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Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 03h39.
Pobreza de passar fome não é força de expressão, no relato de vida de Elói D';Ávila, fundador da Flytour. Para fugir das agressões que sofria em casa, quando criança, ele dormiu na rua e dependeu da ajuda de desconhecidos para sobreviver. Dessa situação de miséria, ele transformou-se em fundador de uma das maiores agências de turismo do Brasil, com faturamento de 1,6 bilhão de reais por ano. Ele conta essa história na entrevista a seguir.
- Qual é a origem da sua família?
Sou o 14º filho de uma família de 15 filhos. Sou de Esteio, no Rio Grande do Sul. A minha mãe morreu no 15º filho de parto. Naquele momento, meu pai começou a dividir, a dar os filhos.
- Os seus pais faziam o quê?
Meu pai já era aposentado, trabalhava para o DNER quando levou um tombo do cavalo. Nesse momento, já estava aposentado há uns três anos. Ele vendia gado, dizem que ele trocava boi cego por cavalo sem dente. Ele era uma espécie de um cambista.
- E a sua mãe?
Só cuidava dos filhos. Nenhum dos meus irmãos estudou. Morávamos de favor num sítio fora da cidade e por isso que a ambulância não chegou. Eu tinha 1 ano e nove meses e me lembro do dia por causa do lençol com sangue indo embora com a minha mãe. Fiquei com meu pai até os três anos dormindo na casa de avó, de tia. Todo dia meu pai dormia em algum lugar. A casa do sítio foi desfeita.
- De quem era o sítio?
Eu acho que meu pai cuidava do sítio para uma pessoa. Hoje tem muito disso. Eu acho que meu pai queria que eu ficasse com ele, mas um dia ele me deixou com três anos na casa de uma irmã que havia se casado aos 14 anos. Ela me cortou o cabelo, me deu banho (dizem que eu andava atrás do meu pai todo cagado) e começou a me criar. Como ela havia se casado muito cedo, ela tinha problemas com o marido. O marido dela bebia muito. Aos oito anos, comecei a vender pastéis no período da tarde.
- Onde o senhor estava morando?
Em Porto Alegre. Morei com ela dos três anos aos 8,5 anos. Vender pastéis me despertou um DNA de vendedor, eu gostava de fazer aquele trabalho.
- O senhor vendia pastéis para ajudar na casa?
Isso. A minha irmã trabalhava fazendo pastéis. Ela teve um problema de saúde e não pôde mais trabalhar.
- E o marido dela?
Ele trabalhava na siderúrgica Rio Grandense, que hoje é o grupo Gerdau. Ele chegava às 5, 6 horas da tarde e mandava buscar uma garrafa de pinga para ele, que tomava com laranja espremida. Ele fumava um cigarro chamado Lincoln e às 7 da noite ele já estava muito embalado. Aí ele maltratava a minha irmã, a mim. Éramos só os três em casa, a minha irmã deu o filho antes mesmo de casar porque ele não queria um filho. Aí a minha irmão começou a trazer os irmãos para dentro de casa. Trouxe mais três depois de mim. Só que a situação ficou pior ainda porque ela dividia essa mágoa dela. Foi quando eu fugi de casa pela primeira vez. Meu cunhado chegou em casa e eu sabia que ele ia beber de novo. Ele me deu a garrafa e o dinheiro para pegar pinga, como sempre. Joguei a garrafa fora e fugi com o dinheiro. Fui para o centro de Porto Alegre, só que eu tinha muito medo de ser preso pelo juizado de menores. De certa forma, eu já era um moleque de rua porque ficava a tarde toda vendendo pastéis numa caixa de marmelada, de goiabada. Quando meu cunhado me batia ele usava um rabicho de ferro. Você não é dessa época, mas os ferros elétricos tinham um rabicho que ia nele e na luz. Quando você tirava ele tinha uma cinta. Apanhei muito com essa cinta, eu não era fácil. Eu encarava muito ele. Tomava as dores da minha irmã. Depois de uns dias eu fui preso pelo juizado de menores.
- Nesse meio tempo o senhor morava aonde?
Literalmente na rua. Eu dormia na praça XV, na praça da Alfândega. Vendia o Última Hora (que depois mudou para Zero Hora) e usava o dinheiro para comer. O resto eu dormia no banco da praça. Até que fui preso, mas eu não queria voltar para casa. Por causa disso resolvi mentir meu nome, dei o nome de um comissário de menores. Achei que aquilo era um benefício conforme os moleques da rua me orientaram. Fiquei lá uns três meses até que um dia o meu pai foi lá e gritou meu nome. Olhei para trás e me entreguei. Ele me levou embora para casa. Fiquei uns 3, 4 meses e fugi de novo.
- O seu pai te levou para a casa da sua irmã?
Isso.
- Nessa época o senhor estudou?
Não, nada. Só fiquei na rua. Antes eu estudava num colégio estadual a umas dez quadras da casa da minha irmã. E aí saí e fui de volta para a rua. Não poderia ficar lá porque eu seria preso de novo, voltaria para casa de novo e ia apanhar de novo. O que eu fiz? Fui para São Paulo.
- Como?
Pegando carona. Você pega uma carona na estrada, no posto de gasolina. De Porto Alegre você vai a Feliz, de Feliz a Caxias (onde dormi uns dias num ponto final de ônibus), de lá vim para São Marcos, aí Vacaria, de lá para Lages. E você vai vindo de carona. Parei um pouco numa cidade chamada Mafra, onde fui carregar a prancha de pães até o forno da padaria. Lembro que um dia deixei cair e o padeiro me chamou de boca aberta - gaúcho você não pode chamar de boca aberta, é pior do que corno. O padeiro me bateu, me deu um soco na boca e eu perdi os dentes da frente. De lá eu saí, fui para Curitiba. Lá, engraxei e vendia jornal na praça XV.
- Sempre de carona?
Sempre. E dormia na rua ou nos caminhões que estava de carona. Até que em Curitiba eu trabalhei numa peixaria, fui dormir na casa do chinês. Até que consegui vir para São Paulo.
- Quanto tempo demorou a viagem?
Uns três meses. Em São Paulo fui para a rodoviária, onde sobrevivi vendendo jornais, lavando carro, pedindo coisa.
- E morava aonde?
Quando eu tinha dinheiro ia para o albergue. Praticamente inaugurei os albergues na avenida 23 de maio. Isso me dá muita honra. Aí fui preso pelo juizado de menores aqui em São Paulo. Fiquei uns seis dias lá até que eles me deram uma passagem de ônibus, me colocaram no ônibus e falaram para os dois motoristas: só deixa o menino em Porto Alegre. Quando cheguei lá entrei numa concessionária chamada Panam, falei que era de São Paulo e que tinha ido a Porto Alegre procurar uma tia. Como não tinha encontrado ela, estava sem dinheiro para voltar para casa. Eles fizeram uma vaquinha, me deram o dinheiro e acabei voltando para São Paulo. Eu sabia que era aqui que eu ia vencer.
- Por que São Paulo?
Por medo de voltar para casa e apanhar, a pobreza, já conhecia o mundo por vender pastéis. Já tinha atração por ser alguma coisa. São Paulo era São Paulo. Aqui era a minha vida. E aí fui para a praça da Sé. Lá fiquei uns seis meses. Era uma beleza. Quando você ganhava dinheiro com albergue ia dormir no albergue. Lá, conheci dois amigos: um gaúcho e outro. Um dia estava muito desesperado, sentado num daqueles bancos de ônibus, e um senhor fardado parou do meu lado e me perguntou o que estava acontecendo. Eu disse que não teria onde dormir naquela noite e ele me levou para a casa dele. Ele se chamava Manoel e estava sendo aposentado pela Aeronáutica. Ele tinha três filhas sendo que duas tinham se separado e voltado para casa.
- Onde era a casa dele?
No Parque Rodrigues Alves, no Tucuruvi. A mulher dele era da igreja Adventista e isso me ajudou muito. Fiquei com eles dois anos. Lavei pátio, areei panela, enxuguei, lavei. Era o serviçal deles. Eu cuidava nos netos, do filho temporão que ele teve. Aquilo me deu muito subsídio. Aos 12 anos, fui trabalhar na estação rodoviária numa loja de malas. Era entregador. A estação rodoviária velha era uma loucura. Todos os hotéis dos portugueses ficavam em volta e recebiam gente do Brasil todo que vinha fazer compras em São Paulo. Eles passavam na loja para comprar uma mala e eu as entregava. Até que revi meus dois amigos da Praça da Sé. Um tinha quase 16 anos, o outro tinha 14. E eles me chamaram para ir para o Rio de Janeiro. Disseram que lá as mulheres andam com cachorrinhos pelas ruas e que a gente ia casar com uma mulher rica. O problema é que eu sabia que não poderia ir para o Rio sem documento. Aí eu fui num cartório no Viaduto do Chá que se corresponde com todos os cartório do Brasil. Fiquei quase três meses alucinado esperando minha cópia de certidão de nascimento. Por várias vezes eu fui até o viaduto e pensei em me atirar. Eu não conseguia mais, achava que não ia conseguir sair daquela vida.
- Nessa época o senhor não morava mais com o militar?
Morava. Mas já estava numa situação difícil, ele sabia que eu ia embora. A relação já não era a mesma. E aí eu estava muito apavorado. Eu me lembro que o primeiro Corcel tinha acabado de sair. Pensei em me jogar em cima de um deles. Se não morresse, pelo menos a pessoa ia me sustentar. Resisti tudo aquilo, estava meio amargurado. Era totalmente gago, tinha muito preconceito. Não abria a boca, não tinha os dentes. Servia só para trabalhar na casa de alguém ou vender pastel.
- Na casa o senhor morava num quarto separado?
Não, na casa do irmão menor. Não era uma pessoa rica, mas não me faltava nada. As filhas moravam numa casa no fundo. O seu Manoel era um cara legal, a neta dele trabalha hoje comigo. Quando consegui os documentos fui para o Rio.
- Como foi?
Desci no Rio de Janeiro às seis horas da manhã e desci na praia. Nunca tinha visto praia na minha vida. Dormi na areia até às cinco da tarde. Passei 14 dias num pronto-socorro em Botafogo por causa de queimaduras no corpo todo. Voltei para a pousada onde estávamos hospedados. Lá, meus amigos tinham dito para o dono que eles ainda não tinha pago a conta porque o dono do dinheiro estava no hospital. Quando eu voltasse resolveria tudo. Fugimos à noite pelo telhado e fomos para Copacabana. Não falava com a minha família, meu único mundo eram os dois. Comecei a lavar e guardar carro em frente ao Copacabana Palace. E fui fazendo amizade com os porteiros. Fiquei uns três meses lá.
- O senhor ainda morava na rua?
Quando não tinha dinheiro. Quando conseguia, ficava nessa pensões no Catete, na Tijuca. Até que comecei a dormir numas habitações do hotel que são usadas pelos funcionários que chegam muito cedo ao hotel. Comecei a dormir lá e os funcionários do hotel começaram a me apresentar para os guias turísticos que faziam os grupos. Eu cuidava das vans, dos carros. Até que um desses guias, Paulo Geraldo Silveira Tavares, me apresentou para a dona Stella Barros. E ela me convidou para ser office boy dela. Ela tinha uma agência atrás do Copacabana Palace e outra na cidade. Fui trabalhar na segunda. Uns dias depois, ela descobriu que eu não tinha onde morar. A partir de então comecei a dormir na agência. Por causa disso, em toda Flytour que você for em todo o Brasil tem um sofá de dois lugares. Eu fazia o café da manhã para a dona Stella, fazia a limpeza da agência. Era office boy de luxo, cargo que tenho até hoje. Nunca vou tirar esse cargo. Fiquei lá até os 15 anos. Peguei calo por emitir bilhetes, então eu já sabia emitir bilhetes. Quando tinha 12 anos, a minha irmã tinha ido morar em São Paulo com os seis filhos. Meu cunhado continuava alcoólatra e o meu irmão maior passou a beber também. Comecei a me corresponder com a minha irmã e um dia decidi voltar para São Paulo. Falei com a dona Stella e ela resolveu me ajudar. Arrumou meus dentes, me ensinou a falar, comer, beber. Eu era daqueles que falava "muito mais melhor de bom". Ela me ensinou tudo, era terrível. Eu já estava muito bem quando vim para São Paulo aos 17 anos. Já tinha ido para Porto Alegre umas dez vezes para visitar essa minha irmã. Trabalhei na Stella Barros de quase 13 anos de idade até os 17 anos. Isso foi em 1967.
- O que você fez em São Paulo?
Eu tinha um problema gravíssimo: idade de quartel. Não medi as consequências, queria fazer. Fui morar com a minha irmã no hotel Rodrigues, perto da rodoviária. Acabou o dinheiro e fomos para um cortiço na Barra Funda. Ela começou a trabalhar na Casa da Sopa e arrumei um emprego no Bradesco Turismo. Era uma espécie de atendente emissor, que eles chamavam de escrevente. Até hoje tenho a carteira. O meu cunhado perdia o emprego rapidamente e meu irmão, que era cantor, ganhava um dinheirinho. Meu sobrinho maior está há 32 anos na Flytour. Moramos na Casa Verde alta, na Casa Verde baixa, no Tremembé até que voltamos para a Barra Funda. Até que o desgraçado morreu. Sábado de manhã eu ia na cooperativa com ele. Quando ele acordou, já ficou. Deu um derrame cerebral e ele ficou 19 horas no hospital Santa Cecília. Ele não tinha mudado nada, batia em todo mundo. Era um contador de mão cheia, mas o vício do jogo, do álcool, do cigarro acabou com ele. Minha irmã não gosta muito que eu fale sobre isso, ela tem neto e genro. Hoje ela mora em Joinville, onde mora numa casa que dei para ela. Consegui ajudar os meus irmãos, que moram num imóvel meu. Eu não voltei para a escola, mas falo meu inglês e meu espanhol fluentemente. Eu aprendi tudo na rua. Meus verbos tive que tirar com as pessoas chamando atenção. Não tenho secretária para nada. Faço minha agenda, atendo o telefone e faço meus emails.
- E o exército?
Como bom gaúcho, eu queria ser militar. Eu achava que era a minha decisão maior, eu tive tudo o que você pode imaginar na vida. Fui mordido por dois cachorros loucos, tomei 26 injeções na barriga. Tomei uma vacina de benzetacil vencida numa igreja porque eu não tinha assistência médica. Tive infecção de pé, problema de dente, rim, peronite aguda, colite aguda. Uma vez por ano eu faço quatro, cinco colonoscopias. Trabalho muito com a emoção, às vezes você olha para a minha cara e vê que alguma coisa não está certa. Prefiro ficar em casa. Um bom vendedor te conquista no emocional. O poder do vendedor é te convencer. A minha irmã ficou com as crianças e em três dias fui mandado embora.
- Isso foi antes do Bradesco?
Não, durante o Bradesco. Saí de lá para ir para o quartel, onde trabalhava desde os 17, 18 anos. No terceiro dia de quartel eu fui mandado embora. Eles me deram uma caixa de benzetacil e me mandaram embora. Disseram que eu estava podre, tinha sífilis e não sabia. Me tratei, consegui me salvar, voltei para a casa da minha irmã, voltei para o Bradesco, onde conheci a minha esposa e casei há 35 anos.
- O senhor lembra do primeiro salário no Bradesco?
Era 25, 30 dólares. Era pouco mais de um salário mínimo, bancário só podia trabalhar seis horas. Quando me casei meu salário era de uns 100 dólares. Eu trabalhava seis horas no Bradesco, seis horas na Linhas Aérea Paraguaias e mais três horas na estação rodoviária como fiscal de plataforma. Aí eu pude me casar. Conheci a minha mulher, noivei em três meses e casei. Minha mulher é egípcia, o pai dela veio para o Brasil sem nada também e fugiu de lá para não casar as filhas com os beduínos.
- Em que ano o senhor se casou?
Em 1971. Saí do Bradesco e fui morar em Porto Alegre. Ela foi transferida e eu, numa multinacional. Fiquei três meses e voltei. Perdi tudo: meu carro foi roubado, o carro que eu troquei ficou no sanduíche, mataram meu casal de passarinhos que eu adorava. Meu sogro foi pegar de volta a filha. Ele foi de carro, já era diretor de uma multinacional. O engraçado é que cinco dias antes de casar eu sumi. Disse para a minha mulher que eu não era aquilo que ela imaginava que eu era. Tinha mentido para ela que meu pai era fazendeiro. Ela tinha outro nível, falava seis idiomas. Falei a verdade e fui embora. Ela pegou a minha irmã e foi me buscar em Porto Alegre. Eu me casei, fiquei na Linhas Aéreas Paraguaias um bom tempo. Fui mandado embora de lá quatro vezes. Numa das vezes que fui mandado embora eles me deram a representação da LAP e de um hotel cassino no Paraguai no Brasil.
- E quando o senhor montou a Flytour?
Em 1974. Na última vez que me mandaram embora, abri a Edo representações. Ela representava a LAP no mercado brasileiro, fazia vôo com dois Electra velhos. Saí de lá tinha três Boeing 747 fazendo Madri, Frankfurt, Bruxelas, Miami, Lima, Santiago. Com a falta de dinheiro que a gente tinha, cresci e corri riscos. Depois da LAP veio a LanChile, Iberia, Panam e a Varig. Em 1979 eu representava todas elas. Eu era um agente geral de vendas. Vendia para as agências de viagem, essa era a minha especialidade.
- Mas quando surgiu a Flytour?
Em 1979 o presidente da Embratur era o Colassuano. Ele determinou que a partir daquele momento nenhuma empresa de representação no ramo do turismo não pode deixar de ter a Embratur. Foi quando surgiu a Flytour. O meu sonho era ter uma empresa charteira. Hoje, chego a lotar 25 000 aviões por ano, não preciso ter uma companhia aérea. Eu quero prestar serviço para o meu cliente. E aí eu comecei a trabalhar com essas companhias aéreas e aí 2 000 agências eram nossas clientes. Eu emitia os bilhetes dessas agências, dessas companhias. Éramos o agente geral dessas companhias. Em 1989, começou a entrar no meu ramo muitos maus empresários. Tinha um giro de dinheiro muito grande, mas eram pessoas desonestas. Eles davam 3% do faturamento para os meus clientes. Se ganho isso como posso dar 3%? Aí eu quase quebrei, porque para não perdê-los eu tive que dar 1,5%. Eu já era o primeiro do Brasil, desde 1984 sou o primeiro nesta área. Em 1996, nos tornamos o maior emissor de bilhetes da América Latina. Por causa desses caras eu perdi quase três milhões de dólares.
- Quando o senhor fez o seu primeiro milhão de dólares?
Acho que foi em meados dos anos 80. Sempre tive que ter imóveis como garantia. As companhias aéreas trocam de diretores todos os meses. E o que você tem que provar quando isso acontece? Primeira coisa, que você é honesto. Como se honestidade você não nascesse. Segundo: que você tem patrimônio, tem uma empresa. Sempre tive que ter patrimônio para dar de garantia para as companhias aéreas. Fiquei dois anos sem atender a Alitalia porque um italiano queria vender para o Amex. Naquele dia vendi todos os meus apartamentos para um empresário, ele me emprestou um dinheiro e deixei uma sede da empresa como garantia. Foi aí que abri a Flytour viagens e turismo para atender os clientes em geral. Hoje estou na metade do meu caminho. Metade do meu negócio é com agências de viagens e metade atendendo empresas. Atendo a Abril, a Avon, a Natura.
- Esse é a maior parte do seu negócio?
Não. A maior parte do negócio ainda é a agência de viagem. Tenho 160 agências chamadas Flytour. Dentro de empresa e fora. São 58 escritórios e o resto dentro das empresas. Minha maior conta é a Braskem. Hoje comecei a atender o BNDES.
- Hoje quanto a empresa fatura?
1,6 bilhão de reais.
- E quantos funcionários?
1350. Todos de carteira assinada. Não tenho caixa dois para nada.
- Você tem familiares trabalhando na empresa?
Tenho quatro. A irmã da minha mulher, que é minha vice-presidente financeira. Meu filho Cris, que é meu assessor. Ele ainda tem uma boa pousada em Itacaré. Meu filho Fábio, que é diretor da minha empresa de pacote, que é nova e representa 1% do meu negócio. Tenho um filho de 34 anos que está na Gol como comandante de 737-700 e 800 e foi comandante da Vasp por oito anos. Todos eles moraram nos Estados Unidos.
- Hoje o senhor mora aonde?
No Paraíso. Levo uma vida simples. Para você ter uma idéia, estou trocando um apartamento de quatro dormitórios por um de dois dormitórios. Se eu pudesse, moraria num flat. Eu gosto de levar uma vida simples. Meu único luxo são carros e moto. Tenho uma Discovery e uma Harley Davidson. Mas fazenda, carro, boi... isso eu detesto.
- O senhor passou muita necessidade?
Muito. Passei muita fome.
- Pensou em roubar, praticar crimes?
Deixa eu explicar uma coisa que é muito importante. Quando você está na rua, dormindo em praça, você pega a pivetada toda. A coisa boa da minha história na rua é que eu já tinha vendido pastéis. Eu vendi porta vaso, peixe, pastel, jornal, carnê do Silvio Santos, Páginas Amarelas. Fiz de tudo na vida. No momento em que vendi pastéis, que fui parar na família, que comecei a frequentar a igreja adventista, eu fui assistido. Se você casar com uma mulher viciada, é mais fácil você virar um viciado. A igreja me fez muito bem. Hoje sou casório, sou Santa de Virgens total. Todo dia 16 vou com um amigo chamado Ademar para a Cidade das Almas, vou lá e fico em pé. Não sento.
- Em algum momento o senhor achou que seria dono de uma empresa que fatura 1,6 bilhão de reais?
Sei que não sou egoísta ou ganancioso. Sou um cara de fazer, gosto de realizar. O mais importante é terminar e recomeçar. O que mais vendo aqui é o recomeço. Todo dia eu tive que recomeçar na minha vida. Nunca me vi como um cara de poder, mas sim como um cara de fazer. Recomeçar é isso: ter a visão no dia anterior. Eu tinha só um desafio de vencer, e não uma sede de poder. Sempre me apresento como office boy de luxo.
- Quanto senhor ganha hoje?
Vinte mil reais por mês. Se precisar, faço uma retirada sob participação de lucro. Retiro meus vales. Acho fundamental que eu nunca tive aquela coisa de matar para conseguir. Se levantar os anos que fui preso, vai ver que fui preso por estar na rua. É fundamental na minha área ter simplicidade, transparência, humildade. Sou mais de fazer.
- Essa é a sua característica principal?
A minha característica principal chama porta aberta. A porta abre e eu vou lá e abre. Se um dia eu percebia que uma porta tinha se aberto, eu ia lá e fazia. Não importava se eu ia ganhar ou perder. Eu queria fazer, sempre quis fazer. Ainda quero fazer. Costumo dizer que ainda não fiz nada. Acho que vou começar aos 68 anos.
- O senhor acredita que teria chegado onde está se tivesse nascido num país que não o Brasil?
Eu acho que sim. Acho que se as crianças tivessem oportunidades desde o início elas venceriam. Sou contra a mordomia das crianças, com motoristas, empregadas domésticas. Não entendo muito. Quanto mais a criança puder produzir e estudar... Se o Brasil tivesse dado 10% do seu PIB para a educação, seria o quinto maior país do mundo. Acredito muito na educação. Acredito em educação e no treinamento. É a prática e a teoria. Sou favorável pela escola de oito horas, de a pessoa que fizesse universidade não pagasse imposto. Acho um absurdo pagar universidade e imposto de renda.
- Se o senhor tivesse nascido nos Estados Unidos e tivesse morado nas ruas do país, teria uma empresa que fatura mais de um bilhão de reais?
Acho que não. Acho que o Brasil é um país de oportunidades. Aqui eu posso vender uma geladeira. Lá preciso convencer uma pessoa a trocar uma geladeira. Gosto muito do novo, gosto de descobrir o novo. O meu hobby é tecnologia. Gosto de vender, de convencer as pessoas. Pelas vezes que vou lá fora vejo que a única vantagem competitiva de países desenvolvidos é o financiamento. É o caso da Austrália: é o Brasil que já deu certo.