Iselde Kelbert, aromista sênior, e Ana Cláudia Tezza, aromista trainee: na Duas Rodas, gerações de aromistas criam os sabores de vários produtos que comemos (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter de Negócios
Publicado em 3 de fevereiro de 2024 às 08h02.
Uma mesa repleta de quitutes como geleias e salgadinhos, além de energéticos e outras bebidas, preenche uma das salas mais importantes do laboratório da indústria de ingredientes Duas Rodas. Localizada no meio de um naco de Mata Atlântica em pleno centro de Jaraguá do Sul, cidade catarinense de 200.000 habitantes, a Duas Rodas é um dos exemplos mais completos de uma empresa brasileira que construiu uma reputação global numa atividade de nicho — e de altíssimo valor. O negócio dela usa processos químicos para transformar essências da natureza em pós e líquidos com sabor. Tudo isso para servir de matéria-prima a alimentos industrializados.
Na sala das guloseimas, funcionários da Duas Rodas costumam receber clientes para degustarem sabores recém-criados. Sentada numa das cadeiras está a técnica de alimentos Iselde Kelbert. Com a mesma naturalidade com que respira, ela pega um dos copinhos de plástico à sua frente, cheira o produto e, na hora, decifra os ingredientes presentes. “Aqui tem uma nota mais cítrica, uma essência de pêssego, um composto mais adocicado”, diz ela, emendando a conversa ao falar de compostos químicos aromáticos também adicionados à composição do produto, como aldeídos, ésteres e álcoois.
Há 40 anos Kelbert é aromista da Duas Rodas. A função dela é identificar as mais de 3.000 matérias-primas no portfólio da empresa. Tudo isso porque é também atribuição dela combinar uma essência com outra até formar um novo sabor.
Criar aromas não é uma tarefa fácil. Um aroma de manga, por exemplo, é definido pela composição de mais de 250 substâncias, como óleos essenciais, vindos da própria destilação a vapor da fruta — o que é feito antes, por outros profissionais —, e químicos aromáticos, normalmente em pó.
O aromista identifica a substância e a solicita por meio de uma biblioteca de matérias-primas, gerenciada também ali no laboratório. Com os materiais em mão, ela faz as misturas, como poções, até criar um novo sabor.
Como gerente de desenvolvimento de aromas, Kelbert comanda uma equipe de dez profissionais. Com um quê de alquimia, eles passam o dia de jaleco branco adicionando químicos e extratos naturais, pesando insumos, fazendo anotações e criando fórmulas para serem utilizadas em larga escala nas fábricas da empresa. E, depois, nos processos industriais dos clientes.
Em regra, a função da Duas Rodas é criar um gosto incrível para o produto do cliente, numa composição mantida sob sigilo absoluto, digno da fórmula da Coca-Cola. A equipe de Kelbert tem um conhecimento apuradíssimo. Para ter uma ideia, o programa de trainee de aromistas dura quatro anos. O profissional só deixa de ser júnior após dez anos na função. Além de muita leitura de manuais de química, o trabalho exige provações elevadas. Para preservar a papila gustativa e o olfato, o consumo de alimentos condimentados deve ser evitado; cigarro, nem pensar.
“Ficamos tão sensíveis ao gosto que, num supermercado, compramos as comidas e involuntariamente descobrimos os compostos que estão ali”, diz Kelbert. Embaixo da sala dos aromistas, um espaço reproduz as linhas de produção dos clientes. Tem de tudo por ali: uma máquina de refrigerantes, outra de pão, de bolos e de sorvetes. “A ideia é saber se os aromas criados aqui terão uma boa reação quando assados ou fritos”, diz Kelbert.
Além do conhecimento específico de cada amorista, há também tecnologia por trás para ajudar no desenvolvimento dos produtos.
Uma dessas tecnologias é a cromatografia gasosa, uma ferramenta que separa componentes aromáticos individuais numa máquina e indica o que tem ali para dar o sabor. "A combinação de duas ciências, a tecnológica e a análise sensorial, dá o refinamento às informações analisadas”, diz Silvana Laube Rech, aromista da Duas Rodas.
A análise sensorial permite, por exemplo, identificar na degustação de uma uva um componente sulfuroso que, dependendo da temperatura utilizada no processo de cromatografia, não aparece.
É verdade que existem bibliografias que listam os componentes básicos de uma uva. Mas, para desenvolver um aroma de uva específica da serra gaúcha, é necessária uma investigação profunda, aliando cromatografia e análise sensorial, para identificar os ingredientes que são diferentes, influenciados por aspectos próprios da região, como clima, solo, chuva, temperatura, que interferem no sabor final.
Ao longo de nove décadas, a Duas Rodas virou a maior fábrica de ingredientes da América Latina. A julgar pelo ritmo de expansão dos últimos anos, a empresa pode entrar na liga das maiores do mundo. De 2019 para cá, o faturamento praticamente dobrou. No ano passado, foi de 1,6 bilhão de reais. Entre os concorrentes globais da Duas Rodas está a irlandesa Kerry Group, cujo faturamento está na casa dos 10 bilhões de dólares, além das suíças Givaudan (receita anual de 8,2 bilhões de dólares, dos quais 54% vêm de aromas e sabores) e Firmenich (4,9 bilhões de dólares).
Por trás do crescimento expressivo da Duas Rodas estão mudanças profundas nos hábitos alimentares. A preocupação com saúde e bem-estar virou do avesso a dieta de muita gente, sobretudo na geração Z. Tudo isso abriu espaço para foodtechs ganharem mercado em cima de gigantes com produtos novos e ingredientes inovadores. Muitos deles dependentes das essências fabricadas pela Duas Rodas.
“Ficamos colados no cliente para criar produtos que eles nem sabem que precisam, mas ficam interessados em comprar quando degustam”, diz Leonardo Fausto Zipf, CEO da empresa e membro da terceira geração da família proprietária.
O nome dos clientes também é segredo absoluto por ali. As próprias empresas alimentícias ou de bebidas evitam associar-se publicamente à Duas Rodas com medo de os concorrentes descobrirem de onde vêm os sabores dos produtos — o ativo mais estratégico de seus negócios. Atualmente, além de aromas, os aromistas da Duas Rodas produzem extratos botânicos, recheios, condimentos, aditivos e insumos para sorveterias e confeitarias. A produção é feita na sede, em Jaraguá do Sul, ou em fábricas nos estados de São Paulo e Sergipe, além de unidades no Chile, na Colômbia e no México. O ar nas fábricas costuma misturar cheiros de todo tipo. Para evitar contaminação cruzada, a produção é organizada de modo que os sabores de cheiro neutro, como a baunilha, sejam fabricados no início da semana. Os mais fortes, como o chocolate, saem na sexta-feira — dia em que a reportagem da EXAME esteve no local. A produção é vendida para 39 países com a ajuda de escritórios comerciais na China e nos Estados Unidos.
Com a aquisição da Tropextrakt, de certa forma a Duas Rodas retorna às origens.
O negócio começou em 1925, quando dois alemães chegaram à região de Jaraguá do Sul, cidade que, assim como Blumenau, Pomerode e Joinville, nasceu a partir de uma colônia de imigrantes da Alemanha. O químico-farmacêutico Rudolph Hufenüssler e sua mulher, a física Hildegard Hufenüssler, embarcaram num navio rumo ao Brasil com um pequeno destilador de essências.
O objetivo era extrair óleos essenciais de frutas brasileiras. Os dois vinham de Mainz, cidade no sudoeste da Alemanha, cujo brasão são duas rodas com uma cruz no meio. Ao desembarcar, trataram de usar a mesma imagem para representar o negócio recém-criado. “Mesmo chamada de Indústrias Reunidas Jaraguá do Sul, os clientes insistiam em pedir os produtos ‘daquela empresa de duas rodas’”, diz Zipf. A mudança de nome veio em 1992 e ainda gera conversas entre os clientes. “Todo mundo pergunta isso. É uma boa maneira de apresentar a empresa”, diz ele. O storytelling é relevante para a Duas Rodas porque, apesar de bilionária e quase centenária, a empresa acaba ficando à sombra dos clientes, normalmente grandes indústrias alimentícias cujas marcas costumam estar na ponta da língua dos consumidores.
A EXAME preparou uma reportagem que conta a trajetória, as lições de gestão, os tropeços e os acertos da Orquídea. O artigo apresenta dados sobre a empresa e sobre o mercado de farináceos. Leia aqui: Os aromistas estão chegando: essa empresa de SC fatura R$ 1,6 bilhão com sabores — e quer o mundo