Goldman Sachs é o vilão da vez
O mítico banco Goldman Sachs se transformou em tudo o que a maioria dos americanos passou a odiar após a crise - tem lucros recordes, distribui bônus bilionários e, agora, é investigado por fraude
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.
A vida de um mito tem lá seus percalços. Dos grandes vencedores esperamos nada menos que a perfeição - e, secretamente, sentimos aquela irresistível tentação de torcer por uma estrondosa derrocada. A atual temporada da Fórmula 1 não teria metade da graça se não contasse com o pífio retorno do heptacampeão Michael Schumacher. O maior vencedor de todos os tempos está num modestíssimo décimo lugar na competição, é alvo de ultrapassagens de novatos e arrisca virar motivo de piada. Feitas as ressalvas óbvias, assiste-se a uma cena parecida no mercado financeiro. O americano Goldman Sachs - que durante boa parte de seus 141 anos de história foi o banco de investimento mais bem-sucedido e invejado de Wall Street - está no centro de uma investigação potencialmente devastadora das autoridades americanas. Acusado de fraudar investimentos ligados a hipotecas, o Goldman terá seus números e documentos examinados em detalhes pela Securities and Exchange Comission, a CVM americana. O golpe na imagem, porém, já ocorreu. O banco que emergiu da crise de 2008 como um dos menos prejudicados pelo caos financeiro está sendo visto agora como o responsável por causar prejuízos vultosos a outros investidores e instituições financeiras - bancos alemães e ingleses já ameaçaram colocar sob investigação os negócios que fizeram com o Goldman. Como escreveu Paul Krugman, ganhador do prêmio Nobel de Economia de 2008, em sua coluna no jornal americano The New York Times, transações como as do Goldman "contribuíram para inflar a bolha imobiliária com a criação de ativos fadados a se tornar lixo tóxico". Num artigo ácido, Krugman chama os executivos do Goldman de "saqueadores sofisticados em mocassins Gucci".
O vilão da vez de Wall Street não está na mira das autoridades por precisar dos recursos dos cofres públicos para estancar perdas bilionárias, como ocorreu com dezenas de instituições financeiras americanas e europeias entre 2008 e 2009. O que chamou a atenção foi justamente o contrário: os altíssimos lucros registrados pelo Goldman enquanto seus concorrentes afundavam. Em dezembro, pouco mais de um ano depois da traumática quebra do banco Lehman Brothers, o Goldman informou um resultado recorde de 12,2 bilhões de dólares. Boa parte dos ganhos se deveu a operações bemsucedidas feitas no combalido mercado de hipotecas, e hoje a SEC acredita que o sucesso não se deve à reconhecida competência dos executivos do banco, mas a um esquema obscuro de estruturação de títulos imobiliários. Segundo os investigadores, os investimentos eram desenhados para que o Goldman e um grande investidor, John Paulson, do fundo de hedge Paulson & Co., ganhassem dinheiro à custa de perdas de seus próprios clientes. (Paulson, vale lembrar, embolsou no início de 2008 o maior bônus já pago a um profissional de Wall Street, 3,5 bilhões de dólares.) Segundo a SEC, o Goldman omitiu informações cruciais sobre os problemáticos títulos de hipotecas que vendia a alguns de seus clientes - ao mesmo tempo, aplicou recursos próprios apostando na falência do mercado imobiliário americano.
O Goldman nega as acusações. Num comunicado, o presidente Lloyd Blankfein afirma que as alegações são "completamente infundadas na lei ou nos fatos" e promete "contestar vigorosamente cada acusação e defender a reputação do banco". Há quem diga que a investigação contra o banco esconde interesses políticos, porque ocorre num momento crucial na agenda de Washington. Uma das grandes promessas de campanha do presidente Barack Obama foi endurecer a regulação do setor financeiro - e oposicionistas sustentam que a Casa Branca está se aproveitando da situação para pressionar o Congresso a aprovar um projeto sobre o tema. "Há uma guerra de informações, o que só mostra que levará um tempo até que se entenda o que realmente está acontecendo", diz Eduardo Gomide, diretor financeiro para América Latina e Caribe da Kroll, especialista em fraudes financeiras.
Um exemplo dessa guerra de informações foi a divulgação de e-mails internos do Goldman na última semana de abril. A primeira leva, tornada pública por congressistas americanos no dia 24, traz mensagens de executivos do banco dizendo que estavam ganhando "dinheiro grosso" à medida que o mercado de hipotecas derretia. Há até uma troca bizarra de e-mails entre Fabrice Tourre, um operador do Goldman que está no centro das investigações, e sua namorada - num deles, claramente debochado, Tourre diz que, numa viagem à Bélgica, "conseguiu vender títulos a viúvas e órfãos que encontrou no aeroporto". O Goldman contra-atacou no dia seguinte e divulgou mensagens dizendo que só estava sendo agres sivo ao fazer negócios - algo que o banco sempre fez. Numa delas, David Viniar, vice-presidente financeiro, diz: "Vamos ser agressivos ao vender títulos porque haverá boas oportunidades com o mercado ficando mais arriscado".
Longe de ser um problema, ser ousado sempre foi algo muito bem visto no meio dos bancos de investimento - e era ainda mais valorizado no Goldman Sachs. Depois de quase quebrar durante a crise de 1929, o banco se reer gueu e se transformou num dos mais arrojados do mercado mundial. Em vez de apenas assessorar ofertas de ações e fusões e aquisições, como faziam seus concorrentes, a instituição passou a tomar dinheiro emprestado e a colocar o próprio capital em investimentos sofisticados e na compra de empresas. Os riscos eram altos e, por isso, o banco precisava dos melhores profissionais. Por essa razão, ao longo de décadas, o Goldman foi reconhecido como um dos grandes formadores de talentos de Wall Street. Dois ex-presidentes do banco, Henry Paulson e Robert Rubin, foram secretários do Tesouro americano. A boa fama atraiu Warren Buffett, um dos investidores mais sagazes do mundo. Conhecido por analisar criteriosamente as empresas em que investe, Buffett aplicou 5 bilhões de dólares no Goldman no final de 2008 - e, recentemente, um diretor de sua firma de investimentos, a Berkshire Hathaway, declarou que o bilionário ainda "tem grande confiança" no banco.
Pode ser, mas o fato é que Buffett perdeu alguns milhões de dólares com a queda de 17% das ações do banco no fim de abril - e é possível que os papéis desvalorizem mais à medida que surjam mais dados sobre a investigação (estavam previstos para o dia 27, depois do fechamento desta edição, depoimentos de executivos do Goldman no Senado, que seriam acompanhados pelos investidores). Os danos à imagem do Goldman são inegáveis, mas é bom lembrar que o mercado financeiro é conhecido por seu pragmatismo. A má vontade contra qualquer um costuma durar somente até o ponto em que ele volte a dar lucro - e ninguém no mercado perde muito tempo com dilemas éticos. O próprio Goldman foi ao fundo do poço na mais grave crise financeira americana - na Depressão de 1929, suas ações despencaram 99% - e se recuperou. Não pega bem, claro, o rumor de que o banco atuou para prejudicar os próprios clientes. Mas talvez seja cedo para que os torcedores de plantão festejem a queda do maior mito de Wall Street.