De café de açaí ao couro de peixe: os negócios que nascem a partir de resíduos que iriam para o lixo
Novo, o ecossistema amapaense cresce também com a criação de startups que apostam da reutilização de resíduos
Repórter de Negócios
Publicado em 2 de março de 2024 às 10h00.
Última atualização em 4 de março de 2024 às 10h23.
Com pouco mais de 100 startups, o ecossistema de inovação do Amapá, na região Norte do país, reúne uma série de iniciativas não tão comuns para quem circula pela Faria Lima, em São Paulo.
No estado, os modelos de negócio transitam entre tecnologia pura, caso da Tributei, de gestão de ICMS, e de bioeconomia, transformando elementos da região em negócios. Mas cresce também uma outra vertente, com a reutilização de produtos que iriam para o lixo.
Presente no Startup20, agenda dedicada aos negócios da inovação do G20, o grupo das maiores economias do planeta, a EXAME conheceu alguns dos projetos que nascem no estado e têm atraído atenção nacional - e também internacional.
Mazodan - os rejeitos que viram argamassa
A startup, do município de Santana, usa rejeitos de mineração e sedimentos minerais que provocam assoreamento de rios para criar produtos, como uma argamassa colante, para a construção civil. No ano passado, foi a vencedora do Desafio da Expo Favela, organizado pela Cufa (Central Únicas das Favelas).
O negócio foi criado por Michael Carvalho, engenheiro de produção que queria desenvolver novos materiais para a construção civil. Quando se deparou dificuldades para encontrar matérias-primas com custo acessível nos outros estados, descobriu recursos que estavam no ‘próprio quintal de casa’.
Com sedimentos do Rio Amazonas e outros minerais, a Mazodan criou um compósito, definição para materiais formados pela combinação de outros recursos, e desenvolveu o seu primeiro produto.
“Nós chegamos a um composto de materiais para dar o mesmo resultado e até uma qualidade de liga superior em relação aos materiais convencionais e usados atualmente”, afirma Carvalho, CEO da Mazodan. Segundo os números da startup, cada três quilos de argamassa equivale a 60 kg do produto convencional.
A argamassa ainda está em fase de certificação. O caso de uso é a construção do próprio escritório da startup, feito com a utilização do material.
“Imagina que numa grande obra, 1.000 quilos do meu produto irão substituir 20 toneladas. Isso tem um ganho não só na economia, que chega a 30%, como também no próprio peso estrutural da obra e no trabalho ergonômico do profissional”, diz.
A previsão, de acordo com o fundador, é que em até 8 meses, a argamassa tenha o aval para entrar no mercado.
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Outra possibilidade para antecipar as vendas é oferecer a argamassa em versão beta, aproveitando a oportunidade criada pelo Marco Legal das Startups, lei que flexibiliza e permite algumas movimentações enquanto o martelo final não chega.
“Hoje, nós já temos empresas no Brasil e de fora querendo comprar e comercializar o nosso material. Além disso, temos interessados em fazer aporte financeiro para que chegamos mais rápido no mercado”, afirma o fundador.
Engenho - o café de açaí que vira bebida pronta nos Estados Unidos
Conhecido no Brasil e no mundo, o açaí rende muita conversa e polêmica sobre o modo de consumo. Mas o que chamou a atenção do casal Lázaro e Valda Gonçalves foi o desperdício. A polpa, usada para cremes, sorvetes e afins, responde por apenas 20% do fruto. Ou seja, 80% acabam indo para o lixo.
A dupla é fundadora da Engenho, uma startup criada em 2020 que usa o caroço do fruto para transformá-lo em “café”. A empresa fechou acordo com uma grande cooperativa de açaí do estado e processa esse caroço cujo destinação poderia ser danosa ao meio ambiente.
Como outras polêmicas com o açaí, o produto é um café, pero no mucho. O aroma é muito semelhante, por causa da torra, mas fica mais próximo a um chá. “Nem na Anvisa nem no Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária) existe uma regulamentação sobre porque é tudo novo”, afirma Lázaro.
O produto rendeu R$ 250.000 em 2023, crescimento de 187% em relação a 2022. A previsão é de que fique entre R$ 600.000 e 1.000.000 em 2024. A variação, larga, tem um motivo: a exportação para os Estados Unidos.
A Engenho tem um acordo com uma companhia americana para enviar 2,5 toneladas para o país da América do Norte. O café será usado em uma bebida pronta gelada, em vias de ser lançada. “Nós podemos exportar até 30 toneladas”, afirma Lázaro.
Com capacidade produtiva de 4 milhões por mês, a Engenho tem observado algumas estratégias para enfrentar o gargalo logístico do estado e circular por outros mercados. O Amapá não tem rodovia federal, com trânsito de pessoas e mercados restrito às vias fluviais ou aéreas.
“O nosso plano é abrir um centro de distribuição em Brasília ou São Paulo para expandir o negócio. Seria o ideal”, diz o fundador.
Yara Couro - estilo em escamas e carro elétrico
O Amapá é o lar de mais de 500 espécies de peixe e um ambiente em que a indústria pesqueira movimenta números importantes na economia. Para trás, no entanto, ficam muitos resíduos do pescado.
No modelo da Yara Couro, o resíduo vira matéria-prima para a criação de couro, a partir da pele do peixe. Criada em 2022, a startup conseguiu R$ 2 milhões em 2023 em edital da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus) para desenvolver um curtume, espaço para o processamento de couro cru, e testar o produto em escala.
“Isso vai nos levar para o próximo passo. Vamos sair dessa fase de teste, ampliar a nossa visão de produto e buscar certificações”, afirma Bruna Freitas, cofundadora e CEO. Os recursos devem entrar nos próximos meses.
Publicitária, ela criou a Yara com a Stefane Correa, CTO e engenheira de pesca, e Camila Nascimento, COO, e Frank Portela, CMO e empreendedor em outros negócios no estado.
Para chegar ao produto mais natural possível, a startup tem desenvolvido técnicas de curtimento com taninos vegetais, de espécies de árvores da própria amazônia. “Nós temos que buscar o equilíbrio entre o mais natural e menos poluente e uma pele de qualidade”, afirma Stefane, também doutora em zootecnia e especialista em reaproveitamento de pescado.
O quarteto vislumbra que o couro de peixe pode ter o mesmo mercado que o couro bovino. O modelo é ir além do artesanal, de bolsas e acessórios, e entrar nos mercados de moda e ainda no automotivo, conectando o produto ao apelo dos carros elétricos.
“Nós temos visto uma corrida por carros mais elétricos, transição energética e mesmo de combustíveis. Por que não trabalhar os componentes desse carro de uma forma mais sustentável?”, diz Freitas.
* O jornalista viajou ao Amapá a convite da Abstartups (Associação Brasileira de Startups)