Por que Bill Gates investiu US$ 10 milhões em startup que tem sete pessoas
A empresa canadense tem zero receita e nenhum cliente, porém atua em um nicho bastante cobiçado para os próximos anos: o de carros elétricos
Karina Souza
Publicado em 17 de dezembro de 2021 às 17h40.
Última atualização em 20 de dezembro de 2021 às 11h03.
Investir em uma startup que tem apenas sete pessoas, zero receita e nenhum cliente pode parecer impossível ou, no limite, loucura. Não para Bill Gates . O co-fundador da Microsoft investiu 10 milhões de dólares em uma empresa que reúne todas essas características, a canadense Mangrove Lithium. A razão para a aposta, mesmo em uma empresa em estágio tão inicial de operação, pode ser explicada pelo nicho em que ela atua: o de carros elétricos.
Como o próprio nome já diz, o foco da operação da startup está no lítio, minério utilizado para fabricar baterias – usadas em praticamente todos os dispositivos eletrônicos utilizados atualmente. A startup canadense está focada em construir uma plataforma que torne o processo de extração e transformação do lítio mais eficiente, focando principalmente nas salmouras, mas também em rochas.
“Com a tecnologia atual, atingir a concentração de LiOH exigida para atingir os requisitos é desafiador e tem alto custo. A tecnologia da Mangrove, que ainda tem patente pendente, visa redesenhar o processo de produção de lítio, com uma abordagem de reengenharia de produção de lítio do zero. Nosso foco é trazer uma abordagem nova, que ajude empresas a atingir a quantidade necessária para baterias de maneira simples”, afirma a companhia, no próprio site.
Atualmente, a Mangrove Lithium tem apenas uma planta, localizada em Vancouver. Graças ao investimento do co-fundador da Microsoft, a empresa vai construir uma planta comercial para operar em escala industrial.
Esse é o segundo investimento de Bill Gates no setor. Antes disso, o bilionário havia feito, também via venture capital, o investimento na Lilac Solutions, startup que também visa tornar a extração de lítio mais eficiente.
É um processo bastante nichado, porém com alto potencial de impacto. Isso porque há, hoje, duas formas de extrair lítio da natureza: a partir de salmouras (que respondem pela maior parte das reservas globais do minério) ou a partir de rochas. Focando no nicho da Mangrove, a principal região de onde se extrai lítio dessa forma, no mundo, está no “Triângulo do Lítio”, que compreende a Argentina, Chile e Bolívia.Estimativas recentes mostram que a região tem 70% das reservas de lítio de salmoura no mundo.
O problema nesse tipo de extração, hoje, está em torná-lo mais eficiente e sustentável. Atualmente, o processo funciona com a perfuração dos lagos salgados em cerca de dez metros, atravessando a crosta. Em seguida, a água (com lítio e outros minerais) é bombeada até à superfície, onde fica por meses até que evapore completamente e sobre apenas o mineral de interesse para a produção de baterias. Os espaços em que isso ocorre são gigantes – uma comparação indireta seria às de barragens de rejeitos, só que em vez de a água ficar misturada à lama, fica junto com o lítio.
Esse processo traz consequências socioambientais ruins especialmente no Chile, como aponta um artigo publicado pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina no ano passado. De acordo com as informações, a extração do lítio tem efeitos colaterais na disponibilidade de água para povos indígenas que vivem nas Salinas do Atacama, já que 95% da água é perdida por evaporação. E, para extrair uma tonelada de lítio da salmoura, é necessário usar 1,9 milhão de litros de água.
Para diminuir o impacto ambiental nesse processo, a Albermarle, uma das empresas que atua na região, afirma que investiu mais de 100 milhões de dólares para instalar uma nova tecnologia que permite dobrar a produção de lítio sem aumentar o uso de água. Chamada de um “evaporador térmico”, a nova tecnologia deve reduzir o uso de água em até 30% ao reciclar o líquido utilizado na produção do minério.
Outra mineradora que atua na região é a Sociedad Química y Minera de Chile, que, em 2020, declarou que gostaria de aumentar a produção local para atender à demanda por carros elétricos, o que foi duramente criticado por comunidades do Atacama. Em 2016, a autoridade reguladora ambiental descobriu que a SQM extraiu mais salmoura do local do que era permitido.
Fato é que a disputa por extração do minério na região é interessante porque é bem mais barata do que retirar o minério de rochas. O mesmo artigo da UFSC mostra que a extração custa entre 2 mil a 3,8 mil dólares por tonelada no Chile, em comparação a 4 mil a 6 mil dólares por tonelada na Austrália, região em que é retirado de rochas.
Lítio de rochas - e como o Brasil entra nisso
Na extração mais cara do lítio – que, inclusive, é o método utilizado para obter o material no Brasil – uma das empresas que tem certificados de sustentabilidade para a prática no país é a Sigma Lithium, que recebeu um aporte de 50,1 milhões de dólares da BlackRock, maior gestora de ativos do mundo. Com o novo aporte, a participação da gestora corresponde a 5,5% das ações da empresa.
“Nós somos a única mineradora de lítio de rocha no mundo que tem os processos validados como ambientalmente sustentáveis. Além disso, conseguimos produzir um lítio de altíssima pureza, que já foi validado por clientes como a LG Energy, uma das principais produtoras de bateria de níquel do mundo. Daqui para frente, existe um caminho muito positivo a ser percorrido não só pela Sigma, mas por todo o setor de carros elétricos, ao longo dos próximos dez anos”, diz Ana Cabral-Gardner, co-presidente executiva da Sigma Lithium, à EXAME. Em números, dados da Agência Internacional de Energia divulgados em 2020 mostram que a demanda global pelo minério pode ser multiplicada por 40 vezes até 2040.
De olho nesse potencial, outras duas empresas também mineram lítio no país: a AMG e a Companhia Brasileira de Lítio (CBL). A principal região de exploração está no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, mas já existem pesquisas conduzidas em outros estados, como Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará para avaliar a viabilidade de extração do lítio.
No país, quem faz os relatórios de extração de lítio no Brasil, atualmente, é a Companhia Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), ou simplesmente o Serviço Geológico do Brasil.
“O serviço trata desde mapeamento básico das rochas existentes no país e faz o refinamento disso em detalhes. Temos mapas de 1 para 100 mil, por exemplo. Analisamos todos os dados geoquímicos e geofísicos, nos baseando principalmente nos projetos do governo federal de mineração. O lítio entrou recentemente como um mineral estratégico para os próximos anos”, diz Priscila Fernandes, coordenadora dos projetos de lítio do CPRM. Atualmente, os estudos levam de dois a quatro anos para serem concluídos, mas os primeiros resultados são mostrados já no primeiro ano de pesquisa.
Apesar de o Brasil não estar nem perto dos grandes produtores de lítio – Chile, Austrália e Argentina estão à frente – a corrida global pelas baterias para carros elétricos pode aumentar a relevância do país nesse cenário. E, com o foco ampliado em sustentabilidade em toda a cadeia de produção, o país pode se sair muito bem diante disso. Com a combinação entre extração e foco em ESG, a Sigma, por exemplo, já fechou contrato com a japonesa Mitsui, com seis anos de duração.
Fora do país, Bill Gates certamente já entendeu a importância dessa cobrança e – como os investimentos mostram – o bilionário tem planos de ficar à frente na corrida por um processo mais sustentável, eficaz e barato. Dentro desse cenário, olhar para startups que não têm nem uma operação comercial propriamente dita parece o ponto de partida ideal para aproveitar ao máximo a explosão da demanda global por lítio. E 10 milhões de dólares podem ser um pouquíssimo dinheiro diante do retorno que os resultados podem trazer.