acordo com o relato de um ex-funcionário, um dos gestores da empresa tem três reclamações internas por assédio moral. “Desde que existam resultados positivos, qualquer tipo de pressão pode acontecer lá dentro”, diz.
Uma ex-diretora, afastada por depressão, foi demitida mesmo com atestado do médico do trabalho contratado pelo Uber. Ele recomendou a recontratação, mas os gestores não cederam, mesmo com a lei proibindo a demissão em tais condições. Agora, a ex-funcionária está processando a empresa.
Algumas vezes, as disputas internas podem colocar em risco até os objetivos da empresa. Ainda no começo da operação no país, durante as principais batalhas para convencer políticos e opinião pública de que o modelo de negócios não era ilegal, os dois principais executivos de políticas públicas responsáveis pela estratégia, Daniel Mangabeira e André Gustavo Rosa, sequer se falavam. André saiu da empresa no início do ano e, procurado, não comentou.
Boa parte do pacote de polêmicas mais recente envolve Ivo da Motta Azevedo Corrêa, ex-diretor de relações governamentais do Google Brasil entre 2008 a 2011 e ex-subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil no governo Dilma Rousseff, de onde saiu pouco antes de ingressar no Uber como vice-presidente de políticas públicas.
Com 15 dias de casa, em junho de 2016, Corrêa prestou depoimento como testemunha de defesa da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) na comissão do impeachment no Senado, o que causou um enorme desconforto interno na empresa.
Durante o depoimento, bateu de frente com o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), parlamentar à frente de um projeto nacional de regulamentação do transporte por meio de aplicativos. O projeto de Ferraço era o preferido do setor por ser considerado o menos intervencionista.
Desde então, essa proposta andou pouco. “A tramitação parou pela agenda do Congresso e pela falta de empenho de políticos em lutar contra o corporativismo de categorias organizadas”, diz Ferraço. EXAME apurou que Corrêa é visto por parlamentares como um nome ainda próximo do PT.
Outro projeto para regulação, do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), foi aprovado na Câmara em abril, causando a maior derrota política do Uber desde que chegou ao Brasil. Uma emenda retirou a palavra “privado” do texto, equiparando o serviço ao dos táxis, inclusive com a obrigatoriedade de regulação municipal. A proposta agora tramita no Senado.
Mais tarde, Corrêa também ficou frente a frente com o juiz Sergio Moro. Foi testemunha de defesa de Branislav Kontic, tido como braço direito de Antonio Palocci e que chegou a ser preso pela Lava-Jato. Branislav acabou absolvido na ação por falta de provas, mas segue como réu em outra. Corrêa é próximo de Kontic desde que era estagiário.
A escolha pelo crescimento
Entre junho e novembro de 2016, o número de downloads mensais do Uber no Brasil quadruplicou, chegando a 4.000.000, de acordo com dados da consultoria alemã Priori Data. O crescimento fez com que aumentasse a necessidade de novos motoristas, o que, por sua vez, levou à diminuição das exigências para novos entrantes. Somado ao descontentamento de motoristas submetidos à violência crescente, que piorou quando a empresa passou a aceitar dinheiro, em julho de 2016, levou a uma queda na qualidade dos serviços.
Em 2015, a empresa fez uma pesquisa global para entender o comportamento de consumidores em algumas cidades no mundo em relação aos melhores métodos de pagamento. O estudo mostrou que o Brasil era uma área consideravelmente sensível à violência caso os motoristas começassem a receber em dinheiro. Pela lógica, medidas de segurança deveriam ser tomadas antes de qualquer mudança, mas isso não aconteceu. Os pagamentos em dinheiro passaram a ser aceitos em diversas cidades a partir de julho de 2016. O resultado foi a explosão nos casos de assaltos e outros incidentes. A primeira morte de um motorista veio logo depois, em setembro, durante um assalto, e os casos não pararam desde então.
“A empresa tinha conhecimento das consequências de começar a aceitar pagamentos em dinheiro antes de melhorar a segurança dos motoristas, mas preferiu expor os motoristas ao risco e acelerar seu crescimento”, diz um ex-executivo.
Nos primeiros meses, todos os motoristas que se cadastravam passavam por uma aula presencial que explicava sobre a empresa e dava dicas para o trato com clientes. O nível de reclamações era baixíssimo. Agora, tudo é feito online, inclusive a aceitação de documentos, e os motoristas ficam aptos a dirigir de forma mais rápida, mas sem o mesmo preparo. Em 2015, a empresa recebeu 1.300 reclamações no Reclame Aqui. Em 2016 foram mais de 30.000 e somente entre março e setembro deste ano foram 26.000. A empresa tem uma reputação considerada “ruim” pelos usuários do site.
Da última vez que divulgou o número de parceiros, em outubro de 2016, 50.000 motoristas trabalhavam por meio da plataforma – 10 vezes mais que um ano antes. Hoje, fontes ouvidas por EXAME dão como certo um número superior aos 100.000, mas o Uber não confirma.
Desde que entrou no país, o Uber reduziu os preços diversas vezes, na tentativa de concorrer, em muitos casos, com o transporte público das cidades onde opera. A empresa alega que isso não reflete na remuneração dos motoristas. Na prática, a grande maioria dos motoristas ouvidos por EXAME está descontente tanto com o valor recebido como com a taxa de 25% que é destinada à empresa na categoria UberX.
Como alternativa, foram lançados novos serviços, como o Uber Select, que, por um preço um pouco mais alto, oferece motoristas com melhores notas e carros mais novos.
Para aproveitar o mercado de classe média que está descontente com a qualidade do Uber e que pode pagar um pouco a mais pelas corridas, a Cabify se posicionou como um serviço de qualidade e preço ligeiramente maiores. Em junho, a empresa espanhola comprou a brasileira Easy, que tem operações em toda a América Latina. A ideia é continuar focando nos clientes de classe média com o app da Cabify e fazer o Easy retomar a confiança dos taxistas. EXAME adiantou com exclusividade que a Easy deixará de operar com veículos particulares a partir do dia 18 de setembro. Juntos, ambos respondem por cerca de 10% do mercado. Em abril, a Cabify anunciou que investiria 200 milhões de dólares no país, mas não especificou se o valor incluía ou não o investido para adquirir a rival.
A maior ameaça para o Uber no Brasil, no entanto, é a 99. A empresa, que recebeu 200 milhões de dólares da chinesa Didi Chuxing e da japonesa Softbank escolheu como foco o mesmo mercado da concorrente, colocando preços parecidos, mas uma taxa menor para os motoristas e oferecendo uma quantidade enorme de descontos, o que fez com que a empresa tivesse uma rápida tração no mercado logo depois do aporte.
Desde agosto a 99 vem abrindo operações em várias capitais – deve chegar a mais de 20 cidades até dezembro. Na China, a Didi Chuxing entrou em uma guerra contra o Uber para ver quem tinha a melhor tecnologia e o bolso mais fundo e saiu vencedora. Para replicar o sucesso, uma equipe da Didi que fica na Ásia trabalha dedicada a melhorar o produto da 99 e é comum ver profissionais chineses trabalhando no escritório no Brasil.
“Se conseguir competir bem na guerra de preços e trouxer a ótima tecnologia que a Didi tem na China, pode complicar bastante a vida do Uber”, diz um banqueiro do setor de tecnologia.
O reflexo da crise global
O aumento da concorrência no Brasil aconteceu no pior momento da companhia em termos globais, já que o fundador e ex-presidente Travis Kalanick renunciou ao cargo em junho depois de meses de seguidos escândalos, como as acusações de uma conduta permissiva quanto ao assédio sexual, roubo de informações do Google e uso de um sistema para enganar autoridades. No final de agosto, o Uber anunciou seu novo presidente, o iraniano Dara Khosrowshahi, ex-presidente do site de turismo Expedia.
Khosrowshahi assumiu afirmando que o objetivo é uma oferta pública de ações em, no máximo, 36 meses. Antes de ele assumir, representantes da empresa na América Latina procuraram grandes bancos para saber da possibilidade de um IPO somente das operações da região.
Para que o plano de IPO de Khosrowshahi torne-se realidade, os resultados precisam melhorar. O faturamento passou de dois para 3,25 bilhões no primeiro semestre, comparado com o mesmo período de 2016. Mas o prejuízo aumentou, de 1,27 para 1,35 bilhão. Nos Estados Unidos, a participação de mercado caiu de 90% para 75,3% em dois anos. Nessa toada, o valor de mercado da empresa caiu dos 69 bilhões de dólares, em 2015, para menos de 50 bilhões, segundo estimativas. Como segundo maior mercado, o Brasil é fundamental para a retomada. Atenção ao país, portanto, não deve faltar. Competição, também não.