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Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h28.
A falência da Enron parece ter assinalado o fim de um dos mais longos ciclos de crescimento da economia norte-americana e mundial. A empresa foi emblemática: uma hidra de duas cabeças, a primeira representando o básico do básico da velha economia commodities ligadas à gestão dos ativos reais de concessionárias de gás natural e a segunda, a face mais volátil da nova economia uma trading de opções e derivativos nos campos da energia, clima e banda larga da internet.
O mundo de negócios foi surpreendido com o destino da empresa, até então considerada uma vedete e caso de sucesso. Gurus da administração (incluindo Gary Hamel) não cessavam de apontar suas virtudes como modelo de negócios da nova economia. A Harvard Business School chegou a produzir estudos de caso sobre a empresa. Cortejada pela imprensa especializada, a Enron acabou sendo escolhida pela Fortune, por seis anos seguidos, como a empresa mais inovadora dos Estados Unidos.
Os resultados nefastos de sua falência ainda estão sendo digeridos. Além das perdas impostas aos acionistas, empregados e parceiros do negócio, instituições foram abaladas e pelo menos uma empresa, a Andersen, foi definitivamente tragada como resultado do imbróglio.
Certamente o caso Enron ficará para sempre como um dos marcos da história dos negócios e servirá como aprendizado para o aperfeiçoamento das regras do jogo e a regulamentação dos mercados. Mas partindo do pressuposto de que os dirigentes e gerentes da empresa não tinham a intenção de levá-la à situação atual, que lições podemos tirar do episódio?
1. A razão da existência de uma empresa é o cliente, não o modelo de negócios.
A Enron originou-se no negócio de fornecimento de gás e energia elétrica. Nos anos 90, após a desregulamentação dos mercados de energia nos Estados Unidos, passou a envolver-se crescentemente nas atividades de compra e venda de energia e de commodities de serviços básicos. Gradualmente, foi aumentando a participação de seu negócio de trading, deixando em segundo plano os ativos ligados à velha economia e criando instrumentos financeiros cada vez mais sofisticados para atender um mercado crescentemente sujeito à instabilidade: derivativos de clima, tempo de veiculação para anunciantes, largura de banda de Internet, negociados pelo seu braço de comércio eletrônico.
Na medida em que se transformava numa negociadora de derivativos, operando em mercados voláteis e com pouca tradição, a empresa foi gradualmente se afastando do seu negócio principal, carregada no embalo da nova economia. O resultado foi um afastamento da sua base de clientes usuais e um foco quase exclusivo no acionista e nos mercados financeiros, interessados predominantemente na perspectiva de rentabilidade das ações. Cada vez mais entusiasmada com o sucesso do seu modelo de negócios, a Enron foi gradativamente se afastando do mercado. A complexidade intrínseca dos seus produtos e serviços foi estendida ao seu modelo de negócios cada vez mais difícil de explicar e, por essa razão, mais fácil de ocultar. O mercado foi se afastando pouco a pouco do que não compreendia e não lhe interessava. Numa declaração célebre, o CEO Skilling referiu-se à complexidade do seu negócio da seguinte maneira: ... Nosso negócio não é uma caixa preta. É de modelagem muito simples. As pessoas que levantam dúvidas (sobre ele) são pessoas que não se esforçaram para o entender em seus detalhes. Temos as respostas claras, mas as pessoas querem atirar pedras na gente... Em resumo, para Skilling e seus seguidores, a culpa é do mercado e do cliente, por não terem entendido (e não aderirem) a um modelo de negócio tão fantástico.
2. Talentos, sozinhos, não asseguram o sucesso. Mal dirigidos, podem acelerar o fracasso.
A Enron atraiu muitos talentos, em geral MBAs recém-formados nas melhores escolas do mundo. Seus dirigentes, em geral, eram compostos por ex-sócios de bem-sucedidas consultorias, tarimbados nos modernos conceitos de gestão. Esses profissionais de alto nível eram colocados em posições de responsabilidade com poder de decisão em carteiras e investimentos de milhões de dólares em troca do desafio, do prestígio e da remuneração propiciada pela empresa. Com operadores tão qualificados, como pôde a empresa ruir? Em primeiro lugar, a disponibilidade de talentos excepcionais não garante a criação de equipes eficazes, capazes de resultados excepcionais. Na verdade, uma boa equipe pressupõe a existência prévia de uma série de condições, incluindo uma visão compartilhada, capaz de mobilizar mentes e corações para uma causa comum, além de um processo de liderança capaz de evitar os choques e as disfunções do individualismo. Esses pré-requisitos certamente não foram observados no caso da Enron. A causa mobilizadora foi identificada como o sucesso a qualquer preço no mercado acionário causa que dificilmente compromete indivíduos além dos seus propósitos instrumentais mais imediatos algo como fazer fortuna a curto prazo e cair fora. Além disso, a liderança da empresa estava dividida: enquanto Skilling e sua equipe enfatizavam o lado da trading e a busca de uma empresa de ativos intangíveis, a diretora Rebecca Mark embarcava numa expansão internacional febril e desastrosa, buscando justamente adquirir negócios ligados a energia.
3. Sistemas alavancados de recompensa nem sempre funcionam.
Os sistemas de remuneração variável para executivos e de stock options foram as grandes redescobertas dos anos 80 e 90 como forma de alinhar os objetivos dos gestores com os dos acionistas. Na teoria, nos sistemas de incentivos turbinados, os sucessos e os fracassos da empresa seriam compartilhados, e com isso os empregados buscariam sempre que possível agir no interesse dos acionistas. Na prática isso nem sempre acontece. Primeiramente, a forma de medição da performance tem que ser consistente com os propósitos empresariais de longo prazo. A Enron concentrou-se excessivamente concentrada no valor de mercado e nos resultados econômico financeiros trimestrais. O termômetro ficou mais importante do que a febre. A empresa criou uma cultura empreendedora às avessas, na qual ganhos individuais eram justificados pelas cifras maquiadas de receitas e lucros. O caso Enron demonstra a síndrome freqüentemente atribuída a empresas brasileiras: a empresa faliu, mas o empresário vai bem, obrigado. Mais zelosos com seu patrimônio pessoal do que com os destinos da empresa, os administradores da Enron tiveram o cuidado de vender suas stock options antes do desastre, embolsando a diferença da sobrevalorização dos seus ativos pessoais.
4. É necessário cuidado na definição dos sistemas de controle.
O episódio da Enron demonstra duas patologias associadas ao controle. A primeira: más notícias são sempre más notícias. A segunda: atire no mensageiro, principalmente se ele for portador de más notícias. Já estava relativamente claro entre os administradores e os operadores qualificados da empresa que sua sustentação econômico-financeira era frágil. Por que então, isto não foi levado adiante? Por que os usuais mecanismos de controle e verificação não funcionaram?
Primeiramente, havia desinteresse de uns e resistência aberta de outros, em função do conflito natural com a imagem de sucesso que sustentava a performance da empresa. Dizer o contrário significava prejudicar o valor de mercado e, conseqüentemente, reduzir os ganhos pessoais. Pior a empresa veria essa pessoa como um dedo-duro, com grande possibilidade de ser discriminado pelos colegas. Como bem lembrou um operador da Enron, entrevistado por um repórter: Se seu chefe está fazendo rolo, e você nunca trabalhou em outro ambiente, você simplesmente assume que fazer rolo é o modo geral de fazer negócios. Nesse contexto, você teria coragem de assumir os erros e correr o risco de perder o emprego? Era fácil entrar na lógica do "Bem, já que está todo mundo fazendo, talvez não seja tão grave".
Em segundo lugar, como uma empresa com 180 pessoas no departamento de risco interno deixou passar tamanhas inconformidades? Abstendo-nos de comentar a questão dos erros e omissões da Andersen, novamente a lógica da cultura e dos sistemas não deixa alternativas. Mesmo na hipótese de haver alguém com coragem bastante para enfrentar o sistema, ele tinha mecanismos para abafar e reprimir as más notícias. Além disso, o próprio conselho de administração foi passivo em todo o desenrolar do drama. Como todos sabemos, é papel essencial do conselho supervisionar as questões ligadas à sobrevivência e a longevidade do negócio. Para que isto aconteça, é fundamental que ele tenha uma relativa independência vis-à-vis os diretores executivos e uma diversidade na representação dos diversos grupos de interesse da empresa. As evidência apontam no sentido de que a Enron não observou esses dois requisitos, essenciais para reagir rapidamente aos problemas, analisar as questões de diferentes ângulos e tomar decisões menos comprometidas com o dia-a-dia.
5. Comportamento ético e sucesso são indissociáveis.
Embora a relação entre ética e desempenho da empresa seja ainda objeto de controvérsias, o caso Enron é uma demonstração de que a ausência de comportamento ético é indissociável da desvantagem competitiva. Além dos prejuízos aos acionistas estimados em dezenas de bilhões de dólares os custos da falta de ética incluem os prejuízos causados aos fornecedores, bancos, empregados, comunidade, governos e outras vítimas diretas ou indiretas. A questão não é tanto saber se o desastre poderia ser evitado caso a empresa tivesse adotado, desde o início, critérios de transparência. O principal é saber como cidadãos, até então reputados e honestos, conseguiram criar um ambiente capaz de levar seus gestores a assumirem posições eticamente condenáveis e economicamente insustentáveis.
Álvaro Cyrino é professor da célula de política e estratégia empresarial da Fundação Dom Cabral