Fila na unidade das Lojas Cem em Pirassununga: consumidores correm para o comércio após a reabertura (Denyse Godoy/Exame)
Denyse Godoy
Publicado em 10 de junho de 2020 às 10h55.
Última atualização em 10 de junho de 2020 às 15h32.
O comércio do município de São Paulo foi autorizado a reabrir as portas, em horário restrito, nesta quarta-feira, 10. A retomada das atividades traz um misto de alívio e preocupação. Para quem trabalha no setor, significa que parte da renda que evaporou devido ao necessário distancimento social para barrar o contágio pelo novo coronavírus pode começar a retornar. Para os especialistas em saúde, há o temor de aceleração do surto. Para os consumidores... Isolada em uma cidade que há dez dias reabriu as lojas, vou compartilhar com os leitores da EXAME qual é o sentimento de voltar às compras depois de quase três meses de isolamento.
Passei 56 dias trabalhando em home office na capital paulista, desde 13 de março. Apartamento pequeno, dois cachorros, saindo só uma vez a cada quatro dias para comprar comida ou remédio em um raio de no máximo 500 metros de casa. Como quase todo mundo, o cansaço físico e mental me deixavam angustiada dia após dia. Mas faço parte da privilegiada parcela da população que pode trabalhar de qualquer lugar e, portanto, sair da cidade para passar a quarentena com um pouco mais de conforto. Após uma cuidadosa avaliação dos riscos e preparação, em 7 de maio rumei para o interior do estado, para minha cidade natal Pirassununga, onde meus pais vivem em uma espaçosa e ensolarada casa com quintal.
As ruas já sempre muito silenciosas ficaram mudas. Desde 24 de março, seguindo o decreto do governo do Estado, Pirassununga havia determinado o fechamento do comércio. Os moradores foram exemplares na obediência, e por semanas o município figurou no ranking dos que exibiam os maiores índices de isolamento. Pressionada pelos comerciantes locais, a prefeitura chegou a autorizar a reabertura das lojas em 16 de abril, mas o Ministério Público obrigou ao fechamento de novo poucas horas depois.
Com cerca de 70.000 habitantes, Pirassununga tem uma taxa baixa de contágio pela infecção respiratória covid-19: até ontem, contava 142 casos confirmados, com uma morte, e 29 suspeitos. Incluída em uma região que, de acordo com o plano da administração João Doria, está na fase dois da chamada "Retomada Consciente", reabriu o comércio na segunda-feira, 1o. de junho.
Antes de mais nada, a notícia de que as lojas vão poder voltar a funcionar dá uma esperança de que a vida começa a se normalizar. Especialistas em psicologia têm dito que pensar que a rotina pós-pandemia será igual à anterior é apenas uma estratégia emocional para evitar o sofrimento, já que o mundo como o conhecíamos ficou no passado. Eu me agarro a essa estratégia ilusória, então, e no sábado 30 de maio começo a fazer uma lista de coisas que preciso (quero?) comprar.
Nas semanas anteriores, aprendi quais são as lojas de que gosto em São Paulo e entregam em Pirassununga, e selecionei as que têm menores prazos. O Magazine Luiza fez chegar um telefone celular novo para minha mãe em apenas dois dias. A Petlove, usando uma transportadora que contrata entregadores pessoas físicas da própria cidade, garantiu que os meus dois cachorrinhos não ficassem sem sua ração especial. As lojas locais até tentaram criar um sistema de delivery, atendendo pelo WhatsApp, cujos números foram fixados às portas de ferro. Mas, quando eu perguntava as cores disponíveis de uma roupa, por exemplo, me diziam para ir à loja olhar, porque estavam deixando os clientes entrar individualmente. Outras chegaram a separar as compras, porém pararam de responder na hora de acertar a entrega. Não funcionou, portanto.
Vários outros produtos deixei para adquirir depois que a crise passar porque a compra online seria muito trabalhosa ou a entrega, demorada – 15 ou 20 dias úteis para itens chegam no dia seguinte em São Paulo. No entanto, a ideia de poder voltar a conferir as vitrines, ver os produtos "com as mãos", como se fala por estas bandas, e eventualmente até provar algumas peças reacendeu em mim o espírito consumista que o modo de sobrevivência ativado em março havia subjugado.
A minha lista de compras para a reabertura tinha 17 itens. Ao longo das semanas, percebi que trouxe menos roupa do que o necessário. Entrei no site da Hering e, para adiantar o processo e tentar não passar muito tempo na loja física, escolhi duas calças de algodão, camisetas, blusões... e um blazer com corte de alfaiataria de moletom, porque conforto para trabalhar em casa é preciso, mas sem perder a elegância jamais (aqui estou mentindo para mim mesma: já precisei tirar correndo o roupão de plush que tenho usado por cima da roupa nas manhãs frias quando fui chamada de surpresa para mostrar o rosto e fazer um comentário em uma teleconferência da qual estava participando com a câmera desligada).
Bateria para a balança do banheiro, uma escrivaninha nova, um pijama novo, meias, um chocolate que só vende nas Lojas Americanas, máscaras descartáveis, chapinha para domar o cabelo que não vê uma escova progressiva há três meses, uma agenda nova porque os cachorros comeram um pedaço da que eu tinha, uma dúzia de lápis com grafite 2B porque os que tenho não são suficientemente macios, uma presilha de cabelo para substituir a que foi devorada pelos bichinhos, capinha para proteger o celular novo da mamãe... Fui lotando a folha de papel com a alegria de sentir que, uau, não se trata apenas de uma estratégia psicológica barata!: preencher os pequenos buracos da rotina com produtos novinhos em folha dá realmente um novo ânimo.
Tal qual faz uma ressaca, porém, nem terminei a lista e fui tomada de tristeza. Que boba, eu. A cada dia mais, o novo coronavírus põe um fim precoce à vida de brasileiros que poderiam ser meus irmãos, pais, filhos, tios, primos e amigos – e nem tiveram uma despedida digna. Todos insubstituíveis. O medo pela saúde dos nossos entes queridos, pelos nossos empregos e pelo nosso futuro continua espreitando na esquina.
Se todos os pirassununguenses resolvessem fazer um périplo pelo comércio na segunda, pensei, de nada terá adiantado a quarentena; os casos de covid-19 vão explodir. Meus pais são idosos e não posso ficar dando sopa na rua e contaminá-los. Rasguei a lista. Decidi me ater apenas ao extremamente necesário: a escrivaninha, porque fazia tempo que não trabalhava por um período longo da casa dos meus pais e a minha estava literalmente caindo aos pedaços; o pijama, as meias e dois conjuntos de moletom (nada de blazer fashion); a capinha de celular. Iria me restringir às lojas que ficam no centrinho, a 5 minutos a pé de casa. Em uma hora no comércio poderia resolver tudo.
Chegou a segunda-feira. E eu não tive coragem de sair de casa, apavorada pelo risco de contrair a covid-19 de uma maneira tão banal, tendo feito enorme esforço para me proteger nas semanas anteriores. Continuei trabalhando na mesa de jantar, com dores nos ombros porque é alta demais para eu digitar no notebook. Na terça, idem. Resgatei um pijama rasgado (sim, com mordidas de filhotes de Golden Retriever) que ia jogar fora e voltei a revezar com o outro que tinha trazido. Fiquei em casa na quarta e na quinta. Na sexta, finalmente, criei coragem para sair. Uma horinha só, repetia para mim mesma. Máscara no rosto, um frasco de álcool gel na bolsa, nada de relógio nem brincos, só o cartão de débito e o de crédito. Nota mental: preciso habilitar o celular para fazer pagamentos por aproximação.
Primeira parada, a loja da Hering. Fechada. Na porta, apenas um comunicado expressando o desejo de ver os clientes de novo em breve. Nenhuma previsão de retorno. Alternativa? As Pernambucanas, que ficam bem em frente àquela praça tradicional com coreto que toda cidade interiorana tem. Desde que começou a quarentena, a praça exibe uma faixa: "Cuidado! Zona de risco para o coronavírus!". Me contaram que a Guarda Municipal dispersa os velhinhos que ignoram o alerta e teimam em sentar nos bancos de pedra para jogar conversa fora.
No caminho para as Pernambucanas, o choque: fila de umas 20 pessoas na porta das Lojas Cem – que, em pleno 2020, não tem vendas online. Comecei a perguntar aos clientes – que usavam máscara mas não respeitavam o distanciamento de dois metros – o que faziam ali. Alguns queriam pagar o carnezinho de compras anteriores para não ter o nome negativado, outros esperavam encontrar promoção de um eletrodoméstico desejado há tempos. Depois de falar com três consumidores, fui tomada pelo medo. Estava trabalhando – o jornalismo, minha paixão, é considerado atividade essencial –, mas pensei nos meus pais em casa e sabia que não me perdoaria se os contaminasse.
Corri para as Pernambucanas, coração na boca. Funcionários na porta distribuíam senhas para controlar o número de clientes autorizados a entrar e espirravam álcool gel nas mãos dos consumidores. Fui direto ao setor feminino, escolhi duas calças e duas blusas que pareciam que me serviam. Mexendo nas araras, senti necessidade de passar álcool gel nas mãos duas vezes. Havia dez pessoas na fila para pagar, e por cinco minutos não saí do lugar – demarcado no chão, com distanciamento, como mandam as boas práticas deste novo normal. Fiquei ansiosa com a espera. Qualquer um limpando a garganta ao meu lado me deixava alerta. Desisti de esperar e fui para a loja vizinha, super tradicional da cidade, que existe desde muito antes de eu nascer.
Não tinha pijama nem moletom, só meias. A vendedora me explica que, como não se sabia quando a quarentena ia acabar, a loja cancelou os pedidos de peças da coleção de inverno e o estoque havia acabado. Fui à terceira loja, uma unidade da Caedu, rede bem famosa no interior. Para minha surpresa, a vendedora na porta mediu minha temperatura com um daqueles termômetros infravermelhos, me deu uma senha e espirrou álcool gel nas minhas mãos. Melhor a gente se acostumar, é assim que vai ser agora. O sistema de som avisava que os provadores estavam fechados. No caixa, com os meus moletons escolhidos em três minutos entre uma borrifada de álcool gel e outra, ouvi a atendente do guichê ao lado avisar uma cliente que os potes de plástico tipo Tupperware que ela estava devolvendo seriam separados e colocados em quarentena no fudo da loja antes de voltar para as prateleiras. O novo normal me envolve, me assusta, e as precauções de segurança me deixam tranquila e nervosa ao mesmo tempo.
Álcool gel nas mãos antes de entrar e depois de sair de mais duas lojas que não tinham pijamas para vender. As vendedoras relatam que houve uma corrida por esses conjuntos nos dias anteriores, assim que as lojas reabriram, e esse foi o artigo mais vendido – muita gente resolveu trocar os trajes de dormir para ter o gostinho de estrear uma roupa nova, mesmo que seja só para ir do sofá à cama.
A loja dos chineses que vende capinhas de celular colocou um balcão na porta e só atende os clientes na calçada. Mas os consumidores não respeitam o distanciamento na fila. Enquanto aguardo a minha vez, me pego olhando com raiva para os demais clientes que teimam em ficar muito perto de mim e tenho vontade de gritar para fazerem a sua parte. Vamos todos morrer desse jeito! Já estou no auge da ansiedade. Eu me lembro das crianças chinesas usando chapéus com réguas para garantir que não se aproximem demais umas das outras. Quero um. Será que tem no Alibaba? A essa altura, eu já tinha decidido voltar às compras online. Mesmo que demore muito para os produtos chegar em Pirassununga, tem de tudo ao alcance de um clique! O nervosismo de estar na rua enquanto a covid-19 segue fora de controle venceu. Parabéns para o eficiente comércio eletrônico, que na minha vida e de muitos outros consumidores vai tomar para sempre o lugar das lojas físicas.
Meu último destino é a loja de móveis de madeira maciça. Estava vazia, e em 10 minutos escolhi uma escrivaninha e também uma cômoda para guardar os poucos pertences que trouxe para a casa dos meus pais. Vou remendar meu pijama e comprar os supérfluos pela internet. Com o movimento de reabertura em outras cidades, como a capital, e a possibilidade muito real de aceleração do surto, não sei mais quando voltarei para o meu apartamento. É claríssimo como a vida se transformou.