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Por que as empresas não podem idolatrar seus talentos raros

Pesquisa mostra que companhias que colocam funcionários criativos em pedestal promovem o mau comportamento deles em relação ao resto da equipe


	Talentos: agir com ar de superioridade no trabalho não é simplesmente o resultado de identidade criativa
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Talentos: agir com ar de superioridade no trabalho não é simplesmente o resultado de identidade criativa (Thinkstock)

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Da Redação

Publicado em 6 de janeiro de 2016 às 12h03.

São Paulo - Quando Lynn entrou na equipe administrativa de uma grande orquestra sinfônica, ela sabia que o trabalho trazia uma mordomia fantástica: entradas gratuitas para os concertos de alguns dos músicos mais talentosos do mundo.

Mas havia um preço a pagar por isso. Lynn logo percebeu que ela teria de enfrentar muitos incômodos com esses artistas.

Por exemplo, havia o caso do vocalista que precisava de um segurança a postos nos ensaios, pois tinha surtos de raivas violentíssimos se o tripé de partituras estivesse bambo ou alguém usasse muito perfume perto dele.

"Houve momentos em que eu ia a um concerto, olhava para as personalidades no palco e pensava: "você é um idiota. Nunca devolve seus documentos assinados dentro do prazo. Você bateu de frente e gritou comigo na semana passada", diz Lynn, que pediu para usar apenas seu segundo nome.

Pior do que isso, diz Lynn, esse tipo de comportamento em relação a ela e a todos os outros funcionários não atuantes — ajudantes no palco, eletricistas, pessoal que entrega panfletos —não só era tolerado mas até aceito por causa do talento dos artistas.

"Se alguém dissesse 'Não acho que isso esteja certo', ou apenas 'Puxa, eu não acredito no que acabou de acontecer', você ouviria 'Bem, eles são assim mesmo e nós temos que aturar isso'", diz ela. "Naturalmente você também começa a acreditar nisso".

Histórias como essa podem parecer uma demonstração do temperamento "típico" de artistas.

Mas, de acordo com uma nova pesquisa de Maryam Kouchaki da Kellogg School e de Lynne Vincent da Whitman School of Management da Universidade de Syracuse, agir com ar de superioridade no trabalho não é simplesmente o resultado de identidade criativa.

São necessárias circunstâncias específicas para provocar esse tipo de mau comportamento: quando a criatividade é vista como uma característica rara atribuída apenas a alguns funcionários especiais, ela funciona como uma espécie de autorização para que estes funcionários se comportem mal.

E isso vale até mesmo quando você não é criativo, mas considera possuir essa característica.

"Você não precisa necessariamente ter uma capacidade criativa real", diz Kouchaki. "O que importa, no final das contas, é a minha percepção de mim mesmo".

Comportamento questionável

Kouchaki, especialista em ética no trabalho, ficou interessada em estudar a criatividade depois de se deparar com uma pesquisa argumentando que esta característica pode levar a decisões moralmente questionáveis.

A pesquisa sugeria ser possível que a criatividade não ajudasse alguém somente na descoberta de uma nova solução para uma tarefa difícil.

Talvez ela também ajude alguém a inventar uma justificativa para, digamos, aumentar o número de horas que passou naquela tarefa.

Mas Kouchaki, professora assistente de gestão e organizações, e Vincent imaginaram a possibilidade de haver outra explicação.

"Pensamos que, por causa do valor normalmente atribuído à criatividade, as pessoas criativas podem realmente ter um ar de superioridade, e este senso de superioridade pode levar a um comportamento mais desonesto", diz Kouchaki.

"Se você acha que merece mais do que outras pessoas, quando está em uma situação tentadora, este sentimento o permite a agir com um comportamento mais egoísta".

As pesquisadoras conceberam cinco experimentos que examinam a relação entre identidade criativa, superioridade psicológica e comportamentos desonestos.

Em um experimento, os participantes realizaram um teste de associação de palavras concebido para medir seu potencial criativo. Em seguida, cada participante recebeu uma de três mensagens aleatoriamente.

Um grupo foi comunicado de que se saíram bem em um teste de criatividade e que aquela criatividade era rara, e outro grupo foi informado de que foram bem no teste de criatividade e que aquela criatividade era comum.

Um terceiro grupo de controle foi informado de que se saíram bem, mas sem mencionar a criatividade.

Em seguida, os participantes entraram em um jogo para disputar uns dólares de prêmio em dinheiro. Durante o jogo, tiveram a oportunidade de mentir para o outro participante a fim de aumentar sua própria parcela do prêmio.

Criatividade rara

Os resultados mostram que, quando os participantes foram informados que eram criativos, mas que o tipo de criatividade era comum, não houve nenhum efeito adverso sobre o comportamento.

Foi quando foram informados de que eram excepcionalmente criativos que o mau comportamento ficou aparente.

Os participantes que foram informados de que eram criativos e de que a criatividade era rara foram mais do que duas vezes mais propensos a mentir aos seus parceiros no jogo do que os integrantes dos dois outros grupos.

Esse mesmo grupo também obteve uma pontuação muito maior em termos de superioridade em um questionário pós-jogo, que solicitava aos participantes avaliar o quanto concordavam com afirmações como: "Honestamente, sinto ser mais merecedor do que os demais".

Em outras palavras, Kouchaki diz  que é muito mais do que a sua identidade ou a sua capacidade; trata-se também das pessoas ao seu redor.

Sugerimos que, quando você está cercado por outras pessoas criativas, você não tem necessariamente aquele senso de superioridade.

Você é tão especial quanto as outras pessoas, porque todo mundo é criativo. Mas quando você está cercado por pessoas não criativas, seu senso de superioridade aumenta: "Eu mereço um tratamento preferencial".

O que significa que talvez não tenha sido a criatividade em si que fez com que um músico com quem Lynn trabalhou gritasse de raiva se alguém lhe trouxesse uma garrafa de água da marca Fiji, em vez de Evian ("Sem exagero", diz ela).

Em vez disso, pode ter sido o fato de que, nesse ambiente de trabalho especial, a criatividade foi considerada uma característica pertencente apenas a algumas pessoas especiais.

Conforme Lynn descreve: "Simplesmente não havia substitutos para essas pessoas. Não havia opção de demiti-los ou até mesmo discipliná-los por mau comportamento pois estavam entre os melhores do mundo. Não havia outros 20 violoncelistas ou flautistas brilhantes fazendo fila para tomar seus lugares".

Cultura de criatividade

Nem todos os exemplos de pessoas criativas se comportando mal são tão drasticos. As histórias mais comuns são como as de Jason Rothstein, que por vários anos gerenciou o departamento de produção criativa de uma empresa de design gráfico.

A multimídia estava começando a se tornar importante para os clientes, mas apenas um funcionário tinha essa habilidade, diz Rothstein.

Era o único que tinha uma sala privativa, definia seus próprios horários e tinha equipamentos especializados reservados apenas para ele.

"Esse cara costumava dizer às pessoas que estava cobrando 12 horas em um projeto específico, quando na verdade estava trabalhando em seus projetos particulares", Rothstein diz, "ou de fato fazendo qualquer outra coisa, porque ninguém mais tinha experiência para avaliar o que ele estava dizendo".

Esse feudo acabou gradualmente à medida que as habilidades em multimídia tornaram-se mais comuns, diz ele. Afinal, é difícil ser esnobe quando qualquer João, Maria e José também demonstram os mesmos talentos corredores afora.

É por isso que Kouchaki recomenda que as empresas evitem transmitir a mensagem de que a criatividade é um privilégio de poucos funcionários.

"É importante incentivar uma cultura de criatividade", diz ela, "em vez de reservar um tratamento especial para as pessoas criativas".

Assim, por exemplo, a orquestra de Lynn poderia ter enfatizado que mesmo os funcionários não artísticos poderiam ser criativos no modo como abordavam a solução de problemas.

Fontes de superioridade

Obviamente, a criatividade nem sempre leva a comportamentos questionáveis.

"Muitas organizações hoje em dia se caracterizam pela criatividade, como a Apple", diz Kouchaki.

"Sendo assim, essas organizações seriam mais propensas a serem desonestas? É muita ingenuidade presumir isso", afirma. 

Ainda assim, a pesquisa de Kouchaki proporciona um mandado claro para as empresas que esperam atrair e reter funcionários criativos, sem afastar todos os demais do processo.

Pesquisas futuras podem determinar que este conselho também se aplica a outros atributos, como riqueza, status social ou gerencial.

Se uma empresa incentiva uma cultura em que as habilidades de liderança ou conhecimentos em tecnologia são restritos a poucas pessoas, também pode promover a superioridade, a desonestidade, ou ambos nestas mesmas pessoas.

E se você for um funcionário deste tipo de organização? Há sempre o caminho que Lynn finalmente escolheu.

Após sete anos de desabafo com os colegas de trabalho, buscar consolo na bebida após o expediente e, eventualmente, chorar na sua sala, pediu demissão.

"Eu simplesmente não queria mais fazer parte daquilo", diz ela. "Em última análise, minha opção era lidar com isso ou sair, porque a coisa não iria mudar."

Mas há um lado positivo, ela aponta: "Com o passar do tempo e estando longe deles, eu sou novamente capaz de apreciar o que fazem em termos de música. Ainda vou aos seus concertos. Eu só não quero mais trabalhar naquele ambiente".

Texto publicado com a permissão da Northwestern University (em representação da Kellogg School of Management). Publicado originalmente no Kellogg Insight.

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