Negócios

Caneta de adrenalina: lucro tem dose certa?

Medicamento contém hormônio usado para combater os efeitos de um choque anafilático resultante de alergia a algum alimento ou picada de inseto

EpiPen: caneta é usada para injetar epinefrina (também conhecida como adrenalina).

EpiPen: caneta é usada para injetar epinefrina (também conhecida como adrenalina).

Da Redação
Da Redação

Redação Exame

Publicado em 25 de agosto de 2016 às 12h24.

Última atualização em 28 de janeiro de 2024 às 21h16.

Por David Cohen

“Esses caras são uns abutres. Onde está a bússola moral dessa companhia?” Quando um laboratório farmacêutico recebe esse tipo de comentário de alguém como Martin Shkreli é porque pisou na bola de forma extraordinária.

Para quem não lembra, Shkreli era o CEO da farmacêutica Turing que se tornou o executivo mais odiado dos Estados Unidos no ano passado, depois que comprou os direitos de um remédio para malária e Aids, o Daraprim, e elevou seu preço em mais de 5.000%, de 13,50 para 750 dólares. (Ele perdeu o cargo e está sendo processado por fraude em atividades anteriores, mas o preço da droga não foi reduzido.)

Quem seriam, então, os “abutres” a que Shkreli se referiu, em entrevista à rede de TV americana NBC? Gente parecida com ele, aparentemente: os executivos de outra farmacêutica, a Mylan, que aumentaram o preço de seu remédio mais popular em mais de 400% desde 2008.

O medicamento em questão é a EpiPen, uma caneta para injetar epinefrina (também conhecida como adrenalina) – um hormônio usado para combater os efeitos de um choque anafilático resultante de alergia a algum alimento ou picada de inseto. Desde que a Mylan comprou do laboratório Merck os direitos de produzi-la, em 2007, vem aumentando seu preço consistentemente: 5% em 2008 e 2009, 19% no final de 2009, vários acréscimos de 10% entre 2010 e 2013 e, a partir do final de 2013, 15% a cada semestre.

Assim, o mecanismo injetor que custava cerca de 60 dólares em 2007 sai agora por mais de 600 dólares (um pacote com duas canetas). A droga que vai na caneta é barata, cerca de um dólar apenas. O que a Mylan vende é a facilidade de aplicação – e a certeza de inocular a quantidade correta.

A caneta é especialmente importante porque a janela terapêutica da adrenalina é muito pequena: qualquer imprecisão pode significar a diferença entre uma dose salvadora e uma dose fatal. Como o remédio é em geral usado em situações de estresse, numa crise de anafilaxia que pode paralisar o coração ou o sistema circulatório, preparar a dose correta (0,3 mg para um adulto, metade disso para uma criança) é um desafio – que o engenheiro biomédico Sheldon Kaplan solucionou, nos anos 70, ao criar a EpiPen.

A Mylan, porém, pode ter errado na dose ao tentar maximizar seus lucros, animada por um virtual monopólio nos Estados Unidos. Esta semana, vários congressistas americanos pediram uma investigação sobre a elevação de preços.

Um mercado desregulado

Os congressistas respondem à pressão popular. Cerca de 15 milhões de pessoas sofrem de alergia severa a algum alimento nos Estados Unidos. O número de mortes é mínimo – cerca de 200 por ano, menos de 5% do total de pessoas que morrem engasgadas no país – mas, como afeta uma em cada 13 crianças, a anafilaxia assusta muito mais. Especialmente em locais distantes de um centro de saúde, a caneta pode dar ao paciente o tempo extra necessário para chegar a um posto de emergência.

(No Brasil, não existe um aparelho parecido com a EpiPen. No final do ano passado, a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia, a Asbai, iniciou uma campanha nacional pela regulamentação do uso da adrenalina auto-injetável.)

Os políticos podem chiar, mas há pouco que possam fazer para obrigar a Mylan a reduzir preços. Nos Estados Unidos, o mercado farmacêutico é livre. Não é só que o governo não tem o poder de regular preços, como na Europa ou no Brasil. Uma lei federal proíbe o Medicare, o plano de saúde governamental, de até mesmo tentar negociar descontos com os laboratórios. Uma vez estabelecido o preço de um remédio, o Medicare tem de aceitá-lo.

A situação pode mudar, é claro. A candidata democrata à presidência, Hillary Clinton, prometeu em janeiro que enfrentaria as companhias que “exploram os pacientes com suas políticas de preço”. Mas é pouco provável, pelo menos no curto prazo, que os Estados Unidos passem a regular o mercado.

Os aumentos de preços exorbitantes (como os casos de Shkreli e da farmacêutica canadense Valeant) não são pontos fora da curva; são apenas seu extremo. Quase todos os laboratórios vêm aumentando preços de forma constante, bem acima do nível de inflação.

Uma pesquisa recente apontou que dezenas de drogas dobraram de preço desde dezembro de 2014, e pelo menos 20 quadruplicaram de preço no mesmo período.

Só que agora os aumentos estão chamando mais atenção. O motivo é que o Obamacare, o novo conjunto de leis sobre saúde aprovado em 2010, criou regras para expandir a população atendida por seguradoras. As seguradoras passaram a oferecer planos baratos, mas com alta participação dos pacientes nos custos de tratamentos e remédios.

Para quem tem um bom plano de saúde, o aumento de preço da EpiPen passa despercebido. Quem paga é a seguradora. Para os muito pobres, idem: o governo arca com as despesas. Para a classe média ou média-baixa é que a situação mudou. Eles são os que mais sentem o baque dos aumentos.

600 dólares são uma pechincha?

Poucos dias depois de ter equiparado os executivos da Mylan a abutres, Shkreli mudou de ideia. Em entrevista à rede CBS, disse que eles eram “os mocinhos da história”. Seu argumento é que os planos de saúde deveriam arcar com o custo integral das canetas dosadoras por uma simples questão de aritmética.

Se alguém aplica a epinefrina quando tem um choque anafilático, afirmou Shkreli, economiza na ambulância, no quarto de hospital e na mobilização de médicos, custos com que o plano teria de arcar, mesmo que parcialmente. Gastar 600 dólares seria uma excelente maneira de deixar de gastar dezenas de milhares de dólares.

A Mylan é um laboratório de genéricos, apontou Shkreli, e sua margem de lucro é pequena. “Quando eles finalmente conseguem um produto que dá uma margem decente, todos criticam”, disse. A farmacêutica bateu nesta tecla, também, em um comunicado que dizia que seus preços “mudaram para melhor refletir as qualidades do importante produto e o valor que ele provê”.

Esse argumento tem um ponto fraco: remédios não são um produto como outro qualquer, porque o cliente não tem poder de barganha. A droga que a EpiPen inocula é comum e pode ser administrada de outros modos, mas uma campanha de marketing de vários anos acostumou os americanos ao aparelho. Enfermeiras e pais são treinados com ele, e a adoção de um concorrente, o Adrenaclick, cuja aplicação segue um procedimento um pouco diferente (exige a remoção de duas tampinhas, em vez de uma, por exemplo), poderia causar confusões perigosas.

Trata-se, portanto, de um quase monopólio (a EpiPen tem algo como 98% do mercado). Especialmente depois que a Sanofi retirou do mercado o Auvi-Q, uma alternativa à EpiPen, por causa de queixas sobre seu funcionamento, e a FDA, o órgão regulador americano para alimentos e drogas, negou autorização a um genérico feito pela rival Teva.

“O aumento de preços da EpiPen parece ter sido motivado, pelo menos em parte, pela eliminação da concorrência”, disse Doug Hirsch, um dos fundadores da GoodRx, uma startup de pesquisa de preços de remédios. “Estamos vendo o clássico cenário do mundo das drogas, em que menos competição significa maiores preços.”

Um agravante é que os preços são aumentados sem nenhuma contrapartida em melhora dos produtos, na maioria das vezes. “Imagine se outras indústrias se comportassem da mesma forma”, disse Rodney Whitlock, um consultor em saúde para o Congresso americano. “A Apple estaria até hoje vendendo o iPhone de primeira geração, por 1.400 dólares.”

Uma adrenalina no marketing

O argumento de que a empresa precisa dos reajustes para se manter saudável perde um tanto do seu apelo quando se sabe que os executivos obtiveram aumentos de salário extraordinários nos últimos anos.
A CEO da companhia, Heather Bresch, que começou como secretária no departamento de controle de qualidade há 24 anos, teve quase 700% de aumento desde 2007: sua compensação anual pulou de 2,4 milhões de dólares para 18,9 milhões.

A EpiPen não foi o único produto que teve preço majorado. Segundo um analista da empresa de serviços financeiros Wells Fargo, a Mylan aumentou os preços de 24 produtos em mais de 20% este ano, e de sete produtos em mais de 100%. Mas a EpiPen é seu carro-chefe; representou 40% de seu lucro operacional em 2014.

Aumentar os preços não foi a única estratégia da Mylan para crescer. Em 2008, assim que comprou os direitos de produção da EpiPen, ela elevou os gastos com lobby de 270.000 dólares para 1,2 milhão de dólares, segundo o site opensecrets.org, um centro de pesquisas que monitora gastos na política.

O esforço de marketing deu resultado. Em 2008, a FDA permitiu que a EpiPen fosse vendida a pessoas que tivessem o risco de um choque anafilático. Antes, o produto só podia ser vendido a quem tivesse exames que comprovassem resposta anafilática. Isso ampliou o público alvo imensamente – qualquer alérgico pode ter risco, mesmo se sua aversão a alguma substância for branda.

Em 2010, a FDA determinou que os pacientes recebessem prescrição de duas doses de 0,3 mg, em vez de apenas uma. É uma medida de segurança. Se em 15 minutos depois de receber a injeção de adrenalina o paciente não sair do choque, deve-se dar outra dose. Essa mudança fez com que a Mylan passasse a vender o aparelho exclusivamente em pacotes duplos – pelo dobro do preço.

Além disso, a farmacêutica investiu muito dinheiro para sensibilizar as pessoas para o problema. A atriz Sarah Jessica Parker (da série Sex and the City), entre outros, foi contratada para falar sobre a alergia de seu filho a um programa patrocinado pela Mylan. A campanha foi tão bem-sucedida que convenceu as pessoas de que é preciso ter canetas preparadas para alguma emergência em casa, no carro, com a própria pessoa, no trabalho, na escola… e todas elas têm de ser trocadas anualmente, quando se esgota o prazo de validade da epinefrina.

Em 2013, o presidente Barack Obama assinou um ato para garantir que as escolas tivessem acesso à epinefrina. Foi uma das raras vezes em que republicanos e democratas concordaram com uma legislação. Pela nova regra, qualquer pessoa pode aplicar a injeção em uma criança em choque (antes, somente enfermeiros treinados podiam). E a injeção não precisa mais ser da própria criança, o que abriu caminho para que as escolas montassem seus estoques coletivos. (A Mylan tem um programa de distribuição da EpiPen para escolas gratuitamente, mas não está claro se a benesse inclui a reposição quando a validade se esgota).

Ao assinar o ato, Obama lembrou que sua filha Malia tem alergia a amendoim. “Ela não tem asma, mas obviamente assegurar-se de que as EpiPens estejam disponíveis em caso de emergência nas escolas é algo que qualquer pai pode entender”, disse.

Ao contrário de Shkreli, que alimenta polêmicas em sua conta no Twitter, a direção da Mylan tem se mantido o mais quieta possível. Seu comunicado sobre a crise afirma que “estamos comprometidos a trabalhar com clientes e entidades pagadoras para encontrar soluções que satisfaçam as necessidades dos pacientes e famílias que nós servimos”.

O que isso quer dizer, só saberemos quando a empresa tomar alguma atitude. Os investidores já reagiram às notícias negativas: o valor das ações da Mylan caiu 12% em cinco dias.

Acompanhe tudo sobre:gestao-de-negociosExame Hoje

Mais de Negócios

Os planos da Voz dos Oceanos, a nova aventura da família Schurmann para livrar os mares de plásticos

Depois do Playcenter, a nova aposta milionária da Cacau Show: calçados infantis

Prof G Pod e as perspectivas provocativas de Scott Galloway

Há três meses, marca de hair care Braé lançou produtos para magazines que já são 10% das vendas

Mais na Exame