A Ford quer ser cool
Um programa que transforma o carro num computador operado por voz - é assim o charmoso acessório que está ajudando a Ford, a mais antiga montadora americana, a lucrar de novo
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
O carro reconhece o dono de longe. Ok, talvez não o dono em si, mas o bluetooth de seu celular. Quando o motorista abre a porta, já foram carregadas todas as suas configurações para o carro: rádio favorita - AM, FM ou online -, temperatura do ar-condicionado, display nos painéis. Caso algo não esteja de seu agrado, basta dizer em alto e bom som o que deve ser mudado e pronto, o carro entende o recado e faz o ajuste sozinho. Precisando usar qualquer função de seu smartphone, também não é necessário tirar as mãos do volante: ele simplesmente obedece aos comandos por voz. Os automóveis, definitivamente, estão muito diferentes do velho Modelo T, criado por Henry Ford. Aparentemente, só a essência do produto continua a mesma. Inovações nunca foram tão necessárias à indústria automobilística, um setor da economia especialmente machucado pela crise financeira e pelos clamores ambientais. E, na indústria, poucas montadoras foram tão afetadas quanto as americanas GM e Ford. A grande diferença entre elas está nos detalhes descritos anteriormente. A Ford escolheu a inovação tecnológica como um caminho para superar a crise.
Uma manifestação dessa estratégia é o Ford Sync, um charmoso acessório que vem ajudando na surpreendente recuperação da montadora. A Ford anunciou no fim de abril um lucro trimestral de 2,1 bilhões de dólares, o maior desde 2004 - no mercado americano, o maior desde 1977. A crise do subprime foi ruim para todo mundo, mas foi particularmente cruel com a indústria automobilística americana. Se em 2006 foram vendidos 17 milhões de carros nos Estados Unidos, apenas 10,3 milhões de veículos deixaram as concessionárias no ano passado, mesmo com todos os incentivos governamentais. Nesse meiotempo, duas gigantes do setor, a GM e a Chrysler, precisaram ser socorridas pelo governo para não fechar as portas. A duras penas, a Ford conseguiu amealhar empréstimos no montante de 23,5 bilhões de dólares em bancos privados e se manteve de pé sozinha. A bancarrota de seus dois principais vizinhos de Detroit e os problemas que a Toyota enfrentou com um recall de 9 milhões de carros pelo mundo ajudaram. Mas o fato é que Alan Mulally, presidente mundial da Ford, conseguiu melhorar a imagem da empresa, que ganhou uma cara mais moderna. Mulally, um forasteiro vindo da Boeing, vendeu ou enterrou boa parte dos 97 modelos de carro da montadora, concentrando os esforços em apenas 20. Com isso, conseguiu - pelo menos momentaneamente - afastar a ideia de que os carros japoneses são sempre superiores e enfileirou prêmios de "melhor carro do ano" de revistas especializadas. O novo presidente também apostou o futuro da empresa na alta tecnologia, elegendo o Ford Sync como símbolo máximo da nova filosofia. "Ter um Ford voltou a ser cool. Eles conseguiram se vender como uma empresa de tecnologia de ponta", diz David Zoia, analista da consultoria inglesa do setor automotivo Ward's.
O Ford Sync é mais do que cool. De acordo com uma pesquisa realizada anualmente pela consultoria de marketing Millward Brown, o valor da marca Ford cresceu 19% só no último ano, chegando a 7 bilhões de dólares - e o aparelhinho, lançado nos modelos 2008, parece ter ajudado muito. "Nossos estudos mostram que o investimento em tecnologias que melhoram a vida do consumidor é o que mais dá retorno", disse Peter Walshe, diretor de marcas da consultoria, no anúncio dos resultados da pesquisa. Presente hoje apenas nos mercados do México, dos Estados Unidos e do Canadá, o Ford Sync já atingiu a marca de 2 milhões de unidades vendidas apenas dez meses depois de ter chegado a 1 milhão - o dobro das vendas de carros sem o acessório no mesmo período. "A grande vantagem do Ford Sync é que ele agrega valor ao carro sem aumentar muito o custo, o que eleva a lucratividade - tanto na venda quanto na revenda", diz John Wolkonowicz, analista da consultoria americana IHS Global Insight, especializada em mercado automotivo. Nos Estados Unidos, o acessório custa 400 dólares ao consumidor.
Não é só por ser um aparelho de alta tecnologia que Mulally aposta no Sync como símbolo do futuro da Ford. Ele representa uma mudança drástica na antiga filosofia da empresa. Fazia anos que a Ford tentava, em vão, superar o mecanismo de telefone e modem automotivo da GM, o OnStar, uma versão muito mais rudimentar do Sync que permitia ao motorista falar ao telefone sem tirar as mãos do volante. O aparelho rendeu muito dinheiro ao concorrente desde 1996 graças a um modelo de negócios que incluía a venda do OnStar, a assinatura do serviço e ainda a receita das ligações e do uso da internet. A Ford já estava em sua terceira tentativa de contra-ataque, com um programa para celular chamado Wingcast, quando se deu conta de qual era o calcanhar de aquiles do rival - e também o seu: mal saía da fábrica, o aparelho já estava obsoleto. Para não cair na mesma armadilha, a única saída seria desenvolver um "telemático" (nome genérico do acessório) em uma plataforma aberta, que pudesse ser atualizada pelos consumidores. Em 2005, um encontro entre os dois Bills (o Ford, presidente do conselho da montadora, e o Gates, fundador da Microsoft) selou o novo paradigma para a Ford. Foi decidido que a plataforma do Sync seria o Windows CE - dominada por 8 milhões de desenvolvedores e 400 000 empresas. Ainda neste ano, todos eles poderão criar programas para rodar no aparelho. "O impacto na empresa foi enorme, pois não precisamos mais nos preocupar em manter o Sync atualizado. Os consumidores e as empresas parceiras estão felizes em fazer isso pela gente, de forma mais barata e muito mais eficiente", diz Jim Buczkowski, diretor global de sistemas elétricos da Ford. É a internet 2.0 finalmente chegando aos carros. Henry Ford se espantaria.