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Na China, a guerra da cerveja artesanal está declarada

Para conquistar terreno no mercado cervejeiro que mais cresce no mundo, vale até contratar consumidores para tomar cerveja

Taps. em Shezen: é um dos bares pioneiros na fabricação de cerveja na China, com 46 torneiras de chope (Lucas Amorim/Exame)

Taps. em Shezen: é um dos bares pioneiros na fabricação de cerveja na China, com 46 torneiras de chope (Lucas Amorim/Exame)

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Da Redação

Publicado em 28 de julho de 2017 às 12h38.

Última atualização em 31 de julho de 2017 às 13h25.

São seis da tarde de uma quinta-feira de primavera em Pequim e, enquanto espero pelo começo de um bate-papo sobre cerveja, peço uma garrafa de Green King, uma ale inglesa que, por algum motivo, é onipresente nos bares chineses. Amarga mas pouco alcóolica (3,5%), é ideal para os 30 graus que fazem do lado de dentro do Ace Cafe, um lugar frequentado por motoqueiros no distrito artístico da cidade. Quando Jennytha Raj e seu sócio, Galen Liu, donos do clube de cervejas Drinking Buddies (Piyouhui, em mandarim), chegam, dizem de bate-pronto: “você está tomando a cerveja do presidente!”.

O motivo do sucesso da Green King, vou descobrir, é obra do acaso. Em outubro de 2015, o presidente chinês Xi Jinping visitou o primeiro ministro britânico David Cameron e, num evento pra lá de incomum, os dois foram tomar uma cerveja num pub londrino. Xi queria passar a imagem de um cidadão como eu e você para dentro e para fora da China.

De uma hora para outra, a Green King passou a ser a cerveja mais procurada da China. Bares imprimiram cartazes com a foto do presidente para atrair mais clientes. O principal importador da marca para o país multiplicou os pedidos de 6.000 para 80.000 garrafas mensais. Desde então, a febre pela Green King deu uma arrefecida, mas o mercado cervejeiro chinês nunca mais foi o mesmo. Chega a ser irônico que na China até as ondas consumo são ditadas pelo partido comunista. Desde 2015, a China vive uma explosão de cervejas artesanais e importadas.

“A principal causa para o aumento de popularidade das cervejas artesanais é o aumento de poder de compra da classe média. Vinho e destilados ainda são restritos, mas a cerveja é vista como um luxo acessível”, diz Xenon Yuan, porta-voz do NBeerPub, um dos bares da moda em Pequim.

É a repetição de um fenômeno que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa nos anos 90, e no Brasil há uns 10 anos. Mas na China o crescimento do mercado tem uma pimenta a mais. Depois de perder o boom de cervejas artesanais nos Estados Unidos, e de chegar atrasada no Brasil, a ABInBev, controlada pelo fundo brasileiro 3G, decidiu que não vai ficar para trás na China de jeito nenhum.

Resultado: a China virou palco para uma ferrenha disputa entre cervejarias locais e a maior fabricante mundial da bebida. “Os chineses bebem muita cerveja, mas não estavam acostumados a boas cervejas. Agora isso está mudando, e todo mundo quer ser o primeiro a conquistar esse terreno”, diz Jennytha, da Drinking Buddies. Seu negócio é importar cervejas de pequenos produtores da Europa e dos Estados Unidos e enviá-las para a casa de clientes chineses, um dos novos nichos de um mercado cada vez mais sofisticado.

 Kirsty Wigglesworth - WPA Pool/Getty Images
XI JINPING E DAVID CAMERON NUM PUB INGLÊS: depois desse copo, o mercado de cervejas chinês nunca mais foi o mesmo

Assim como mundo afora, as grandes cervejarias locais foram criadas na virada do século 19 para o 20, por imigrantes alemães e ingleses. O mercado é há décadas dominado por marcas como Tsingtao e Snow e nos últimos anos vive um crescimento impressionante. A cerveja é a segunda bebida mais consumida no país, atrás apenas do chá. As vendas dobraram desde 2008, chegando a 80 bilhões de dólares em 2016, o que já é um quarto do mercado mundial. Não existem dados sobre a participação das cervejas artesanais, mas analistas dizem que dificilmente passe de 0,1%. O que interessa, evidentemente, é o potencial de crescimento. No Brasil, as artesanais representam 0,7% do mercado, segundo o Instituto da Cerveja; nos Estados Unidos, a fatia já é superior a 10%.

Nos bairros boêmios de Pequim existem tantas opções de cervejas especiais quanto em Londres, Nova York ou Munique. Já há pelo menos uma dúzia de cervejarias artesanais chinesas de sucesso em cidades como Pequim, Xangai, Nanjing e Shenzhen com nomes como Boxing Cat, Great Leap, Bionic Brew, Slow Boat. A maioria é encontrada apenas em bares especializados, já que nas grandes redes de supermercado é difícil até mesmo encontrar cervejas europeias de massa. Boa parte de seus fundadores são estrangeiros que viram na carência de boas (e caras) cervejas artesanais uma grande oportunidade.

É o caso, por exemplo, do Taps, um bar que fabrica sua própria cerveja em Shenzhen, no sul do país. Aberto há um ano pelo canadense Daniel Dunbrill no distrito de Futian, perto das maiores empresas de tecnologia do país, o Taps atrai jovens executivos e turistas que topam pagar 5 dólares por um dos 46 tipos de cerveja fabricadas ali mesmo. As cervejas seguem estilos consagrados – pale ale, lager, ipa, weiss – mas trazem explicações detalhadas no cardápio sobre como gostos, aromas e armonizações. A Drinking Buddies, também entrega, junto com suas cervejas, livretos de explicação detalhados, em inglês e mandarim. “É preciso adaptar a linguagem ao costume local, falar que o gosto remete, por exemplo, a pitaia, que harmoniza bem com noodles”, diz Jennytha.

Ataque e contraataque

Enquanto os empreendedores chineses ainda tentam encontrar seu caminho, o mercado local foi alvo de uma invasão da ABInBev. O ganso símbolo da Goose Island, cervejaria de Chicago comprada em 2011 pela multinacional, é figurinha fácil nas grandes cidades. A ABInBev corre para chegar na frente das micro-cervejarias locais, mas também para conquistar terreno antes de sua principal competidora global, a Heineken. Para isso, a companhia paga pela exclusividade de bares e instala equipamentos de chope de graça, numa estratégia que já foi contestada legalmente em outros mercados. Mas, na China, a regulação é mais permissiva.

A empresa chega até mesmo a contratar consumidores de cerveja para encherem os bares patrocinados e, assim, inflar artificialmente a demanda por suas cervejas. Dinheiro, aparentemente, não é problema, já que o lucro operacional da empresa na Ásia chegou a 16, bilhão de dólares em 2016. Segundo a empresa de pesquisas Euromonitor, sua participação de mercado na China passou de 11,7% em 2011 para 15,7% em 2015.

Em março, a disputa entre a ABInBev e as cervejarias locais subiu de tom. A multinacional comprou a Boxing Cat, de Xangai, única fabricante chinesa a ganhar uma medalha de ouro em competição internacional. Na sequência, tentou comprar mais duas companhias locais, a Great Leap e a Slow Boat, mas elas não só negaram a oferta como publicaram manifestos raivosos na internet. O americano Carl Setzer, fundador da Great Leap, contou até que teria dificuldades em manter a amizade com Lee Tseng, criador da Boxing Cat, “depois de ele vender para um gigante que está ativamente tentando destruir meu mundo inteiro”. “Você pode imaginar, porque certamente é verdade, que a ABI tem um manual em um escritório em algum lugar do Brasil sobre ‘como manipular a cerveja artesanal utilizando a única coisa que a faz especial, sua comunidade’”.

Nos Estados Unidos, e no Brasil, a ABInBev também encarou a ira dos amantes da cerveja artesanal quando começou a investir sobre alguns de seus ícones. Recebeu muitos “não” até que comprou marcas como a Colorado, de Ribeirão Preto, e a Walls, de Belo Horizonte. Xenon Yuan acredita que o mesmo pode acontecer com os irados empreendedores da Boxing Cat e Slow Boat: “quem sabe o que pode acontecer no dia em que o cheque for grande demais…”. Até lá, o mercado chinês de cervejas continuará pegando fogo.

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